Foram vários canais respeitados que já fizeram uma síntese sobre as vias e a história das conquistas deste “morro testemunho”, só para citar: o jornal Mountain Voices e a extinta revista Universo Vertical, isso sem contar o site Hang On que tem a croquiteca digital do Cuscuzeiro.
Assim sendo, pretendo aqui fazer uma revisão breve sobre os conhecimentos relativos à história fisiográfica do Cuscuzeiro, este morro testemunho localizado na cidade de Analândia na província geomorfológica das cuestas arenito – basálticas do estado de São Paulo. Mostrando a partir do ponto de vista da ciência geomorfológica o real potencial que a região possui para a escalada esportiva. Diferente da história das escaladas como sempre foi retratado nos meios de comunicação da montanha.
Morro testemunho de que?
Chegando em Analândia, São Paulo, a primeira coisa que chama a atenção dos desatentos é uma estranho morro de topo aplainado em formato de mesa que se destaca no horizonte. Esta “chapadinha” é o morro do Cuscuzeiro, que recebeu este nome por se parecer com uma forma de fazer “Cuscus”, aquela comida com ovo, ervilha, etc… (eu não sei a receita de Cuscus).
Na nomenclatura geomorfológica, o Cuscuzeiro não é uma “Chapada”, nem uma “Meseta” e nem um “Plateau”, mas sim um “Morro Testemunho”.
Não é preciso quebrar a cabeça para saber o que é isso. Simplesmente ele é um morro que testemunha que o relevo das “Cuestas” do passado atingia uma superfície maior e que através do processo do recuo paralelo das vertentes, atingiu sua configuração atual, ou seja: Onde hoje está o Cuscuzeiro era o limite anterior das escarpas da Cuesta.
Das palavras da geógrafa Dirce Sertegaray:
Morro testemunho é uma feição do relevo situado adiante de uma escarpa, mantida pela camada rochosa mais resistente. Recebe esta denominação por ser testemunho da antiga posição da escarpa antes do recuo do front desta. Morros testemunhos são observáveis na frente de escarpas de planaltos ou Cuestas.
Mas afinal, o que é uma Cuesta?
“Cuesta” é “Costa” em espanhol. Apesar de ser óbvio, este nome não foi traduzido ao português devido sua aceitação já ser antiga. Na Bacia sedimentar do Rio Paraná, pretéritamente ocupada pela colônias jesuíticas – espanholas, uma curiosa forma do relevo chamou atenção do colonizador.
Um divisor de águas, que de um lado se caracteriza por uma abrupta vertente, formando prolongados paredões de rocha e de outro um relevo suave que às vezes não chega nem ao ponto de formar uma vertente, formando um ângulo menor que 3 graus. Descrevendo em curtas palavras, isto é uma Cuesta.
Ela pode ser percebida quando você viaja de carro em direção ao interior. Pela Rodovia Washington Luis, logo depois de passar por Rio Claro (SP) você observa um enorme paredão rochoso. Depois de subir este relevo íngreme, ao invés da esperada descida, lá do topo você encontra uma quase planície que vai descendo suavemente. A origem deste revelo se deu no Mesozoico, mas sua história começa no Paleozóico, com a formação da bacia sedimentar do Paraná.
A Bacia do Paraná foi formada através da deposição de sedimentos erodidos do planalto cristalino, que é um maciço antigo com rochas formadas no Arqueozóico, ou seja, à mais de 3 bilhões de anos atrás. As rochas de origem vulcânicas do planalto foram erodidas e transportadas para uma depressão. Ao longo da história geológica, foram diversos períodos que, influenciados por determinantes naturais, foram compondo várias formações geológicas com predominância de determinadas rochas sedimentares em cada camada e sub camada (estratos).
A bacia do Paraná é gigante, sua espessura máxima é, segundo os geólogos Fúlvaro & Bjornberg, de 6000 metros no pontal do Paranapanema em São Paulo e sua área total é de 1.700.000 Km2.
Uma pergunta intrigante é de onde veio este pacote de sedimentos. Ora, de um lugar só: dos escudos e planaltos Cristalinos que circulam a Bacia. Isto quer dizer que mais 6 mil metros verticais de rochas foram erodidas em toda a história da Terra, isto explica como por exemplo alguns tipos de granitos formados à 30 mil metros de profundidade estarem aflorando hoje na superfície à altitudes superiores à 2 mil metros.
Este fato também evidencia os movimentos tectônicos que soergueram o relevo.
As rochas que compõem o Morro do Cuscuzeiro, o arenito, fazem parte de uma formação estratigráfica chamada de Formação Botucatu, datada de mais ou menos 150 milhões de anos atrás. Nesta época (Jurássico) a América do Sul e a África ainda estavam unidas e pelo efeito de continentalidade, a região da bacia do Paraná era um imenso deserto de dunas de areia. Essas dunas deram origem ao arenito, uma rocha sedimentar onde os grãos tem tamanho de areia. Essas dunas são observadas nos perfis, pois a rocha apresenta a estratificação cruzada, seguindo a superfície das páleo-dunas.
Entre 150 e 110 milhões de anos, a deriva continental separando a América da África, vai causar fraturamentos e rifteamentos da crosta terrestre que culminaram com a extrusão de material magmático formando derrames que podem ser comparados aos derrames que hoje ocorrem nas regiões de separação de placas, como na Islândia. Este derrame formou a chamada formação Serra Geral, composta por Basaltos e Diabásios, rochas que se diferenciam apenas por que a primeira sofreu resfriamento na superfície e a segundo no interior da terra.
A pedogênese (processo de evolução de solos) sobre estas rochas formaram a famosa terra roxa, os latossolos vermelhos escuros, que têm uma grande fertilidade para a agricultura.
A presença deste material magmático no contato com o arenito “cozinhou” as rochas, formando uma rocha vítrea no contato. Em outros pontos, como o arenito é uma rocha bastante permeável, a água infiltrada em seus poros recebeu um alto teor de sílica destas extrusões magmáticas e transformou o frágil arenito numa rocha dura e resistente, o arenito silicificado.
Neste momento, com as várias falhas e fraturas ocasionadas pelo evento da deriva continental, a bacia do Paraná passa a sofrer um processo de “compensação isostática” ou seja, o peso do interior da bacia, influenciado sobretudo pelos basaltos, faz que as bordas se ergam, formando então o relevo ora escarpado ora suave da Cuesta.
A formação de Morros Testemunhos se dão em um período posterior. Com o desgaste da rocha, as vertentes vão recuando e apenas pontos de maior resistência, ou seja locais onde o arenito está melhor “silicificado” consegue “sobreviver” à erosão, formando os morros testemunhos, como o próprio Cuscuzeiro, o Camelo, a Torrinha, etc…
Como pudemos ver, nesta breve história fisiográfica deste relevo, o Cuscuzeiro é produto de uma longa história de erosão, e ele segue seu caminho natural rumo a sua própria destruição, que levará ainda alguns milhares de anos.
O Arenito do Cuscuzeiro, por apresentar alto teor de sílica, é uma rocha de boa qualidade para a escalada, a própria existência do morro é um atestado disto.
No entanto, os escaladores devem tomar cuidado com o triste destino do morro testemunho, pois é comum desmoronamentos, por isso muito cuidado!
Medidas conservacionistas, como por exemplo, proibir a escalada no morro testemunho, de nada ajudará a evitar os desbarrancamentos do Cuscuzeiro, pois isto é natural. Os escaladores não são responsáveis pela queda dos blocos, mas sim, a própria natureza. Desta forma a escalada deve ser mantida como a principal prática esportiva da região das Cuestas de São Paulo, que ainda é pouco frequentada por escaladores.
O Morro do Cuscuzeiro e em pequena escala, o Morro do Camelo, são os poucos lugares aproveitados para o desenvolvimento da escalada esportiva na Cuesta da Região de Rio Claro e São Carlos, no entanto, todo o “Front” da Cuesta e não somente os Morros testemunhos podem ser usados para a prática da escalada. Em todos os Municípios da Cuesta: Descalvado, Analândia, Itirapina, Ipeúna, São Pedro, Torrinha, etc… existem afloramentos de arenitos bem silicificados onde é possível abrir vias de escalada, precisamos somente de gente com vontade para começar a descobrir novos points e assegurar nosso direito de escalar nas leis, fazendo pressão para que no plano de manejo das APA´s que compreendem a Cuesta esteja prevista a atividade da escalada esportiva, e derrubar a idéia infeliz que a escalada é vilã e culpada pelos desmoronamentos de blocos rochosos, como ocorrem nos morros testemunhos.
Se bem aproveitada, a região das Cuestas poderá abrigar a maior concentração de vias esportivas do Estado de São Paulo no futuro, basta trabalhar.
Obs: As informações científicas principais deste texto são uma síntese destas obras, referências quando o assunto é a História fisiográfica das Cuestas Paulistas:
ALMEIDA, F.F.M; O relevo de Cuestas da Bacia sedimentar do Rio Paraná.
Boletim Paulista de Geografia. São Paulo. n. 3.1949. pg. 21-23.
ALMEIDA, F.F.M; Fundamentos geológicos do relevo paulista. IN: Geologia do Estado de São Paulo. Instituto Geográfico e Geológico do Estado de São Paulo. São Paulo. 1964. pg. 169-264.
PENTEADO, M.M. Geomorfologia do Setor Centro – Ocidental da Depressão Periférica Paulista. Tese de doutoramento. Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Rio Claro. Rio Claro: 1968.
SUERTEGARAY, D.M.A (ORG). Terra: Feições ilustradas.
Editora da UFRGS. Porto Alegre: 2003
Saiba mais sobre a evolução do relevo de nossos locais de escalada e caminhada no Brasil:
:: Origens e evolução da Serra do Mar
:: Escalada em Bloco no Brasil