Glauco Ferreira é biólogo e trabalha há seis anos no PE Lagoa do Cajueiro, próximo a uma pequena vila do norte mineiro. Existem no seu entorno sete UCs, entre parques estaduais, áreas de proteção e reservas biológicas. É um conjunto importante, com quase 200 mil hectares distribuídos pelas margens do São Francisco. Em nossas conversas, comentamos sobre as atividades dos caçadores.
Glauco diz que existe na região a cultura da caça, é uma tradição perpetuada nas famílias deste território pobre, quente e seco do norte de Minas. Se no caso dos peixes o objetivo é o consumo e no das aves é a posse ou o tráfico, no dos mamíferos a motivação não costuma ser utilitária e sim psicológica: a adrenalina da própria caçada.
Conversamos sobre os caçadores experientes, não sobre os iniciantes ou eventuais. Eles costumam ser pessoas organizadas, em que a caça resulta de uma ação metódica e planejada e não de um evento momentâneo. Pois leva tempo para caçar.
A técnica praticada consiste em diversas etapas. Dependendo do animal a ser caçado, uma dada região vem a ser escolhida: por exemplo, um banhado para as capivaras, um bosque de tamburis ou embarés para os veados, uma mata de bacuris ou um campo limpo para os catetos, uma capoeira para os tamanduás.
Naturalmente, é de se esperar que as pegadas desses animais tenham sido encontradas nas imediações. No solo arenoso da região, não é difícil identificá-las: por exemplo, as almofadas com unhas das onças, as pontas afiladas dos cascos dos veados, os dedos com membranas das capivaras e as bolas com marcas de foice dos tamanduás.
Também a época pode ser importante. Há animais que costumam aparecer mais em determinadas fases da lua, normalmente na nova e na minguante. Ou então durante a estação seca. Nos meses úmidos, há mais alimento disponível e, embora os animais circulem mais, visitam com menos frequência as cevas para onde são atraídos.
Definida a região, o caçador deve abrir picadas para acessá-la, uma para chegar e outra para escapar. Se for experiente, disfarçará o seu rastro, evitando galhos quebrados e gramas amassadas. Normalmente, ele elegerá um local limpo com uma árvore alta, como numa pequena clareira.
A razão é a seguinte: nas semanas seguintes ele lá instalará sua ceva e sua espera. Depositará milho e mandioca para atrair os animais e montará um poleiro ou rede alta, a 3½ m do solo, de forma a poder observar sem, entretanto, emitir odores reveladores. Antes da ocasião da caça, visitará o local para conferir seu uso.
Então, chegará lá num horário apropriado, no meio da manhã ou início da tarde, quando os animais não estiverem presentes. Ele terá tomado banho na água do rio, sem sabonete ou desodorante, e fumigado a roupa que está usando, para eliminar odores.
Subirá então na árvore e aguardará a mudança de luz, seja na madrugada ou no crepúsculo, para esperar sua presa. Deverá abatê-la com uma cartucheira ou chumbeira e não com uma carabina. Cartucheiras são baratas, não serão uma grande perda se confiscadas. E sua munição espalha-se numa área e não num só ponto, facilitando o acerto do tiro.
Caçadores trabalham sozinhos ou em duplas. Neste caso, usam dois locais diferentes para suas emboscadas. Largam seus veículos escondidos, normalmente motos. Ou então são deixados e buscados de carro por um companheiro.
Terminada a caça, trazem de volta a arma e a rede, que haviam permanecido no local. A caça é comumente transportada inteira.
Mas nem sempre o caçador escapa ileso. Sua atividade pode ter sido detectada pelos guardas florestais: serão investigados seus hábitos, sua trilha de acesso, sua rota de fuga, suas armas – e às vezes até mesmo o modelo de seus pneus, se ele for um reincidente conhecido.
As detenções são normalmente feitas pela polícia, com ajuda de um guarda – é usual três ou quatro pessoas para um caçador e pelo menos cinco para uma dupla. O local de abordagem é próximo a seu veículo, onde ocorre um certo relaxamento quando o caçador o avista, e o momento preferido é após ter deposto sua arma, quando o risco é menor.
Mas caçadores não costumam ser presos, mesmo quando apreendidos com armas e caças. Embora estes crimes ambientais sejam legalmente inafiançáveis, terminam por apenas incorrer em multas. Pagam fianças de R$ 3-5 mil para animais de certo porte, de espécies vulneráveis. Um bicho pequeno e comum vale pouco, algo como R$ 600 por um tatu.
Mas gostaria de comentar que, nas minhas andanças, conheci uma boa meia dúzia de caçadores. São pessoas diferentes, especiais – desde que não sejam traficantes. Parecem ter afeto, fantasia e curiosidade. Estranhamente, sua caça nunca me pareceu predatória, e sim um exercício de esperteza, aventura e liberdade.
Glauco é um guarda parque ativo, chega a realizar três campanas numa única semana. Avalia abordar mensalmente cerca de cinco caçadores. Pôde aprender com seus colegas terceirizados, que eram antigos caçadores ou amigos e familiares deles.
Mas, quando o IEF decide concursar novos guarda parques, dificilmente o pessoal das comunidades locais consegue ser admitido – têm o conhecimento prático, mas não a instrução acadêmica suficiente.
Com o aumento da escolaridade, os parques dispõem hoje de agrônomos, engenheiros e biólogos contratados, porém sem a vivência da natureza onde irão trabalhar.
E nem todos os parques costumam vigiar os caçadores. O desaparecimento da fauna é menos percebido por exemplo do que a degradação visual da flora, seja pelo incêndio ou pela mineração. E os riscos envolvidos na fiscalização fazem muitos gestores se esquivarem dela.
Assim, vão desaparecendo os cachalotes, os peixes boi, as tartarugas oliva, as ararinhas azuis, os patos mergulhões, os cachorros vinagre, os tatus canastra e os gatos maracajá. E o mundo, que acreditamos tão rico em bens, vai ficando tão pobre em vida.