Existe nos Estados Unidos uma organização que afirma ser o único órgão federal do país dedicado exclusivamente à conservação, proteção e melhoria do ambiente: o FWS (Fish and Wildlife Service) ou Departamento de Pesca e Vida Selvagem.
Ele existe há mais de um século e meio, emprega oito mil pessoas e tem uma enorme abrangência. Protege as aves migratórias, os mamíferos marinhos e terrestres, os recifes de corais, os animais aquáticos, as plantas e as florestas.
Como comparação, o nosso IBAMA utiliza mais de quatro mil empregados, com um orçamento de um terço do total do FWS. Mas note que não cabe ao FWS a proteção genérica do meio ambiente, que é função da agência EPA, como você verá a seguir. Também não administra os parques e monumentos nacionais americanos, apenas os 560 refúgios de vida silvestre.

Logo do FWS, o Departamento de Pesca e Vida Selvagem, onde Rachel Carson trabalhou por 17 anos.
Existe no Brasil um total de 330 unidades de conservação, distribuídas entre parques, reservas, monumentos e refúgios, mas destas só 9 são REVIS, um tipo de área protegida que ainda está sendo implantada no país. Aliás, por influência dos refúgios norte-americanos. Poderia continuar falando dessas unidades de conservação, mas o foco deste artigo é outro.
Ele trata de uma moça que começou a trabalhar aos 28 anos no FWS. Ela se chamava Rachel Carson e se transformou num ícone do movimento ambiental americano.
Rachel veio de uma família de posses modestas da Pensilvânia – ela adorava ler, escrever e cuidar da fazendinha dos pais. Durante sua vida, o vilarejo onde nasceu foi sendo afetado pela industrialização de Pittsburgh, a capital do aço.
Cercada por duas usinas elétricas a carvão, a pequenina Springdale acabou tendo o ar contaminado, o rio poluído e o solo desertificado. Veja depois de onde ela tirou o exemplo do belo e perturbador capítulo inicial de seu mais famoso livro.

Esta é a casa em Springdale, na Pensilvânia, onde Carson viveu a juventude. A região foi degradada pela poluição.
Rachel formou-se com louvor em Biologia Marinha, mas não pôde concluir seu doutorado por falta de recursos. Nessa época, o FWS pretendia desenvolver um programa educativo semanal de rádio sobre a vida marinha. E Rachel foi contratada como estagiária. Logo em seguida, foi a primeira colocada num concurso aberto pela instituição, uma raridade na época.
Ela tinha como função principal a geração do material de divulgação do FWS. Isto a pôs em contato com uma diversidade de assuntos e de pesquisadores. Mais tarde, Rachel tentou deixar a instituição, mas não havia então empregos para naturalistas no país.
O grande programa científico da época era o Projeto Manhattan, do qual resultou a bomba atômica do Japão. Rachel se tornou editora chefe do FWS e escreveu o primeiro dos livros do que veio a ser sua trilogia sobre o mar.
Em 1952, quando tinha 45 anos, Rachel enfim deixou o FWS e passou a dedicar-se em tempo integral à literatura e à pesquisa. Sua obra marinha teve grande sucesso e criou os meios para que ela se debruçasse sobre os temas ligados à defesa da natureza.
Mas sua vida familiar foi sofrida: perdeu o pai em 1935 e as sobrinhas em 1957, deixando um órfão que perfilhou. Ela teve também de cuidar da mãe idosa – e Rachel não tinha nem recursos nem saúde para tal.

A popular trilogia dos livros de Rachel Carson sobre o mar, publicados entre 1941 e 1955.
Em 1962 publicou o livro Silent Spring ou Primavera Silenciosa. Ele descreveu os efeitos nocivos dos pesticidas como o DDT, de uma forma tão magnífica que foi capaz de motivar o surgimento da consciência ambientalista mundial. Rachel não foi a primeira pessoa preocupada com os efeitos do DDT, mas a combinação de seu conhecimento científico com sua prosa poética permitiu atingir uma enorme audiência.
Desde 1940 Rachel Carson tinha suspeitas sobre o uso danoso dos pesticidas à base de cloro e fósforo, em especial o DDT. Mas o ambiente econômico e psicológico dos anos 1950-60 nos Estados Unidos era contrário ao ativismo ambiental. Deixe-me explicar porquê.
Os Estados Unidos eram uma nação jovem e triunfal, que havia ganho uma Guerra Mundial contra as nações da Europa da qual sua cultura era originária. O crescimento urbano e rural do país foi impressionante, como resultado do chamado baby boom, o aumento demográfico.
O país necessitava de mais alimentos, que seriam fornecidos pela agricultura nacional, turbinada pelos adubos e pesticidas. A indústia química que os produzia teve um desenvolvimento gigantesco, gerando poderosos conglomerados.
Eu penso que os anos de 1960 foram o apogeu da América idílica, ainda embalada no sonho do progresso inocente, das comunidades solidárias, da ética do trabalho e do conformismo social.
Parecido com a nostálgica lembrança de um certo país que ousava propor que ameo-o ou deixe-o, enquanto devastava a Floresta Amazônica, sob o lema de terra sem homens para homens sem terra. Você sabe o resultado.

Logo após a II Guerra Mundial, o DDT era visto como um químico maravilhoso, salvando vidas e protegendo lavouras.
Mas dois eventos contemporâneos contribuíram para alertar a população sobre os perigos das substâncias químicas. Foi constatado que as safras de oxicocos (cranberries) de 1957-59 continham altas doses de um herbicida que causava câncer nas cobaias. A descoberta transformou-se num escândalo e as vendas da fruta foram proibidas em todo o país.
A talidomida era um sedativo e anti-inflamatório desenvolvido pelos nazistas – mais tarde, foi revelado que causava deformações congênitas em recém-nascidos. Em 1962 sua comercialização foi proibida nos EUA, graças ao corajoso trabalho da farmacêutica Frances Kelsey. Isto contribuiu para a vantajosa comparação de Carson com Kelsey.
O capítulo inicial de Silent Spring chama-se Uma Fábula para o Amanhã – na realidade, foi escrito por último. De forma lírica, Carson nele descreve um lugar no coração do seu país onde a vida existia em harmonia com o ambiente.
Porém uma praga se infiltra e corrompe a região, fazendo as crias nas fazendas morrerem ou definharem, os peixes desaparecerem, as árvores envelhecerem e os pássaros moribundos não mais voarem. Era uma primavera sem vozes, ela escreveu.
Essa frase é especialmente válida para os pintarroxos, aves semelhantes aos nossos pintassilgos. A chegada de seu canto curto e agudo indica aos norte-americanos que o inverno acabou e agora começa a primavera. Mas, numa região do país, a pulverização dos olmos (árvore comum nas cidades americanas) dizimou a espécie. Então, o canto das aves foi emudecido e a primavera começou em silêncio.
Carson abordou no livro a destruiçao da fauna e da flora pelos efeitos dos resíduos dos pesticidas. E a intoxicação dos seres humanos, inclusive pelo leite materno. Ela mostrou a correlação entre resíduos de agrotóxicos em alimentos e doenças crônicas da população, incluindo o câncer. Não deviam ser chamados de inseticidas, e sim de biocidas, ela disse.

O DDT é um composto organoclorado, a partir do benzeno, etano e cloro. O uso como pesticida agrícola foi banido em 1972. Porém continuou sendo exportado.
Pesticidas como o DDT eram especialmente nefastos por favorecerem a criação de gerações de pragas evolutivamente resistentes, por atacarem de forma indiscriminada vidas nocivas ou benéficas, por se acumularem progressivamente ao longo da cadeia alimentar dos animais e por serem capazes de persistir longamente na natureza. Banido nos EUA, continuou sendo exportado, contaminando todo o mundo.
Silent Spring teve vários méritos. O primeiro, de denunciar ao público o perigo de vida sobre a população pelo uso abusivo dos agrotóxicos. O segundo, por revelar a destruição da fauna, principalmente de aves e peixes. O terceiro, de pressionar as autoridades para criação de leis mais severas contra os pesticidas. E quarto, pela formação de uma consciência nacional quanto à proteção do meio ambiente. Rachel Carson foi vitoriosa em todos esses itens (adaptado do texto de Romero de Moura da UFPE).
Num certo sentido, tudo começou com o programa de erradicação da mariposa cigana. Embora nativa da Europa, já vivia no nordeste dos Estados Unidos há um século, sem na verdade causar grandes danos às florestas.
Como tantos outros programas da época, o Ministério da Agricultura lançou a partir de 1956 uma série anual de pulverizações aéreas, intensas e indiscriminadas. Ela atingiu algo como 300 mil km não só de florestas, mas de subúrbios, fazendas, lagos, campos e pântanos.
O resultado foi catastrófico, com a queima das plantações, a contaminação do leite, a morte dos animais de criação, a destruição da vida selvagem. E a mariposa cigana reapareceu – e em grandes quantidades.
Durante mais de uma década, programas como este corromperam a natureza, dizimando plantas e animais, sem jamais erradicar as espécies consideradas nocivas.

Rachel Carson (1907-1964) em reportagem do The New York Times. A foto é da época da publicação de Silent Spring.
Então, Rachel Carson foi capaz pela primeira vez no país de relatar de forma concisa, serena e completa estes ataques contra a vida. A impressão de que Carson simplesmente propunha banir o uso dos pesticidas é falsa. Ela recomendava sua aplicação controlada. E, sobretudo, o uso de meios naturais, como bactérias, insetos, aves ou mamíferos predadores que pudessem controlar as pragas.
Uma das variantes seria a esterilização de insetos machos que competiriam com os selvagens, aumentando a proporção de ovos inférteis e diminuindo ou extinguindo a população nociva. Ou o uso de substâncias atraentes que fossem venenosas a espécies específicas. Ou ainda a aplicação do som repelente ou atrativo. Estes processos teriam as vantagens de serem baratos, permanentes, específicos e atóxicos.
No fim do seu livro, Carson escreveu: O “controle da natureza” é uma frase que exprime arrogância, nascida da era neandertal da biologia e filosofia, quando se supunha que a natureza existisse para a conveniência do ser humano. (…) Nossa preocupante tragédia é que uma ciência tão primitiva se tenha armado com as mais modernas e terríveis armas (químicas), e que, ao voltá-las contra os insetos, tenham-nas voltado também contra a Terra.

Painel do Rachel Carson College, que pertence à Universidade da Califórnia e é focado em Meio Ambiente e Sociedade.
Como bióloga marinha, Rachel Carson não possuía necessariamente toda a formação científica para debater os assuntos que abordou. Ela teve o cuidado de se apoiar em muitos cientistas com especialidades diferentes da sua, para sustentar a batalha contra o establishment americano.
Na realidade, provavelmente já a partir de 1957 Carson vinha sendo atacada, contestada e difamada. Até sua morte, teve a oposição do Ministério da Agricultura e das gigantescas Du Pont e American Cyanamid, passando pela mídia, os cientistas e os políticos. Dizia-se dela que uma mulher que gostava de gatos só podia mesmo ser suspeita.

Sede em Washington da EPA, agência para a proteção do ambiente dos Estados Unidos.
Crescia no país o descontentamento com a passividade dos políticos diante de denúncias veementes como as de Carson. Esta inércia mobilizou o movimento ambientalista.
Na primavera de 1970 o povo americano se aglomerou para celebrar o primeiro Dia da Terra. Neste mesmo ano foi criado a EPA, a poderosa agência de proteção ambiental, para zelar pela saúde e o ambiente. Sem a contribuição de Rachel Carson, essa história teria sido diferente. O mais nobre dos salões na sede da EPA leva o seu nome.
Foi também nesta época que o Congresso aprovou por quase unanimidade a Lei das Espécies Ameaçadas, considerada a mais importante peça legal no país para a conservação ambiental. Entre outros casos, ela contribuiu para a recuperação de espécies de jacarés, baleias, águias, falcões e pelicanos que, sem ela, talvez hoje não mais existissem.
Mas Silent Spring trouxe uma outra dimensão, mais genérica e abrangente. Nela Rachel Carson abordou a questão sobre o direito da humanidade de controlar a natureza – a decisão sobre a destruição da vida não humana. Mostrou que a ecologia do corpo humano o tornava transparente ao ambiente e vulnerável aos venenos.
E afirmou que os sistemas biológicos eram dinâmicos e interligados – e que o homem poderia estar arruinando seu próprio futuro. Rachel Carson criou uma obra revolucionária, o livro-texto sobre o futuro de toda a vida na Terra.

Líder hippie discursando para a multidão entusiasmada da Filadélfia no primeiro Dia da Terra.
A escritora Nancy Koehn comenta que Carson foi uma pessoa introvertida, sem as qualidades de carisma e agressividade associadas aos líderes. Era uma mulher franzina, que lutou bravamente contra uma doença que a consumiu.
Confrontou de maneira discreta e educada os interesses estabelecidos da indústria, da burocracia e da ciência. Suportou com dignidade as absurdas acusações de que fosse comunista, histérica e homossexual.
Ela trabalhou privadamente, sem o apoio de qualquer emprego remunerador ou organização poderosa. Fez carreira como uma mulher ecologista, quando essas duas situações eram depreciadas.
Sua formação em biologia não era valorizada diante das aplicações nucleares da época. E sequer dispunha de grandes credenciais acadêmicas, pois não alcançara o doutorado.
Ironicamente, é possível que tenha contraído câncer pela exposição às substâncias tóxicas que tanto denunciou. Em 1960 ele começou a se espalhar por seu corpo.
Neste período, foi trabalhoso rever seu segundo livro da trilogia, bem como terminar e publicar Silent Spring. A defesa e a divulgação de sua obra, as inúmeras entrevistas junto á mídia e os depoimentos perante os comitês oficiais minaram sua escassa energia.

Rachel Carson depondo no Senado em 1963, um ano antes de sua morte.
E foi na primavera de 1964 que a morte prematura finalmente silenciou sua voz.
Gostaria de terminar com o comentário do conhecido biólogo e ecologista Edward Wilson, que aparece como posfácio ao grande livro de Carson:
Os exemplos e argumentos que (o livro) contém são lições atemporais do tipo que precisamos reexaminar. São atemporais, também, porque a batalha que Rachel Carson ajudou a travar em favor do meio ambiente está longe de ter sido ganha.
Ainda estamos envenenando o ar e a água, e corroendo a biosfera, embora menos do que se Rachel Carson não tivesse escrito. Hoje entendemos melhor do que nunca porque precisamos insistir até o fim no esforço para salvar o ambiente, de acordo com a mente e o espírito da corajosa autora de Primavera Silenciosa.