Oswaldo Cruz não trabalhou sozinho, pois organizou à sua volta uma equipe de excelentes higienistas. Esses homens fizeram parte de um importante projeto nacionalista – como disse João Meirelles, não enfrentaram apenas o Brasil doente, mas a falta de um projeto nacional.
Belisário Penna (1868-1939) foi um médico mineiro cuja morte da esposa por febre amarela fez com que se dedicasse à saúde pública. Mudou-se para o Rio no início do século e participou das campanhas sanitárias de Oswaldo Cruz, bem como de suas expedições. Foi um dos fundadores da Liga Pró Saneamento, era um escritor de grande eloquência e um político nacionalista.
O mineiro Carlos Chagas (1878-1934) foi um aluno irregular e boêmio, até encontrar sua vocação na medicina. Contratado por Oswaldo Cruz, debelou a malária no interior de São Paulo, ao concentrar esforços nos locais críticos, ao invés de dispersá-los. Sua ação enérgica foi fundamental para erradicar em dois meses a gripe espanhola no Rio de Janeiro em 1918.
Chagas foi o segundo diretor da Fiocruz, onde trabalhou até sua morte em 1934. Consolidou o modelo de autonomia do Instituto, até que o Estado Novo de Vargas esvaziou sua liderança e empobreceu sua atuação. O Instituto dedicava-se com competência não só à pesquisa, mas ao ensino e à produção.
Chagas foi uma pessoa notável, na centralização e interiorização dos programas sanitários do país, na criação de seções médicas especializadas no Instituto, na produção de vacinas e medicamentos, no controle de qualidade da medicina brasileira, na introdução dos ensinos de enfermagem e de higiene e saúde pública.
Mas sua mais conhecida atuação foi na doença que levou o seu nome – aliás, contra a sua vontade. Ele foi o primeiro e até hoje o único cientista na história da medicina a descrever o ciclo completo de uma doença infecciosa.
Na cidade mineira de Lassance, onde grassava a malária, ele descobriu um protozoário (patógeno) transmitido por um inseto (vetor) que infectava animais domésticos (hospedeiros).
Encontrou a menina Berenice acometida de febre e anemia – e a partir dela pesquisou cerca de trinta casos e realizou uma centena de autópsias, que lhe permitiram descrever os aspectos clínicos e epidemiológicos da doença.
Um só homem realizou de 1907 a 1909 a análise completa de uma nova doença. Embora nominado duas (dizem outros, quatro) vezes, nunca recebeu o Nobel de Medicina – Chagas tinha opositores no Brasil e não pertencia à comunidade científica europeia ou americana.
A equipe do Instituto Oswaldo Cruz participou de cinco expedições ao Norte do país, que envolveram de 1905 a 1913 mais de uma dúzia de colaboradores. Este trabalho revelou a situação miserável do nosso interior.
A primeira destas iniciativas visitou mais de vinte portos, desde o Sudeste até a Amazônia. A segunda procurou debelar os focos de malária nos acampamentos da Estrada de Ferro Madeira-Mamoré, então em construção. A seguinte percorreu a região dos seringais do vale do Amazonas e, as duas outras, progrediram desde o Tocantins até Belém, uma capital assolada pela febre amarela.
Essas expedições estimularam Edgar Roquette-Pinto (1884-1954) a pesquisar o nosso interior, projeto ao qual dedicou três décadas. Mas ele é mais conhecido por ter inaugurado o rádio no Brasil, bem como apoiado a realização de centenas de documentários visuais entre as décadas de 1930-60. A Rádio MEC foi doada por ele ao Governo brasileiro.
Entrementes, tanto as cidades imundas como os sertões abandonados eram focos de terríveis infecções. Como escreveu Oswaldo Cruz à sua esposa acerca de Porto Velho: Na cidade não há um só habitante filho do lugar. Todas as crianças que ali nascem morrem infalivelmente e as poucas ali nascidas estão de tal modo doentes que fatalmente morrerão em breve. A imundície é incrível (…) e o mau cheiro é de tal ordem que quase se fica sufocado. Estou horrorizado com tanta porcaria!
Ele assim comentou a situação de Santo Antônio, povoado de ingresso naquela região: A vila não tem esgotos, nem água canalizada, nem iluminação de qualquer natureza. O lixo e todos os produtos da vida vegetativa são atirados às ruas (…) Encontram-se colinas de lixo apoiadas às paredes das habitações (…) O gado é abatido em plena rua á carabina e as porções não aproveitadas (…) são abandonadas no próprio local (…) num lago de sangue. Tudo apodrece junto às habitações e o fétido que se desprende é indescritível. (…) Sem o mínimo exagero, pode-se afirmar que toda a população (…) está infectada.
Os relatórios do Instituto chocaram o país. Eles levaram o médico Miguel Pereira (1871-1918) a pronunciar seu célebre discurso de 1916, considerado o marco fundador do movimento sanitarista brasileiro:
O Brasil é ainda um imenso hospital.(…) Parte, e parte ponderável, dessa brava gente não se levantaria; inválidos, exangues, esgotados pela malária; estropiados e arrasados pela moléstia; corroídos pela sífilis e pela lepra; devastados pelo alcoolismo; chupados pela fome, ignorantes, abandonados, sem ideal e sem letras, não poderiam estes tristes deslembrados se erguer de sua modorra.
Foi assim que o Instituto embasou todo o movimento de saúde pública do Brasil, tornou nosso interior remoto mais conhecido e implantou uma nova condição de higiene e saneamento nacional.
Mas eu queria agora refletir sobre as atividades desses sanitaristas pioneiros. É curioso como, nas suas expedições, eles praticam uma espécie de nacionalismo cultural – buscam entender a nacionalidade, a formação do país, o significado dos sertões, a vida dos caboclos, o trabalho, a moradia, a alimentação – a realidade mais ampla. Funcionam não só como cientistas mas também como geógrafos, políticos, etnógrafos.
Pergunto a você se isso seria hoje possível, e acho que não. O cientista se especializou, seu conhecimento se tornou profundo e estreito.
E por que não naquela época? Porque os bravos homens cuja vida relatei eram também a nossa elite – e como as elites deveriam ser. A meu ver, a atual elite brasileira é maior apenas quanto à riqueza, não à cultura. Sabem hoje menos do que nossos heróis sabiam um século atrás.
Mas também reflito sobre uma outra situação. Vital Brasil distribuía em São Paulo caixas de madeira, para que a população interiorana pudesse nelas enviar ao Instituto Butantã as serpentes que tivesse capturado. Meu pai era uma dessas pessoas, cheguei a vê-lo apanhando com agilidade uma cobra, e ele fez isso muitas outras vezes.
Mas provavelmente neste aspecto ele não seria diferente de tantos outros fazendeiros que colaboravam com o Butantã. Sabe por quê? Pois eram todos patriotas, e no melhor sentido da palavra. O Brasil era um país que ainda tinha patriotas um século atrás.