Pico do Jaraguá: A rota Sul

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Durante as viagens de trem que faço pela Linha Rubi meu olhar sempre é hipnotizado pela paisagem emoldurada na janela, no trajeto situado entre as estações Vila Clarice e Vila Aurora. Ali, a silhueta escarpada e proeminente do Pico do Jaraguá eleva-se no horizonte dominando todo quadrante oeste. É um cenário que encanta, pois se aprecia uma crista erguendo-se em suaves e verdes colinas ao sul, pra depois culminar nos imponentes dois picos coroados por torres deste belo cartão de São Paulo. Sempre flertei também um novo trajeto pra chegar ao alto dos 1135m do pico partindo do contraforte sul. Uma rota diferente das tradicionais “Trilha do Pai Zé” e da “Estrada Turística do Jaraguá”, caminhos oficiais ao topo da montanha. Pois bem, este é o relato fiel dessa aventurinha auto-imposta, uma descompromissada empreitada solo ao ponto mais alto de Sampa.

Sem pressa de levantar cedo me pirulitei pela Linha Rubi da CPTM e após uma viagem tranquila saltei na Est. Vila Clarice, as 9:45hr. Estação minúscula enfiada num buraco, subi as escadas e tomei a primeira via a direita até o final, no caso, a Rua Maria Jose de Vasconcelos Mankel. Cruzei uma região predominantemente residencial, a tal Vila Clarice, indo em direção á Rod. dos Bandeirantes (SP-348), quando tive o primeiro contato visual do meu objetivo daquele dia. Ali, o cenário era uma versão mais próxima e detalhada daquela avistada do trem, onde a silhueta escarpada de puro verde elevava-se em dois proeminentes picos, recortando o céu azul no horizonte.

crista sul do Pico do Jaraguá

Passei por baixo da SP-348 e desci a primeira rua, indo em direção a “Estrada Turística do Jaraguá”. Aqui, ao invés de tocar pro norte, sentido portaria do parque, resolvi descer e ir pro lado contrário, sentido bairro Nova Esperança, lugar que margeia o limite sul do parque.  Até lá já se ganha altitude de forma imperceptível, sempre indo na direção oeste. Casas, vendinhas, crianças brincando, jovens tocando funk, etc.. enfim, mais um bairro residencial periférico da Zona Norte.

Pois bem, ladeando as ruelas do bairro percebe-se o cercado do parque barrando acesso, enquanto o outro lado mostra-se tomado de mato e mais mato. Mas bordejando este cercado logo se encontra um acesso, um buraco na mata em forma de entrada,  e uma trilha logo a seguir. Acompanhando esta precária vereda cruzo uma decrépita pinguela, por onde corre um correguinho que desce a serra, sempre acompanhando o cercado na direção sudoeste. Desvio de muita mata tombada enquanto meus pés chapinham num chão de terra bem mais úmido, afinal toda umidade da serra parece se acumular ali. Saltando brejos e trechos enlameados, logo ganho o alto da encosta mais seca e prossigo minha marcha rente a cerca.

na trilha

Dito e feito, são exatas 10:30hr e a trilha me deixa noutra maior (e bem mais pisada), que parece vir de bairros limítrofes a oeste. Pronto, aqui não tem mais segredo. Me mando então por essa via que segue sinuosa na direção norte, bordejando as encostas florestadas deste inicio de pernada enquanto se afasta do borburinho da urbe. No trajeto tropeço com uma oportuna bica, de onde escorre liquido precioso que pode abastecer cantis vazios. Mais adiante me deparo com clareiras, vestígios de fogueira e páginas da Bíblia, indicando ali ser lugar de pregação de religiosos.

A picada desvia então pra nordeste e desemboca noutra maior, que segue na direção desejada, ou seja, pro norte. Ela desce bordejando um vale, mas retoma a suave ascensão, passando por outras clareiras menores onde reconheço tocaias de caçador e restos de acampamentos mais rústicos. Conforme avanço morro acima a vereda vai ficando cada vez menos pisada, os vestígios de gente, lixo e fogueira somem e logo me deparo com uma pirambeira de mato á frente. Pronto, consegui o que queria, que era avançar o máximo serra adentro sem ralação de mato. Agora que venha a ralação propriamente dita.

acampamento

Prossegui então subindo aquela encosta, em formato de “V” e de inclinação amena,  pisando no chão coberto de folhas e galhos, desviando do arvoredo a minha frente neste primeiro trecho bem fácil e de ritmo até compassado. Mas conforme ganhava altitude a vegetação tornava-se mais farta e densa, aumentando os desvios a minha frente. Logicamente que subia olhando pra bússola, que não podia sair da rota norte. E assim fui avançando lentamente ditando certo ritmo á chinelada.

aqui já fecha a trilha

Não tardou pra surgirem voçorocas de taquarinhas e galhos barrando acesso. Ali não bastou desviar e teve que abrir caminho com ambas mãos, dando origem aos primeiros arranhões deste que vos escreve. Cruzado essas voçorocas surgiram gigantes da floresta tombados, que tive que saltar ou me agachar. Em tempo, fui deixando marcações por precaução durante todo caminho, no caso de por ventura precisar retornar. Felizmente isso não foi necessário.

Alcancei um trecho mais nivelado dezenas de metros acima, onde a vegetação arbustiva baixa não oferecia muitos retrasos. E assim prossegui minha rota norte pela encosta, evitando grandes desvios pros fundos vales a minha direita. Atingi então um suave selado que bastou descer e subir novamente, onde encontrei um filete de água que escorria da serra. Cruzei uma enorme vala que parecia escondida na folhagem do chão, redobrando minha atenção ao caminho feito. E lá fui eu dando continuidade a minha subida intermitente, agora aparentemente com trajeto mais limpo que o anterior mas ainda assim engolindo muitas teias de aranha e trazendo carrapitchos a tiracolo.

repleto de valas e buracos no caminho

Mais acima o farto suor escorrendo no rosto me obrigou a um breve pit-stop de descanso num tronco caído. Hidratei o corpo, limpei o mato sobre o corpo e belisquei um delicioso sanduíche. Ali tive um sustinho ao sentir algo se mexendo e fugindo em disparada bem a minha esquerda, mas acredito que o tal bicho devia estar bem mais assustado com aquele marmanjo barbado, sujo e cabeludo invadindo seu território. O silêncio daquele bela encosta do morro, onde o arvoredo filtrava lindamente os raios do sol, era só rompido pelos eventuais ruídos vindos da urbe ou pelo canto dos pássaros.

Prossegui minha subida naquele compasso, ganhando altitude e descendo os cocorutos abaulados seguintes, que se sucederam com bastante frequência. O terreno então empinou de vez e me obrigou a começar a subir me firmando no arvoredo em volta. Pelas frestas da vegetação conseguia detalhes de Sampa emoldurados de verde, dando uma noção do quanto havia ganho em altitude. E assim a subida prosseguiu nesse ritmo, alternando escalaminhada e chinelada convencional, mas sem perder meu norte. Atingi inclusive um cocoruto rochoso onde pude sentar e ter uma vista privilegiada da cidade a meus pés. E, olhando pra cima, sabia que pouco me faltava pra cair no asfalto uma vez que a vegetação já mudava praquela típica de altitude, mais baixa, espinhenta e de arbustos ressequidos.

escala-mato final escala-mato final

E assim, após um último trecho de escala-mato relativamente fácil, ganho o asfalto da “Estrada Turística do Jaraguá” pouco antes das 14hrs, com sol a pino na cachola. Pelos meus cálculos devia estar acima dos 900m e creio que meu desnível pelo mato não tenha ultrapassado os 200m. Daqui eu poderia ter prosseguido subindo a encosta, morro acima, alternando capim e rocha, em direção ás torres. No entanto, a fiscalização rigorosa da guarda ambiental, as trocentas câmeras e sensores que cercam o topo diluem rapidamente essa idéia. Afinal, não havia necessidade de voltar num camburão prestando esclarecimentos, e minha intenção de alcançar a “Estrada Turística” pelo sul estava concluída.

Sacudi a sujeira/mato sobre mim e prossegui a chinelada pelo asfalto da estrada, cruzando com alguns bikers, caminhantes e veículos descendo no sentido contrário.  Assim, num piscar de olhos, a via bordeja o restante do pico na direção leste, no exato momento em que é tangenciada a “Trilha do Pai Zé”. Neste ponto os horizontes se ampliam de tal modo que revelam todo quadrante norte. Polvilho, Perus, Mairiporã e a porção sudoeste da Serra da Cantareira são perfeitamente visíveis daqui. Mas o que mais impressiona é o alto dos 1127m do cume do Pico do Papagaio, um dos picos oficiais do Jaraguá, de onde se eleva a torre da TV Cultura, cujo acesso é proibido aos visitantes.

caindo na Estrada Turística

Neste ponto também o caminho nivela e, 50m adiante, a estrada finda num estacionamento bem do lado do centro de informações.  Bebi litros de água nas bicas perto dos banheiros, mas me impressionou a ausência dos sempre onipresentes sagüizinhos-de-tufo-branco, geralmente “mendigando” comida no arvoredo ao redor.  Também pudera, o Jaraguá foi um dos parques acometidos por surtos de febre amarela e, consequentemente, da redução considerável de sua população de primatas. Sobrou então pros quatis, espécie que nunca tinha visto aqui, aparecerem em bando pra tentar fisgar as sobras dos turistas.

Subi sem pressa os intermináveis 243 degraus que me deixam, enfim, no alto dos 1135m do topo derradeiro do Pico do Jaraguá, dominado pelas torres da TV Bandeirantes. Uma vez no alto e sentindo a brisa soprando rosto, me presenteio com um longo e merecido descanso. Olho pro celular enquanto mastigo uma maçã e vejo que é pouco antes das 15hr. A atmosfera límpida e translúcida daquela tarde permite uma vista magnífica da cidade de São Paulo, parte de Osasco, as rodovias Anhangüera, Bandeirantes e o Rodoanel. Com esforço é possível ver até o comecinho da faixa verde da Serra do Mar, ao longe. A oeste o destaque fica por conta do Jaraguá-Mirim e do Morro Doce, separando o Parque Imperial de Alphaville e Tamboré.

O descanso  estava bom, mas a chegada de turistas aos montes no mirante foi a deixa pra começar a descer tudo novamente. Logicamente que minha volta se deu pela tradicional “Trilha do Pai Zé” e incrivelmente em tempo bem mais reduzido que nas ocasiões anteriores que ali estivera. Assim, degraus de rocha e terra batida não tardam a se transformar num caminho suave e largo que abandona os campos altos e penetra na espessa floresta,  montanha abaixo.  Os sempre presentes macaquinhos deste trecho também sumiram, dando lugar á estúpidas jovens “antas” que flagrei riscando o tronco das árvores como registro de sua passagem no lugar.

Em menos de meia hora me vi pisando nos paralelepípedos do inicio da trilha e, na sequência, deixava os portões de entrada do parque, dando adeus ao lugar. Dali retomei o asfalto da “Estrada Turística” na direção sul até alcançar a passagem por baixo da Rod. Dos Bandeirantes, passando no caminho pelos decrépitos casebres dos índios guaranis que ainda habitam o sopé do Jaraguá. Dali até a estação Vila Clarice foi um piscar de olhos, uma vez que o celular escancarava exatas 16hrs.

Pra finalizar este relato quero deixar bem claro que não recomendo esta rota pro alto do pico a quem não fizer uso de algum aparelho de localização ou noções básicas de navegação. Elas são extremamente necessárias dentro do mato, onde não há referência alguma e tudo ao redor parece igual. Foi apenas a desfeita de uma antiga vontade, um desejo particular, de subir o “senhor do vale” (Jaraguá, em tupi-guarani) de uma forma tão diferenciada quanto aventureira. Quem sabe da próxima vez me anime e resolva fazer o mesmo, mas desta vez do contraforte norte? Só o tempo dirá…

topo do Jaraguá

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Sobre o autor

Jorge Soto é mochileiro, trilheiro e montanhista desde 1993. Natural de Santiago, Chile, reside atualmente em São Paulo. Designer e ilustrador por profissão, ele adora trilhar por lugares inusitados bem próximos da urbe e disponibilizar as informações á comunidade outdoor.

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