Relatos Pioneiros

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Os relatos de aventuras em terras distantes tornaram-se muito populares na Europa a partir do Século do Descobrimento. Naquela época, não só os leitores pouco podiam viajar além de suas fronteiras, como tinham enorme interesse pelos mundos distantes da Ásia, África e América.

Países que eram habitados por seres com estranhos costumes, em ambientes onde animais fantásticos viviam à sombra de vegetações grandiosas. Além das perigosas condições das navegações, estes eram os principais ingredientes dos relatos de viagem, muitos dos quais mirabolantes.

Vocês sabem que a primeira descrição sobre o Brasil foi feita em 1500 pelo escrivão da frota portuguesa Pero Vaz de Caminha. Ele conta com precisão e fluência os primeiros dez dias que os portugueses passaram na então chamada Ilha de Vera Cruz. Impressiona-se com a completa nudez dos índios, com seu aspecto limpo e saudável, sua gordura e formosura, sua mansidão como se fossem mais amigos nossos do que nós seus.

A caravela de Cabral, ao aportar no Brasil. Eram embarcações pequenas e ágeis, com o tamanho de dois ônibus urbanos. Foram usadas por cinco séculos pelos portugueses.

Seu comentário sobre as índias é saboroso: são admiradas como bem novinhas e gentis, com cabelos muito pretos e compridos pelas costas, e suas vergonhas tão altas e tão cerradinhas e tão limpas das cabeleiras que, de as nós muito bem olharmos, não se envergonhavam (…) porque certamente esta gente é boa e de bela simplicidade.

Vem no fim da carta a sua famosa observação sobre o espaço: A terra em si é de muitos bons ares frescos e temperados (…) Águas são muitas, infinitas. Em tal maneira é graciosa que, querendo-a aproveitar, tudo nela se dará (…), contudo, o melhor fruto que dela se pode tirar parece-me que será salvar esta gente.

Porém, antes de salvar os nossos índios, convinha aos colonizadores explorar a terra deles. Não apenas os portugueses, mas também em especial os franceses cobiçavam as suas riquezas.

O Almirante Nicolas de Villegagnon já tinha visitado secretamente o litoral de Cabo Frio e escolhido a Baía de Guanabara para fundar a sede do que então se chamou de França Antártica. Embora acolhedora, a baía era evitada pelos portugueses devido à hostilidade dos índios tupinambás.

Seu associado, o frade André Thévet, havia estado por duas vezes na Baía de Guanabara, reconhecido a região e estabelecido amizade com os índios. Pouco participou em seguida dos esforços franceses, pois ficou por apenas três meses no Brasil. Isto não o impediu de publicar em 1557 um valioso (e mentiroso) relato sobre o Brasil, talvez o primeiro após a carta de Caminha.

A França não dispunha dos recursos solicitados por Villegagnon para sua colônia. Estes vieram da emigração dos calvinistas de Genebra, em evidente conflito com os católicos que já aqui estavam (na época, religião era coisa séria).

Gravura do Forte de Villegagnon. Este almirante francês construiu o forte na entrada da Baía da Guanabara em 1555. Resistiu por cinco anos ao assédio português, até que foi destruído por Mem de Sá.

A França Antártica durou quinze anos, até que seus integrantes fossem duramente expulsos pelas forças de Mem de Sá. Porém, entre os protestantes que aportaram, estava um certo Jean de Léry, um dos assuntos desta coluna.

Léry era um jovem artesão e seminarista quando chegou ao Brasil em 1556, após quatro meses no mar. Instalou-se na ilha que Villlegagnon fez fortificar, na entrada da Baía de Guanabara.

Seu grupo de calvinistas foi acusado de heresia e expulso da ilha, passando a viver em terra firme junto aos tupinambás. Após cerca de um ano no Brasil, conseguiram voltar para a França numa viagem dramática.

Na França, o ódio religioso fez com que os católicos assassinassem os protestantes na chamada Noite de São Bartolomeu em 1572. Já estava nesta época envolta numa guerra civil, que duraria por mais de trinta anos e arrasaria o país. Na realidade, as hostilidades perduraram depois por mais 200 anos, só terminando no fim do século XVIII.

Jean de Léry foi vítima deste conflito e quase foi capturado no cerco que os católicos realizaram contra a cidade onde morava. Ele usou sua experiência nos trópicos para fazer os moradores resistirem ao assédio, até que este foi abandonado.

André Thévet havia acusado injustamente os protestantes pelo fracasso da colônia francesa no Brasil. Léry decidiu então divulgar seu diário de viagem para contestá-lo. Mas o manuscrito se perdeu e só em 1578, quase vinte anos depois, pôde ser publicado como Viagem à Terra do Brasil. Fazia então quinze anos que Léry era pastor em Genebra. Ele continuou pregando, até falecer com quase 80 anos.

Jean de Léry (1536-1613) era um pastor e escritor protestante. Sua permanência por quase dois anos no Brasil foi assunto de um dos primeiros relatos sobre nosso país.

Talvez possa ser afirmado que o livro de Jean de Léry foi o primeiro relato extenso e detalhado sobre o Brasil. Seu autor foi um homem instruído e isento que narrou os nossos costumes, numa prosa objetiva e elegante: minha intenção e meu objetivo serão apenas contar o que pratiquei, vi, ouvi e observei (…) entre os selvagens americanos com os quais convivi.

Léry foi um observador curioso e organizado. Seu livro aborda em capítulos sucessivos a descrição dos indígenas e seus costumes (em especial guerras, casamentos e funerais), bem como a flora e a fauna, a música e a língua. Diferentemente de seus contemporâneos, Léry não mostra preconceito e sim simpatia em relação aos índios, apesar de suas práticas tão estranhas.

Comenta numa passagem famosa: quero responder aos que dizem que a convivência com esses selvagens nus, principalmente entre as mulheres, incita à lascívia e à luxúria. Mas direi que (…) a nudez grosseira das mulheres é muito menos atraente do que comumente imaginam. As (…) bagatelas com que as mulheres de cá se enfeitam e de que jamais se fartam são causas de males maiores do que a nudez habitual das índias, as quais, entretanto, nada devem às outras quanto à formosura.

Já se disse que este precioso livro busca recuperar uma presença perdida, como se a sua escrita fosse uma obra de luto, pela distância passada da vida que Léry levara naquele mundo mágico. E ele rememora saudosamente os selvagens quando diz que os vejo ainda diante dos olhos, terei deles para sempre a ideia e a imagem na mente.

Porém a cobiça francesa não acabou no episódio da França Antártica. No século XVIII, a cidade do Rio funcionava como entreposto do minério que descia das Minas Gerais. Com o objetivo de se apossar de seu ouro, o corsário Jean-François Duclerc a atacou em 1710. Mas sua pequena esquadra foi dominada pelos portugueses, que chacinaram algo como metade dos invasores.

René Duguay Troin (1673-1736) o comandante da esquadra francesa que conquistou o Rio de Janeiro, levando consigo um enorme resgate.

Passou-se pouco mais de um ano e o Rio veio a conhecer a notável figura de René Duguay-Trouin, outro corsário francês. Sua família era acostumada com os mares e, desde os 15 anos, ele embarcara numa vida de aventuras. Mas desta vez o empreendimento francês, financiado privadamente, era gigantesco: 17 embarcações, cerca de 750 canhões e quase 6 mil homens.

Dois séculos antes, Mem de Sá havia se valido de um nevoeiro para atacar a fortaleza de Villegagnon. Agora, Duguay-Touin surgiu de surpresa da névoa que envolvia uma vez mais a Baía de Guanabara para se apossar da cidade.

Homem corajoso, navegador competente e estrategista brilhante, atacou com uma incrível rapidez, escapou de emboscadas e negociou com cortesia e paciência um resgate gigantesco. Sua esquadra deixou a baía levando uma fortuna – e também uma francesa que Duguay-Trouin lá havia conhecido.

Nosso corsário esperava ser promovido a Almirante e incumbido de novas conquistas. Porém a França estava então empobrecida e sua façanha funcionou a rigor como um embaraço para o Rei que não desejava mais lutar.

Pelo último feito imortal da marinha do Rei, ele apenas foi nomeado Tenente, e isto quase vinte anos depois. Se não faleceu em batalha, Duguay-Troiun também não morreu rico – e sim pobre e quase esquecido, com pouco mais de 60 anos.

Porém Léry não foi o único, embora possa ter sido o melhor cronista deste mundo novo. O soldado mercenário alemão Hans Staden também esteve aqui, e por duas vezes, em Pernambuco e São Vicente.

Representação da brutalidade dos indígenas, conforme o relato do soldado alemão Hans Staden. Talvez a imagem que criou de um país exótico e selvagem perdure até hoje.

Na primeira viagem, combateu com sucesso os índios revoltosos. Na segunda, naufragou mas conseguiu chegar a nado na praia. O imprudente soldado foi capturado pelos tupinambás e aprisionado por meses em Ubatuba. Os índios pretendiam devorá-lo, mas sua bravura fez dele um troféu, até que pôde ser resgatado por mais um corsário francês.

Suas peripécias foram publicadas em 1557 sob o título de Duas Viagens ao Brasil. Os desenhos dos animais bizarros e os relatos dos rituais exóticos tornaram a obra muito popular. Criaram no imaginário europeu a ideia do Brasil como um país selvagem e sedutor.

Ao contrário de Staden, a obra de Gabriel Soares de Souza não teve sucesso algum. Ele era um colono português que viveu na Bahia por quase vinte anos a partir da década de 1560, enriquecendo como senhor de engenho. Voltou à Europa com o propósito de obter a permissão para explorar minas preciosas no Rio São Francisco.

Para justificar seu projeto, redigiu durante quatro anos um longo memorial. Disse ele que minha pretensão é manifestar a grandeza, fertilidade e outras grandes partes que tem (…) o Brasil, do que os Reis passados tanto se descuidaram; a El-Rei Nosso Senhor convém, e ao bem do seu serviço, que lhe mostre, por estas lembranças, os grandes merecimentos deste seu Estado.

O livro de Gabriel Soares de Souza (1540-1591), o último dos relatos sobre o Brasil no século do seu descobrimento.

Num estilo rude, o enorme Tratado Descritivo do Brasil de 1587 é considerado uma verdadeira enciclopédia do país, com cuidadosas observações sobre nossa geografia e história, sobre os rios e o relevo, a botânica e a zoologia, a agricultura e a medicina – em especial da Bahia. Ficou esquecido durante 300 anos, até ser recuperado no século XIX.

Gabriel Soares conseguiu afinal a concessão e embarcou para o Brasil. Naufragou na costa de Sergipe, mas conseguiu reunir de volta a sua expedição na Bahia. Morreu logo em seguida no sertão. Homem devoto e generoso, mandou que constassem de seu túmulo os dizeres aqui jaz um pecador.

E, tanto quanto eu saiba, terminam aqui os relatos pioneiros de nossa história colonial. Embora não incluam observações sobre a nova sociedade que lentamente surgia nesses trópicos, esboçam um retrato de um país em estado original, com seu povo e natureza ainda intocados.

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Sobre o autor

Nasci no Rio, vivo em São Paulo, mas meu lugar é em Minas. Fui casado algumas vezes e quase nunca fiquei solteiro. Meus três filhos vieram do primeiro casamento. Estudei engenharia e depois administração, e percebi que nenhuma delas seria o meu destino. Mas esta segunda carreira trouxe boa recompensa, então não a abandonei. Até que um dia, resultado do acaso e da curiosidade, encontrei na natureza a minha vocação. E, nela, de início principalmente as montanhas. Hoje, elas são acompanhadas por um grande interesse pelos ambientes naturais. Então, acho que me transformei naquela figura antiga e genérica do naturalista.

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