Ricardo Baltazar na Cordilheira Branca

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Depois de uma movimentada temporada na Patagônia, o escalador gaúcho Ricardo Baltazar retorna ao Alta Montanha, para narrar sua primeira visita à Cordilheira Branca, nos Andes Peruanos. Ricardo seguiu de carro desde o Brasil, junto com dois amigos e parceiros de escalada, o também gaúcho Érico Winkler e o argentino Gastón Riolla. Juntos, eles atravessaram a América do Sul, conhecendo lugares e pessoas, numa rica experiência pessoal.

Texto: Ricardo Baltazar

Introdução: Eduardo Prestes
 
A Cordilheira Branca é um trecho da Cordilheira dos Andes, na região de Ancash, no Peru. A Cordilheira Branca se organiza em torno da mais alta montanha peruana, o Huascarán (6768 m). Não há limites definidos, mas considera-se que ela possui cerca de 180 km no sentido norte-sul por cerca de 21 km no sentido leste-oeste. Isso significa que é uma área extensa, pontuada por cerca de 24 cumes com mais de 6000 m e muitas outras montanhas acima de 5000 m. O Parque Nacional Huascarán engloba quase toda a área entendida como parte da Cordilheira Branca. Entre as montanhas mais conhecidas da região estão, além do Huascarán, o Chopicalqui (6354 m), o Palcaraju (6274 m), o Chacraraju (6112 m) e o Alpamayo (5947 m), entre outros.  Além das montanhas, a paisagem é caracterizada por glaciares, lagunas e riachos caudalosos, correndo no fundo de vales estreitos, denominados “quebrada”.  O ponto de partida para as ascensões na Cordilheira Branca costuma ser a cidade de Huaraz (mais ao sul) ou Caraz (ao norte). Dali, os montanhistas se dirigem para as diferentes vilas e depois para as “quebradas”, a partir das quais se tem acesso às encostas das montanhas.  
 
O relato de Ricardo está dividido em 3 partes. Nesta primeira parte, ele escreve sobre o longo caminho do Brasil até as montanhas no Peru, passando antes por Argentina e Chile. A segunda parte será dedicada às montanhas da Quebrada Ishinca, onde se destacam o Tocllaraju e o Ranrapalca. Já a terceira parte traz a investida do trio de escaladores na Quebrada Paron, dominada pelos Chacraraju, Artesonraju, Pirâmide e Esfinge.
 
Pues, já em El Chaltén, durante a última temporada de verão, conversei com alguns amigos sobre a Cordilheira Branca, junto à cidade de Huaraz, no Peru. Uma investida na região parecia uma boa alternativa para mexer com o esqueleto no meio do ano. Pelas descrições, havia coisas interessantes por lá. Para mim, seria também uma oportunidade para treinar e melhorar minha técnica de escalada em gelo, fundamento obrigatório em ambientes alpinos. Na Patagônia, por exemplo, ser safo no gelo amplia muito o cardápio de vias. A idéia aos poucos amadureceu, apesar de meio maluca: seguir de carro desde o Brasil, passando por Argentina e Chile, até chegar aos Andes Peruanos. No cardápio, surf, escalada e o que mais viesse … 
 
Depois de um "vai-não-vai" (aquele problema de sempre,"fartura" de tudo), acabei enfiado num carro atrolhado de bugigangas, porcarias de todos os tipos, equipamentos de escalada, pranchas de surf, pontas, mutucas, "botellas" e comida estragada, rumo ao sonhado destino peruano: Huaraz, nossa terra prometida da vez !    
 
Meu parceiro na saída do Brasil foi o Érico, o famigerado "Cabrón", gaúcho de 26 anos e com muitas histórias para contar. Num Astra negro, atravessamos a Argentina numa carreira louca, para encontrar em Mendoza o terceiro integrante da roubada andina, o meu amigo Gaston, também conhecido por Rebufão. A alcunha já vem de Chaltén e é uma "homenagem" ao xará Gaston Rebufatt, famoso guia francês, parceiro de Lionel Terray nas décadas de 50 e 60. 
 
Há cerca de 2 anos, passei uma temporada em Mendoza, escalando em Los Arenales, fendas alucinantes e longas, hay cosas que es mejor no hablar. Por isso, nossa volta a Mendoza foi animada, reencontramos os "locos" todos, foram duas noites de "borrachera", nem lembro muita coisa, só sei que foi "movido".  Na terceira noite, tomamos o rumo da Cordilheira, em direção a Santiago. A estrada que cruza os Andes é alucinante, mas no inverno ela fecha seguidamente, devido ao acúmulo de neve. Neste último mês de junho, no entanto, nevou pouco na região e a estrada estava seca, passamos tranquilamente. O único incidente foi mesmo a aduana chilena, mochila no raio x, cachorros cheirando o carro, checagem de todos os documentos, aquele tratamento vip.     
 
Em Santiago, o Érico comprou uns equipamentos e logo seguimos para a costa, ao Pacífico. Tínhamos um contato em Maintecillo, uma praia um pouco ao norte de Valparaíso e Viña del Mar. Isso acabou rendendo uma parada de três dias na casa de uma amiga, rolou um surf (ondas pequenas, uma raridade no Chile) e confraternizações variadas. Nossa pré-temporada foi forte.
 
Seguindo nosso caminho para o norte, fomos percorrendo a costa chilena, gralhando até a fronteira com o Peru. Rodamos pelo Deserto de Atacama de dia, parando nas praias para dormir. O deserto é uma coisa esquisita, muito seco, não dá para entender o que fazem aquelas casas de barro perdidas naquele fim de mundo. E o mais incrível ainda, de vez em quando surgem uns andarilhos, caminhando em pleno deserto, calor infernal, uns espectros torrados pelo sol, não sei como não paramos para conversar com um deles. Foram dias e dias rodando na terra seca, impressiona muito o tamanho e a desolação do Atacama. Surfamos umas ondas em Caleta Camarones. Já o local mais visual onde pernoitamos foi o Parque Nacional Pan de Azucar, a meio caminho entre Santiago e a fronteira com o Peru. 
 
A coisa continuou também pela costa peruana, passando por praias conhecidas, como o balneário de Punta Hermosa, localizado a cerca de 45 km ao sul de Lima. Em Punta Rocas, fizemos um bom surf, foram 2 dias para destroçar os braços de tanto remar.   
 
Mas depois de muitas distrações e uns 18 dias de estrada, estava na hora de rumar para a Cordilheira. Foi mais um dia de viagem e uns 450 km a partir de Lima, para enfim chegarmos a Huaraz ! Terra de comida farta e barata, prato feito a 3 soles (uns R$ 2,30), "hospedaje" confortável a 10 soles, mulheres envergonhadas e muitas, muitas buzinadas. Lugar du caralho, muito irado, pêlo-duro se sente em casa. É uma cidade feia e desordenada, com uma população humilde e simpática. E come-se e dorme-se quase de graça. Para quem tem um couro curtido, é um El Dorado !
 
Já na primeira noite na cidade, havia uma grande festa na Plaza Central, alguma data importante ou aniversário de alguém, sei lá. Juntou uma multidão de "animales", bebendo "ron com gaseosa" em grandes quantidades. Logicamente, nós não ficamos para trás, e reivindicamos nossa cota. O resultado foi uma quebradeira digna de um filme de faroeste ou de zumbi, no country for old men. Lembro de ter escalado um caminhão-baú e depois saltar lá de cima, com uma garrafa na mão, em cima de um monte de gente, uma gritaria geral. Mais tarde, sei lá porque, me agarrei na lateral de uma caminhonete junto com um amigo escalador de Mendoza, o Sebastian, que encontramos no albergue. O dono do carro, mais bebum do que nosotros, acelerou a porcaria numa velocidade louca e tivemos que saltar para não morrer. Eu rolei e me esfreguei todo no chão, mas o Sebastian teve menos sorte e fez antes uma escala num poste de luz, que o arrancou do carro como se ele fosse um espécie de parasita grudado na lataria. O resultado para o Sebastian foi um joelho inchado e a cara destroçada, como se tivesse arrumado uma briga com o Maguila e o Popó, ao mesmo tempo. Foi a primeira baixa na equipe, depois dessa o Sebastian rumou para o albergue. Com os companheiros que seguiram na trincheira, fomos para uma casa de shows. Só imagina o naipe da coisa … Por sorte, não arranjei nada, nem gripe nem briga, também a grana já vinha curta e devia estar escrito na minha testa: "borracho maloquero y pobretón !" Sem chance. Voltei para a Plaza, agora sozinho, e lá confraternizei com o maior número de pessoas possível. Nunca conheci tão pouca gente em tão pouco tempo. Com essa bebedeira astronômica, estava escrito nas estrelas que eu não encontraria o caminho do albergue. Acabei dormindo numa obra, a quilômetros de distância do hostel. Não durou muito o sossego, às 8 da manhã chegaram os obreiros, me chutando:
 
– Va dormir en el infierno !
 
Na verdade, era mais ou menos essa a minha situação, com uma ressaca monumental se formando, não tive nem energia para desfazer a má impressão inicial. Pedi desculpas e vazei, fiquei vagando por Huaraz até que encontrei a porcaria do albergue, cheguei em um estado indescritível. Como resultado de nossa chegada triunfal, sempre que eu me lançava para a rua, era saudado por um desconhecido, que me chamava pelo nome ou então de brasileiro. Fiquei conhecendo meia-cidade e recebia convites para confraternizações variadas. Foi aí que eu senti o cheiro do diabo tramando. Estava na hora de repensar o plano, daquele jeito a coisa ia feder, a lama estava batendo já na canela. Uma retirada estratégica para as montanhas era mais do que oportuna.
 
Juntamo-nos então eu, Érico, Sebastian e Gaston, catamos as tralhas e rumamos para a Pashpa, uma pequena vila a cerca de 28 km de Huaraz, dentro do Parque Nacional Huascarán. Ali acaba a estrada e inicia a trilha para a Quebrada Ishinca, nosso primeiro destino na Cordilheira Branca. Estacionamos o carro e alugamos uns jeguinhos, para portear as cargas. Era para inglês ver, só na mordomia, mochilinha nas costas, sacando fotos, fumaceando pela trilha, enquanto a santa mulinha fazia o trabalho pesado. Arregado escalar assim, não fosse o rum ainda destilando nas veias. Levamos algumas horas para chegar no campo-base (11 km desde Pashpa), onde nos instalamos, para ficar 10 dias, aclimatando e escalando.
 
Porra maluco, foi nesse dia eu percebi que ia ser osso o tal processo de aclimatação. Nunca mais me meto em zoeiras antes de tentar subir no topo de um merengue de 6000 metros. Também, foi um castigo merecido. Depois de uma longa viagem, o que precisávamos era descansar, comer, hidratar e focar nas montanhas. Em vez disso, os malucos caíram na gandaia, metendo tudo o que viam pela frente na cachola oca. Na hora da ação, subimos a trilha meio vomitando, meio choramingando, cada vez com menos oxigênio para respirar. Nem as cholas mais idosas eu consegui acompanhar na trilha, lá pela metade do carrero pensei que ia ter um colapso. Ainda não compreendo como conseguimos aclimatar e escalar estas montanhas, porque o início foi preocupante. Mas pagando uma parte de nossos muitos pecados, chegamos na Quebrada Ishinca, um setor ideal para um primeiro contato com a Cordilheira Branca. Cercavam nosso campo-base o Ishinca (5530 m), o Nevado Urus (5495 m), o Tocllaraju (6034 m), o Ranrapalca (6162 m) e o Osshapalca (5881 m). Um pouco mais distante, estão o Palcaraju (6274 m), o Pucaranra (6147 m) e o Churup (5493 m), mas já são montanhas normalmente escaladas a partir de outros vales.            
 
Depois de 2 dias descansando e fazendo caminhadas leves, estávamos prontos para finalmente tentar alguma montanha nos Andes Peruanos. Mas vamos por partes, que a história segue …” 
 
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Sobre o autor

Texto publicado pela própria redação do Portal.

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