Sálmon com Papas e Casillero del Diablo

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Hora do rush em Santiago, todo mundo voltando para casa, e saímos totalmente equipados pela Av. Vicuña Mackenna. Maleta de mão e mochila cargueira com 25 Kg, bastões e piolet fixos do lado externo. Tomamos o metrô lotado na estação Baquedano.

– Permisso! Excusa! Sorry!

A direita cutucava um passageiro, a esquerda dois e para trás espremia três contra a parede.

E as estações se sucedem:
“Plimmmm, estação Universidad Católica.”
      – Atenda lá, Jurandir!
“Plimmmm, cerrar las puertas.”
      -Atenda lá, Jurandir!
Nove ao todo até o Terminal de Buses Alameda onde embarcamos no busão noturno com destino a Pucon, departamento de Araucanía, no centro sul do Chile.
Viagem tranqüila com projeção de vídeos inéditos: Rei Leão, Madagascar e outros.

Tranqüila até Villarrica quando acordei com o Hilton resmungando.
    – Vai cair no buraco! – O ônibus manobrava numa rua estreita. – “Buuummmm”
   – Caiu! Disse que ia cair, não disse?
No susto, todo mundo despertou e aproveitei para ir ao banheiro quando vi algo inusitado dentro do vaso e avisei os companheiros:
    – Tem uma coisa viva dentro do banheiro! – mas não me deram crédito.
    – O véio acordou mais louco do que de costume. – e foram conferir pessoalmente.
Das entranhas do submundo rodoviário algo se agitava furiosamente e grunhia:
    – Rrúlio…rrúlio, rrúlio, rrúlio, rrúlio…
    – Não é que é verdade! – espantaram-se o Hilton e o Moisés – Julio tem um jacaré te chamando de dentro da privada!

A inclinação abriu o selo mecânico e deixou enlouquecido o sistema de sucção a vácuo da latrina, mas eu já estava lá fora empurrando o busão que só saiu do buraco rebocado por uma jamanta. Poucos quilômetros mais e desembarcamos numa Pucon ainda envolta pelas brumas matinais, céu encoberto e muita umidade. Nada se via do vulcão Villarrica e seguimos marcar presença na Hospedagem Victor.

Pucon é uma pequena cidade cenográfica que respira graças ao lago e principalmente pelo vulcão que também a sufoca. Toda a arquitetura é transitória, leve e rápida, feita para ser abandonada sem remorsos assim que soar os três toques de sirene. Um toque marca o meio dia, dois chama a atenção para algum acidente e se ouvir três fuja correndo, sem pânico, pelas rotas previamente estabelecidas. Circulamos a pé pelas ruas do vilarejo e tomamos contacto com a rotina do lugar. Seguimos para o lago e salta a vista a grande quantidade de cães vadiando pelas ruas. Cachorros grandes e gordos agrupados em bandos que marcam território nas esquinas. Identificamos facilmente a gangue dos brancos, dos malhados, dos muito cordiais amarelos que nos acompanharam no passeio e dos sinistros pretos.

Se tédio mata, Pucon com chuva é um bom lugar para morrer. Com sol nada posso dizer por que pouco o vimos por lá. Cinco ou seis vezes por escassos quinze minutos entre uma pancada de chuva e outra quando não emendava uma garoa fina e persistente. Descemos do Cerro Leonera mais secos e desidratados que o deserto do Atacama e aquela umidade toda nos fazia bem apesar da camada de concreto revestindo os pulmões. Tinha um ouriço entalado na garganta e um pouco de febre que juntos produziam certo mal estar. Para espantar o tédio e aproveitar o tempo fechado tratamos logo de contratar a descida de raffiting pelo Rio Trancura com uma das inúmeras operadoras de turismo da cidade e imediatamente sentamos a mesa do Chef Pato. Pisco sour, sálmon com papas fritas e Casillero del Diablo para arrematar.

Com o salmão ainda se debatendo no estomago voltamos a agencia para embarcar na van em direção ao alto do Rio Trancura na esperança ingênua de viver uma aventura. Crianças na fila da montanha russa, tanto o Hilton como o Moisés e o Jurandir fariam raffiting pela primeira vez e esperavam mais emoção do que descer o Rio Nhundiaquara sentado numa câmara de ar. Numa escala cujo máximo é VI, as corredeiras do alto Trancura eram descritas nos folhetos como Classe IV e V – morte certa!

Nos forneceram roupas de neoprene, capacete e coletes flutuantes juntamente com as instruções básicas para iniciantes num remanso calmo e tranqüilo do caudaloso rio que nasce bem próximo, nas encostas geladas do vulcão. Deixamo-nos escorregar pelo centro da correnteza e foram aparecendo alguns rápidos Classe II e corredeiras Classe III vencidas com muita facilidade e boas poses para a fotógrafa que esperava sobre as pedras, em posições previamente estudadas, para num ângulo bem fechado capturar imagens sensacionalistas das caras e beiços recebendo o beijo gelado do rio.

Quando perguntado sobre experiências anteriores respondi que, entre outras, desci duas corredeiras Classe IV no Rio Iapó e o instrutor, depois disso, fez o possível e o impossível para nos derrubar do barco. Inconformado com seu insucesso na descida de um pequeno degrau, reordenou nosso posicionamento deslocando o centro de gravidade para a proa do barco, e retornou a queda com clara intenção de afundá-lo no refluxo. A falta de habilidade do instrutor em nos dar um caldo foi plenamente compensada pela eficiência do Hilton que, em pé no barco, executou com perfeição uma manobra acrobática que nos jogou a todos dentro da água gelada.

O sangue gelou ao nos aproximar da única corredeira Classe IV que terminava em queda livre de aproximadamente três metros. O rio esbraveja, se dobra e afunila quando enorme pedregulho divide seu leito na cabeceira da cachoeira e sentimos finalmente que agora sim o bicho ia pegar para valer. Com adrenalina a mil nos desembarcaram na margem e ordenaram que seguíssemos pela trilha na mata. Houve até um princípio de insurreição com o fato de desviarmos o único obstáculo adrenante do percurso, mas totalmente infrutífero e seguimos frustados pelo bambuzal até uma curva abaixo onde desescalamos uma pedra para retornar aos infláveis que desciam encordados pela cachoeira. Mais adiante ainda encontramos uma última corredeira Classe III e finalmente terminamos o passeio nadando uns cem metros nas águas calmas e profundas de um remanso.

Com esta honrosa exceção prudentemente desviada, o raffiting no Rio Trancura pode ser comparado aos circuitos comerciais do Rio Cachoeira imaginando um maior volume d’água ou ao do Rio Tibagi no segundo planalto, mas adrenante mesmo é descer a curva da árvore no Rio Nhundiaquara, sentado numa tosca câmara de ar, batendo bunda e cabeça nas pedras. Pouco diante das expectativas, mas plenamente satisfatório pela diversão e descontração que proporciona e que tanto necessitávamos para nos recuperar das agruras do Cerro Leonera onde passamos quatro dias sem comer e voltamos com fome de leão. Para terminar o dia voltamos ao Chef Pato brindar com pisco sour a morte do salmão por afogamento numa garrafa de Casillero del Diablo.

A Hospedagem Victor é uma pousadinha para mochileiros, muito simples, executada toda em madeira como tantas outras em Pucon onde os hóspedes ficam alojados em pequenos dormitórios na frente da casa e os proprietários residem nos fundos, em apartamento privativo. A esposa do Victor é a administradora, arrumadeira e zeladora do local com não mais que meia dúzia de dormitórios, sala de estar, duas cozinhas comunitárias e banheiros tão ínfimos que para usar o papel higiênico é necessário adentrar meio corpo no box do chuveiro. A pouca espessura das paredes e a falta de isolamento acústico faz com que pareça existir um monstro nos encanamentos correndo desenfreado por toda a casa quando se abre uma torneira ou a descarga do vaso sanitário, mas é limpa, quente e aconchegante com seu ambiente familiar.

Dias chuvosos passam lentos em Pucon e pouco resta a fazer além de comer e engordar, então decidimos alugar um carro e vadiar noutra freguesia. Embarcados num Suzuki 0.8 com pouca potência a mais do que o carro dos Flintstones rodamos pelas montanhas na direção do Lago Caburga, por entre pastos luminosos e bosques sombrios, procurando gastar o tempo ocioso. Saímos do asfalto para visitar os anunciados três saltos e na porteira do sítio já encontramos a proprietária cobrando pedágio – qualquer semelhança com os procedimentos aqui da terrinha é mera coincidência – mas resolvemos nos informar antes de pagar. A cachoeira grande dava para ver de onde estávamos, muito mixuruca para os padrões tupiniquins, e para as duas menores era preciso adentrar na úmida e gotejante mata de ciprestes. Sobre um palanque de cerca havia um grande seixo de rio com a inscrição “Ovo de Dinossauro” e nem imagino quais seriam as outras atrações turísticas ali existentes. Noutra propriedade encontramos um casal de renas pastando tranquilamente no jardim, mas como também aqui temos grandes veados, passamos sem dar muita atenção e continuamos nossa marcha em direção as águas termais, mas agora sabemos onde encontrar o verdadeiro Papai Noel.

O Hilton insistia em visitar uma instalação mais sofisticada onde as águas vulcânicas são canalizadas para piscinas artificiais, mas venceu a vontade do Moisés em desfrutar algo mais rústico e natural. Seguimos então para Los Pozones no alto do morro onde foram cavados alguns poços ao lado de um gracioso e gelado riacho serrano. A vertente termal brota por entre as pedras numa temperatura de 40ºC e vai se espalhando enquanto esfria. Uma suave sensação de relaxamento toma conta do corpo inteiro enquanto limpa as toxinas da alma e duas horas depois, quando deixamos as termas, não havia mais qualquer indício das mazelas do Cerro Leonera, do Rio Trancura, do estado febril que vinha me atormentando nos últimos dias e também do pelotaço de concreto enroscado na garganta. Só o prazer de ficar confortavelmente entorpecido – comfortably numb – por meios naturais e saudáveis. Santo remédio para todas as dores.

Do vulcão Villarrica e seu charmoso cone branco só conseguimos afirmar que realmente existia por observá-lo umas poucas vezes, entre nuvens, no primeiro dia em Pucon, depois sumiu sem deixar vestígios. Motorizados e inconformados com tamanha timidez resolvemos visitá-lo na toca para encarar de vez o monstro e conferir de corpo presente o seu estado de ânimo. Saímos da garoa para molhar de verdade o valente Suzuki que não decepcionou debaixo de chuva grossa. Paramos na portaria onde os guarda parques nos liberaram para subir até o teleférico sem cobrar as tarifas porque tinham certeza de que não passaríamos dali e estavam certíssimos. Encontramos as instalações desertas, envoltas numa mistura de chuva, neblina e neve. Um frio de trincar dente em meio ao lodaçal, ao vento cortante e a neblina espessa que restringia a visão a um raio de cinco metros.

Circulamos as cegas por instalações fantasmas que surgiam tão rapidamente quanto sumiam no nevoeiro e pisando no barro, voltamos correndo para o carro e retornamos a Pucon plenamente convencidos de que esta não era nossa vez. Na rodoviária, adiantamos as passagens antes de afogar as mágoas em pisco sour, sálmon com papas e Casillero del Diablo só para escapar da rotina. Já me sentia um urso pardo empanturrado de salmão. Na tarde seguinte retornamos a Santiago na primeira viagem de um ônibus zerinho que se atrasou meia hora para chegar a rodoviária e liberar o embarque. Desconfiamos que tiveram alguma dificuldade para enfiar o jacaré na privada.

Santiago bela e formosa nos acolheu depois da tempestade que deixou a cidade no caos com a subida do Rio Mapocho inundando os bairros periféricos. Voltamos a comer salmão com fritas no restaurante La Terraza onde o garçon de 100 anos, meio careca, meio cabeludo, pintava o cabelo de preto e emplastava com brilhantina para rejuvenescer. Sem muito tempo sobrando para desperdiçar, alugamos um Celta 1.2 que por lá chamam de Spark e na locadora já fomos avisando que faríamos o Paris-Dakar com ele.

Apesar do descrédito geral rumamos para o vale do Rio Maipo conhecer o Cerro El Morado. O Moisés insistia em comer empanadas frescas e seguimos procurando por fornos de assar e anúncios até que paramos num trailer de beira de estrada onde o proprietário nos atendeu com inusitado entusiasmo. Suas empanadas não passavam de esfihas de lingüiça, mas o muito falante Pedro imediatamente se tornou íntimo do Hilton e passaram a destilar conhecimentos sobre o Brasil. Disse-se fã incondicional do futebol e da música brasileira, concordaram que tanto “O Fenômeno” como o Valdívia eram notórios maricões, citou Roberto Carlos e já cantarolava um “ahhh se eu te pego…”

Pareciam almas gêmeas se encontrando depois do dilúvio até que, apontando para mim, perguntou?
    – És tu papá?
Até ali estava quieto no meu canto, mas agora, provocado, não perdi a chance de responder a altura da suspeita:
    – Si, son todos mis hijos – e completei – hijos de puta, cada un tiene una perra madre diferente.
Ao que o espantado Pedro só respondeu com “Oh! Oh! Oh!!!!”, e assim fui adiante:
    – Este, el más chico, es el hijo de puta alemana que conocí en Munich!
O perplexo chileno só percebeu a gozação depois que os outros caíram na gargalhada.

O Cajón del Maipo estava tão cheio que nem percebemos onde poderiam estar as corredeiras em que se pratica o raffiting. Com o fim do asfalto adentramos na estrada poeirenta em direção a Baños Morales onde estacionamos e seguimos a pé até a sede da Conaf registrar nossa passagem, mas apenas confirmando nossa má sorte encontramos o parque fechado e mesmo garantindo que somente iríamos caminhar até a Laguna el Morado e a base do Glaciar San Francisco, distante menos de duas horas, não permitiram nossa entrada. Então, para não perder a viagem, seguimos para a base do vulcão San José decididos avançar até onde o valente carrinho suportasse.

Com a permissão da mineradora que explora aquelas montanhas seguimos por estreitos e lamacentos caminhos de serviço em meio ao tráfego dos enormes caminhões caçambas que recolhiam o minério separado por gigantescas escavadeiras trabalhando na beirada das encostas. As escavadeiras se tornavam minúsculas contra o plano de fundo rodeado por imensas cascatas de degelo que despencavam das alturas. Ao barro se somou a neve fresca e tudo se transformou numa pasta grudenta em meio a grandes poças d’água a beira de um rio furioso impedindo o avanço do valente Spark 1.2 que naquela altura já considerávamos ser um legítimo 4×4. No rio corria uma água marrom barrenta de consistência quase sólida ao que o Moisés concluiu ser a fonte original do Toddynho que provavelmente seria envasada mais abaixo nas embalagens longa vida.

Enquanto nos distraíamos com uma saudável e gelada guerra de bolas de neve que continuou automóvel adentro chegou, a nossa procura, uma pikup da mineradora avisando para nos retirar que estavam prestes a detonar uma explosão. Saímos fora rapidinho e esperamos numa distância segura, junto a um rebanho de cabras, para ver o que aconteceria. Após quinze minutos de espera concluímos que o aviso era falso, mas dados alguns passos em direção ao carro – BRRUUUMMMM! E a montanha veio abaixo com o tremor.

No dia seguinte, em Santiago, o Hilton devolveu o automóvel perguntando o preço da lavagem ao que foi informado estar inclusa na tarifa, mas ao ver o carro o atendente exclamou espantado:
    – No és que hizo lo mismo Paris Dakar!
 

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Sobre o autor

Julio Cesar Fiori é Arquiteto e Urbanista formado pela PUC-PR em 1982 e pratica montanhismo desde 1980. Autor do livro "Caminhos Coloniais da Serra do Mar", é grande conhecedor das histórias e das montanhas do Paraná.

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