Saudade do Pico Paraná II

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Este é um texto antigo e retrata uma época passada, uma paisagem também alterada, mas que deixou muita saudade.

    O Pico Paraná do alto de seus quase dois mil metros de altitude é o ponto mais alto de todo o sul do Brasil, sua localização em separado do restante do maciço do Ibiteruçu o torna visível em toda a sua grandeza. O conjunto formado pelo Paraná, Ibitìrati, União, Tupipiá e os Camelos nasce da planície litorânea e eleva-se antes do restante da serra como a proa de um navio rasgando a mata atlântica, sendo o primeiro grande obstáculo para se atingir o planalto curitibano para quem vem do mar pelo noroeste da baía de Paranaguá.

    O maciço é cercado por paredões escarpados que no Ibitirati ultrapassam os novecentos metros de parede nua e vertical, constitui-se num eterno desafio aos raros escaladores que tentam vence-la utilizando-se de algumas poucas vias abertas, sangue frio e muita coragem. As paredes do norte são mais expostas aos ventos e também mais secas. As do sul ficam de frente para a baia e estão cobertas por impenetrável floresta escondendo seus fundos e perigosos precipícios.

    No grande maciço que reúne o lbitirati, o União, e o Paraná, a pedra é quase sempre exposta ao sol implacável ou protegida por uma fina camada de terra onde sobrevivem alguns tipos de capim, uma espécie de bambúzinho chamado Caratuva que só cresce nestas altas regiões de solo muito pobre e árvores nativas como Ipês que miniaturizadas pelos ventos e pobreza de nutrientes do solo se transformam em verdadeiros bonzais, velhos, retorcidos e de lenha duríssima, povoam as fendas nas rochas.

    O tempo é muito instável nesta região, o sol não encontra obstáculo e reflete-se nas pedras claras fazendo a temperatura chegar ao insuportável, o vento é constante e em algumas ocasiões é tão forte que se torna impossível ficar em pé sem a proteção de alguma pedra, as tempestades atiram-se com fúria incontida contra a montanha, despejando granizo do tamanho de bolas de gude, água a vontade e bombardeiam o cume com potentes e incessantes descargas elétricas, fazendo tremer a terra e arrepiando os pêlos do corpo. Com a mesma velocidade e fúria com que veio, a tempestade desaparece deixando atrás de si o ar limpo e transparente, de uma visibilidade que ultrapassa os horizontes até então disponíveis.

    Ao leste e sul tomam-se visíveis os mais distantes recantos da baía, as cidades de Morretes, Antonina, o porto de Paranaguá e um largo trecho de mar, ao norte a mata atlântica é interminável e no oeste, acima dos contrafortes da serra, ocupando todo o planalto até a muralha do Purunã, está a região metropolitana de Curitiba que as noites escuras tornam possível a identificação das principais avenidas evidenciadas pela cor e traçado que destaca-se da massa faiscante de luzes e brilhos. As noites são muito frias e solitárias, freqüentemente nos meses de inverno a temperatura mantém-se abaixo de zero grau ocasionando brancas geadas que aliadas aos fortes ventos trazem uma sensação térmica digna do ártico.

    O céu destas noites tem muito mais estrelas, vê-se o risco dos satélites a cada instante, o cosmo toma-se um fundo negro pontilhado de centenas de milhões de pontos luminosos reunidos em grandes e faiscantes constelações que parecem trocar mensagens usando estrelas cadentes que cortam o céu a toda a velocidade até sumir na curvatura da terra. A beleza do firmamento e as historias dos companheiros tomam muito difícil a decisão de entrar na barraca e dormir com a suspeita de que este instante mágico possa nunca mais repetir-se.

    Os Camelos estão posicionados de frente para a baia e recebem as brisas frescas e úmidas provenientes do mar que são avidamente absorvidas pela montanha que neste local é totalmente recoberta por uma camada fina de terreno turfoso povoado por um tipo de gramínea adaptada à umidade excessiva. O chão é barrento e escorregadio devido a água infiltrada que vai acumular-se em duas fundas valas cobertas de mato e bambuzais fechadíssimos que caminham paralelas até bem próximo da beirada do abismo quando lançam-se juntas para o vazio e durante as fortes tempestades que normalmente se abatem sobre a montanha são transformadas em formidável cascata que com furor incontido despeja entulho, árvores e mato junto com a água fazendo grande barulho ao juntar-se a gigantesca orquestra formada por outras centenas de cachoeiras irmãs que nascem ao mesmo tempo em todas as encostas e despejam juntas, milhões de metros cúbicos de água rumo ao fundo do vale com estrondo ensurdecedor.

    O objetivo final é imponente e impressionante, mas a maior beleza está na trilha que lhe dá acesso, são vários quilômetros de paisagens variadas e intocadas, habitadas por animais e aves ariscos e desconfiados na presença humana. A aventura começa no sítio de base localizado ao pé da serra, ao nível do lago formado pela represa do Capivari-Cachoeira e distante 7 Km da BR 116 onde até 1995 era recebido pelo caseiro, Sr. Waldemiro que indicava um bom lugar para estacionar o carro e contava histórias fantásticas sobre onças, tigres e até ursos que “povoam a serra e as vezes atacam os animais do sítio”.
    Depois com o desenvolvimento turístico a recepção ficava por conta daquela lacônica mulher que cobrava pedágio de R$ 5,00 por automóvel e R$ 1,00 por pessoa. A trilha começa em meio ao pasto e vai elevando-se em zig-zag para dentro do bosque, segue-se por um largo caminho barrento e escorregadio todo rasgado pelo casco de vacas e cavalos até alcançar um vasto samambaial, conseqüência de um antigo incêndio, o sol matinal já começa a secar o orvalho da noite e a trilha toma-se muito íngreme, a mochila fica pesadíssima quando se chega ao primeiro mirante, contornando e subindo vagarosamente o morro até uma grande pedra pichada com a indicação ” ¼  de milha”. O esforço foi exaustivo e está vencido o pior trecho do Morro do Avestruz ou da Desistência como muitos o conhecem, são 40 minutos para ganhar 205 metros de altitude em relação ao sítio e fazer um verdadeiro teste vestibular aos desafiantes do PP.

    A trilha segue rumo à serra em meio aos morros cobertos por um pasto muito pobre e pequenos capões de mato, a paisagem é muito bonita e após uma hora e meia de caminhada chega-se à Lagoa do Jacaré no inicio de um bosque com bom gramado para armar barracas, geralmente os grupos que partem do sítio ao final da tarde usam este lugar para pernoitar e partir com o alvorecer sem o massacre do Morro do Avestruz. A lagoa marca o fim do território dominado pelo homem, a frente não encontraremos mais vestígios de animais domésticos ou casebres, é o império da natureza com toda a sua beleza primitiva e as vezes hostil que nos espera, a trilha corta um fechado capoeiral e segue tortuosa até atingir uma região bastante alta e de vegetação rasteira com muitas pedras e bonitos mirantes que permitem uma visão muito ampla da represa distante, neste trecho o coração é assaltado por uma estranha sensação de profunda solidão talvez causada pelo alargamento do horizonte e a consciência de que se esta muito longe de casa.

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Sobre o autor

Julio Cesar Fiori é Arquiteto e Urbanista formado pela PUC-PR em 1982 e pratica montanhismo desde 1980. Autor do livro "Caminhos Coloniais da Serra do Mar", é grande conhecedor das histórias e das montanhas do Paraná.

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