Sol, água e arroz na roubada!

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A travessia da Serra Fina é uma das trilhas de montanha mais fáceis do Brasil.


Por Marcelo L. Brotto

A travessia da Serra Fina é uma das trilhas de montanha mais fáceis do Brasil. Essa afirmativa não é gratuita, todavia seria injustificável se não revelasse um outro lado dessa aventura, freqüentemente tida como caminhada dificílima para o padrão nacional. A justificativa virá no decorrer desse ensaio baseada em relatos de colegas que lá estiveram além da experiência própria do autor em duas ocasiões. Embora possa parecer, o objetivo não é desqualificar as fontes que a trataram como o teste final para o excursionista tupiniquim. Por outro lado, creio que esse percurso serrano tem sido carregado de excessos em conversas de beira de loja. Um respeito quase sobrenatural classifica a Pedra da Mina, seu ponto culminante, como uma montanha distante que exige grande empreendimento. Todavia, o tempo passou e o quarto ponto mais alto do Brasil deixou de ser uma montanha inalcançável a excursionistas inexperientes. Atualmente empresas de turismo operam pacotes de quatro dias na Serra Fina com a certeza da entrega do serviço. Tal fato comprova que não há segredo nem dificuldade que o dinheiro não possa solucionar. Já para quem não se submete aos encantos do mercado a solução se resume em saber administrar os únicos dois elementos necessários ao sucesso da empreitada, o sol e a água. Com eles tudo mais se torna simples e a diversão garantida. Bom, e onde entra o arroz na “roubada”?


1º dia – 60 horas antes do arroz e da “roubada”

A travessia inicia numa localidade de Passa Quatro/MG conhecida como Toca do Lobo. Se me permitissem mudaria esse nome pra ‘buraco no barranco’, mas, enfim, ali há um riacho com água fresca onde, ao cruzá-lo, toma-se à trilha que segue a inclinação da encosta florestada e sobe – como era de se esperar. Logo a mata dá lugar ao campo, com visual para Oeste onde estão o Pico dos Marins e Itaguaré e Sul onde se vê a cidade de Cruzeiro e o vale do Paraíba. A partir desse ponto é curioso observar o minério que brilha exposto no leito da trilha, acreditando ser quartzito, afinal o nome da montanha é esse (foto 1). Adiante é possível e recomendável ouvir o som de uma cascatinha à direita do caminho. É ali que se deve abastecer de água pelas próximas 24 horas. Em seguida a trilha toma maior inclinação até o ponto onde inicia a crista que leva ao Alto do Capim Amarelo. Esse também é o primeiro lugar de onde se avista a Pedra da Mina e é bom não se impressionar com a distância até ela (foto 2).

Olhe com atenção a próxima montanha pois a ilusão de ótica pode enganá-lo. Desse ponto o Capim Amarelo parece curvar-se, dando a impressão de uma inclinação suave e a despeito do meu julgamento, dei uma hora até o cume. Pura ilusão! Levei duas horas e meia. É uma subida semelhante à crista norte do Ferraria/PR. Por algum motivo essas montanhas são suficientemente íngremes para vedar qualquer ascensão rápida e ainda tripudiam dando à mostra o cume de qualquer ponto da trilha. Talvez pra quem suba de “ataque” o tempo não seja tão dilatado.

O trecho a seguir começa com uma descida por campo baixo e rocha, prosseguindo por um espinhaço estreito e alcançando a primeira corcova. Daí em diante surge o capim-de-anta que se estende pela longa crista, em aclive constante até atingir o antecume, onde surge a primeira clareira pra acampamento. Dali a trilha avança pelo interior da mata, ganhando inclinação até o cume, a 2491 metros de altitude. Agora é sentar e descansar, olhar pra baixo e compreender o que eu disse sobre ilusão de ótica. Se você chegou até aí, saiba que venceu o maior obstáculo de toda a travessia, considerando que o desnível é de quase um quilômetro e que sua carga de víveres está praticamente intacta. Por isso costumo dizer que após o Alto do Capim Amarelo ‘é só alegria’.

O cume estava lotado, então juntei a minha turma e desci pela mata até uma baixada coberta por capim-de-anta onde descolamos algumas clareiras e de onde se avista o próprio Capim Amarelo (foto 3). Até ali tinham se passadas oito horas desde o início, muitas fotos e uma satisfação imensa de estar novamente no coração da Mantiqueira. Comigo a mochila de 25 quilos repleta de boa comida e seis litros de água que se transformaram em chá, café e no melhor estrogonofe de toda a Serra Fina (receita com o chefe Vicente). Noite de lua cheia, temperatura caindo e a Pedra da Mina logo ali.

2º dia – 36 horas antes do arroz e da “roubada”

Barraca congelada é o cotidiano. O frio cede ao sol, afinal macaco velho não se molha. Água é sinônimo de frio, por isso não recomendo a travessia com chuva, além de não ver nada você ainda vai se molhar – redundante, não?!.

Em direção a próxima montanha a trilha atravessa uma bela mata interrompida por enclaves de campo que possibilitam o pernoite. Deixando a mata a progressão se dá sobre rocha íngreme no flanco Oeste da cumeada Serra Fina-Melano. A partir do primeiro tope, surgem vários outros em forma de crista que se curva lentamente à direita. Um traçado emocionante, sem dúvida. Chegando ao topo a trilha prossegue com poucos altos e baixos, atravessando adiante um colo onde normalmente há água empoçada – lá pra frente tem água pra beber sem sapo. Pouco mais além surge um mirante alçado de frente para a Pedra da Mina. Ali vale a pena parar por alguns minutos e fotografar (foto 4).

A trilha continua descendo à esquerda por mais uma crista que se curva lentamente à direita rumo ao próximo curso d’ água. A superfície é rocha e vegetação campestre, o que facilita a progressão. Após transpor uma baixada coberta por capim-de-anta, volta a subir por um espigão rochoso onde se vê a cachoeira vermelha. Dali a trilha sobe em direção à Mina pelo espigão até dobrar a direita ao encontro do rio claro. É uma boa oportunidade de fazer um lanche e abastecer de água antes da ascensão final. Então, a trilha segue na direção Sul sobre rocha e aos poucos torna a direcionar para o objetivo principal, subindo, é claro! Esse trecho é dos meus preferidos, dali se avista a escarpa Sul da Pedra da Mina além do despenhadeiro e cristas que encontram o vale do Paraíba. A rampa derradeira inicia com rocha, passando para campo repleto de caratuvas (Chusquea pinifolia) e finalmente rocha até o cume. Se não me engano era uma da tarde quando o Maurício e eu aportamos a 2797 metros de altitude.

A vista de lá é algo tocante. A montanha reina absoluta nessa Serra e nenhuma outra mede forças, apenas as Agulhas Negras almejam tal altitude e poder de conduzir nosso olhar sobre sua forma de austera. Estamos sobre um gigante Sul-Americano distante dos Andes, em meio a uma flora que certa vez esteve conectada a este, sentados sobre rocha que foi trazida a tona das profundezas há muito tempo e respirando um ar tupiniquim que inúmeras vezes passou por aqui, milênio após milênio, sol após sol (foto 5).

No meu ritmo acredito ter completado 13 horas desde o início. No caso de uma caminhada de “ataque”, como fizeram Natan e companhia, o tempo pode ser reduzido para apenas 6 horas desde a Toca do Lobo até o cume da Mina. Não é preciso ressaltar a ausência de dificuldade em transpor a vegetação ao longo da trilha, caso contrário o tempo não seria tão reduzido. A explicação é óbvia e está atrelada justamente a altitude da Serra da Mantiqueira que reflete em sua vegetação e clima, ou seja, suas montanhas não são tão baixas a ponto de suportar o inferno verde típico da Serra do Mar, por outro lado também não são tão altas como Andes e seus glaciares.

O acampamento pode ser montado no cume ou mais abaixo onde há uma superfície sedimentar aplainada. Ao anoitecer recomendo uma boa refeição, no nosso caso macarrão com calabresa ao molho rosê acompanhado de vodka com cataia. Ou então você pode fazer como a Aline, que comemorou seu aniversário assoprando as velinhas assentadas sobre um pequeno montículo chamado Pedra da Mina.

Continua…

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Sobre o autor

Marcelo Brotto é montanhista, ex presidente do Clube Paranaense de Montanhismo e engenheiro Florestal formado pela UFPR.

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