Tarzan de nome Abraão

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Este conto não fala de montanhismo. Peço permissão aos meus leitores para compartilhar um texto de autoria de minha mãe, que é escritora, sobre a história de nossa família e de nossa gente. Este texto, baseado em partes verdadeiras e outras fictícias mostra mais que uma história, mostra nossa maneira de pensar e viver. Com vocês, Solange Vicentini T. Mössenböck, minha mãe ambientalista.

Tarzan de nome Abrahão

Não tendo como criar os filhos após a morte do marido,  mamãe e meus  irmãos  pequenos partimos  rumo ao interior de São Paulo, para a casa de meus avós.

De trem, percorremos um caminho longo, cheio de matas. Viajem cansativa para todos. principalmente para irrequietas  crianças. Os passageiros irritados com o nosso barulho, diziam para sossegarmos em nossas cadeiras ou índios  nos raptariam . Que onças atacariam o trem e comeriam nossas  pernas se não nos aquietássemos. Apavorados, emudecíamos por dez minutos e logo voltávamos à algazarra.

Nosso destino era  a morada do velho avô que era agrimensor da Companhia Paulista de Trens. Este avô, figura monumental, foi o  norte de nossas vidas.

Era o inicio dos anos cinqüenta e o estado de São Paulo era muito diferente de agora.

Fomos morar  no  magnífico sítio de meu  avô, de nome Abraão,  foi  nosso Tarzan, nosso herói.

Tudo o que sei de bom na vida, aprendi com ele. Era nato naquele homem cheio de bondade e inteligência, apreciar e cuidar da natureza. Amava a terra que vivia. Cuidava de tudo com paixão, até o limite, quando chegavam  os resmungos ciumentos de vovó. : – Gosta mais das árvores que de mim!  Ele sorrindo dizia: Elas não reclamam como você.

Plantou muito. Cuidou dos riachos. Estudou o que os pássaros comiam para atraí-los e embelezar ainda mais o nosso reino. Os vizinhos brincavam. Parece Adão e não Abraão no paraíso,diziam , tão lindo era nosso lugar.

Lembro-me de nossas caminhadas. Cinco serelepes seguindo seus largos passos, aprendendo, plantando, socorrendo plantas e animais.

Minha avó, mãe e tias ficavam em casa, fazendo tachadas de goiabada, bananada, pães salgados e doces, limpando frangos para nossos pratos. De tudo havia no sítio. Era comprado na cidade o açúcar, sal, farinha e querosene. O resto se fazia em casa. Vida simples, trabalhosa, limpa honesta e farta.

O porco criado com nosso milho frutas e verduras era inteiramente aproveitado. Do sabão à lingüiça. O leite das vacas, que doces se faziam! Os queijos e requeijões! Somente coalhada vim conhecer adulto, e, não gostei. Fiz careta dizendo que era o leite estragado que  minha avó dava para os porcos. Ainda me lembrava do sabor maravilhoso do leite grosso recém ordenhado. Os bezerros de bocas cheirando a leite, línguas inquietas lambendo nossas mãos. Que saudades!

Separando o sítio havia um riacho que nas grandes chuvas causavam estragos nas cercas e expunha a raiz das arvores.

Meu avô discutia com o vizinho um italiano atrasado, que não cuidava do solo e estragava o leito do rio, causando aquelas enxurradas. Adorávamos pisotear o barro molhado e macio que se acumulava na baixada do rio. Era a dor de meu avô. Ali estava a terra fértil do sítio, gemia ele. Italiano ignorante! Ele vai chorar no futuro quando só sobrar areia para cultivar.

Nós não entendíamos nada, nem sabíamos a que futuro triste se referia nosso Tarzan.

Um dia chegou em casa entusiasmado. Ia largar o emprego e trabalhar em um projeto do governo que dava uma gleba de terra de mil alqueires para os inscritos desbravarem em cinco anos.

Depois de desbravadas, parte seria do governo para construção de pequenas vilas, estradas e outros benefícios e parte do desbravador. A porção era muito grande. Para um homem enriquecer.

Com a família estabilizada, e todos os filhos juntos e sem preocupações de nos deixar sós, partiu. Quando pudesse voltaria para casa.
Foi-se feliz para seu empreendimento, sonhando com maravilhas Voltou oito meses depois. Magro, com malaria, descorçoado com o que viu. Contou com  lágrimas nos olhos, o que tinha presenciado:

-Estão acabando com tudo! Um  exercito de homens com machados e serrotes, cortando tudo, colocando fogo e matando os animais! Entram nas aldeias presenteiam os índios com coisas baratas e acabam com toda a estabilidade das tribos. Abusam das mulheres e embebedam os homens.

É um horror. Eu não posso fazer parte desta vergonha. O governo está incentivando esta loucura que vai fazer de São Paulo um deserto!

Ríamos-nos dele. Na sua emoção não se dava conta que chorava e isto assombrava a todos.

-Tamanho homem chorando por causa de uma arvore, diziam os vizinhos, caçoando do nosso Tarzan. Ora, senhor Abraão, por que chorar? Tem tanto que nunca vai fazer falta. Para que tanta terra coberta de mato, cheia de bicho bravo e índios fedorentos e preguiçosos? Nós precisamos comer. Está chegando um monte de gente vindo do norte, do mundo inteiro, onde este povo vai morar? Precisamos de cidades, não de mato.
Meu avô balançava a cabeça e falava:

– Vocês não pensam no futuro? Estão estragando tudo. Vamos comer areia! Vamos comprar água para beber. Peixe vai custar uma fortuna! Bichos, só em fotografias antigas! Podemos ter progresso, não precisamos destruir para progredir.

Ensinar sobre o equilíbrio da natureza era sua paixão. O primeiro homem a se preocupar com o meio ambiente, quando esta palavra não existia, menos ainda esta visão.

Um dia um vizinho chegou em casa arrasado pedindo a espingarda de meu avô. Queria matar uma sucuri escondida no paiol digerindo seu cachorro de estimação.

-Ela comeu o Coronel, a desgraçada! Meu perdigueiro de estimação. Meu melhor caçador.

– Bem feito homem! Aprenda a lição!  Semana passada você matou a capivara que era a refeição dela. Agora ela veio buscar a comida que você roubou.

Mais tarde comentou com minha mãe, acreditando que não ouvíamos: – Ótimo, um caçador de bichos a menos! Mas ainda precisamos de muitas sucuris para fazer justiça!

Da mesma forma que desprezava os caçadores,  não gostava de pardais, gatos, ratos e das pombas que freqüentavam a torre da igreja da cidade. Dizia que eram pragas que nós estávamos acolhendo e que no futuro, seriam problemas enormes, uma insensatez.

Viajou a trabalho para o Paraná e voltou encantado:

Que beleza, que maravilha que são as matas do Paraná. Pinheiros tão grandes que dói o pescoço do esforço de olhá-los. Espero que o Paraná continue maravilhoso para meus netos conhecerem!

A mesma coisa quando atravessou a fronteira para o selvagem Mato Grosso, onde  havia índios e onças. É um paraíso, é um encanto! É perfeito. Dizia ele. Meu Deus conserve o Mato Grosso esta maravilha para sempre.

Este senhor querido, meu avô me vem à memória todos os dias, quando atravesso as estradas de São Paulo a caminho de meu trabalho na Universidade ensinando meus alunos o que me deixou de herança. Seu amor à natureza.

Vejo quilômetros de monocultura de cana, de estradas sem fim  e gente à procura de um pouso e trabalho e me recordo das palavras de Abrão

-Vamos comer areia e comprar água para beber.

Há alguns anos retornei ao nosso paraíso desejoso de rememorar minha infância.

Encontrei uma cidade vazia, calada, triste e nua, diferente daquela que fervia nos finais de semana, nas horas do footing, depois da missa de domingo, nas quermesses e procissões.

Perguntei ao dono do hotel onde estava a beleza, a frescura, abundância e amizades da minha infância?

Não senhor! Não existe mais. Foi-se embora! A televisão arrasou a cidade, desapareceu a convivência, as pessoas estão fechadas dentro de casa. Estamos cercados de cana, os rios secaram, viraram estradas. Não é mais lugar para se viver, só para trabalhar. A natureza foi engolida pela avareza do homem!

Querido Abraão, rezo para que o céu seja um imenso mato, com passarinhos, rios limpos, vida simples e farta, como a que tínhamos, onde não faltava respeito, harmonia amor, e felicidade!

Solange Vicentini T. Mössenböck
Itatiba, 30 de julho 2011.

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Sobre o autor

Pedro Hauck natural de Itatiba-SP, desde 2007 vive em Curitiba-PR onde se tornou um ilustre conhecido. É formado em Geografia pela Unesp Rio Claro, possui mestrado em Geografia Física pela UFPR. Atualmente é sócio da Loja AltaMontanha, uma das mais conhecidas lojas especializadas em montanhismo no Brasil. É sócio da Soul Outdoor, agência especializada em ascensão em montanhas, trekking e cursos na área de montanhismo. Ele também é guia de montanha profissional e instrutor de escalada pela AGUIPERJ, única associação de guias de escalada profissional do Brasil. Ao longo de mais de 25 anos dedicados ao montanhismo, já escalou mais 140 montanhas com mais de 4 mil metros, destas, mais da metade com 6 mil metros e um 8 mil do Himalaia. Siga ele no Instagram @pehauck

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