Travessia Alpha-Crucis, dia 8

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*05 de Julho de 2012, quinta-feira 5:00h* – O celular desperta, pondo
definitivamente um ponto final na nossa boa vida. Ainda restava o banho
quente e o café da manhã antes de retomar nossa árdua rotina. Procuramos ser detalhistas ao máximo pra seguir o checklist afixado na parede da casa, e por fim, tomamos emprestados alguns pacotinhos de TANG da dispensa, na qual também deixamos alguns itens.

Lá fora, o dia parecia não querer clarear. O vento forte sacudia a mata, e pela brecha entre a vegetação, constatei que o céu estava encoberto. O tempo parecia estar virando depois de uma semana completamente estável. Apesar de preocupado, procurei não reclamar, pois ter feito tudo que já fizemos com tempo bom, podia ser considerado um milagre por se tratar da nossa serra. Independente do que acontecesse com o clima dali para frente, estávamos decididos a não recuar, até porque esse trecho que faltava, já era considerado caminho de volta, e tudo que precisávamos fazer era finalizá-lo o mais rápido possível.
Como o programado, deixamos o rancho às 7:00h. Sob forte vendaval, a subida se tornou agradável e refrescante. Revigorados, ganhamos altitude na mesma velocidade em que o dia clareava. Pouco antes das oito horas, e após vencer um lance íngreme, chegamos num platô donde se tinha visual. Ao olhar pro leste, o deslumbre. Fomos contemplados com uma visão espetacular, um cenário raro, onde o sol sobre as nuvens despejava seus raios, perfurando-as, criando fachos de luz quase sólidos. Um momento único, mágico, que brindava nossa jornada. Como se alguém lá em cima sorrisse pra gente. Diante de tanto esplendor, tudo que pudemos fazer foi parar e apreciar, tentando registrar com muitas fotos o majestoso momento.
Mas as surpresas não pararam por aí. Quarenta minutos depois veio outra. Tivemos a sorte e felicidade de encontrar perdidos por lá, Bárbara Pereira e seu namorado, o Cainã. Nos saudou perguntando de cara: Alpha Crucis? E nós respondemos perguntando: Alguma dúvida? E foi uma festa. Eles estavam procurando por uma via de escalada, dentro dum vale estreito. Já haviam subido e descido uma vez, e retornavam da segunda. Então Jurandir que conhece ali como a palma da mão, se dispõe a ajudá-los, e lá se foi mostrando o caminho pro Cainã. Enquanto isso, fico ali trocando umas idéias com a Bárbara. Comento minha preocupação a respeito das antigas restrições pertinentes à aquelas bandas. Ela me tranqüiliza dizendo que tudo por aliestá meio “tranquilo”, e que ninguém iria nos incomodar, pelo não naquele dia. Comentou também que a FreeWay estava roçada e perfeitamente transitável, o que me animou muito. Nesse meio tempo os dois voltaram, e após algumas fotos pra recordar o encontro, cada dupla segue seu destino em direções opostas.
A partir deste momento, a caminhada ficou mais inclinada, e os artificialismos se reduziram um pouco. Quando o vale se estreitou, chegamos num dos “apartamentos” do Marumbi, na fenda entre Esfinge e Ponta do tigre. Dali se tem uma vista privilegiada e impressionante do Abrolhos. Então escutamos vozes ecoando pelos desfiladeiros de granito. Era o casal de amigos escaladores, porém não os víamos. Em meio ao vale sombrio de rochas gigantescas, escondemos as mochilas e derivamos à esquerda rumo a Esfinge.
Mesmo tendo feito mais de 20 vezes o Marumbi, sempre rumo ao Olimpo e pela frontal, era minha primeira vez por ali, o que de certa forma era até inaceitável. Estava encantado com tudo, e muito contente por estar naquele lugar. O Jurandir havia dito que era apenas cinco minutos dali até a Esfinge, e isso era verdade. O que ele não disse, é que a subida era quase uma escalada por trepa-mato, e que um simples vacilo, podia por a perder a nossa travessia. Mas como já estávamos no meio do caminho, ficava até feio recuar. Com todo cuidado fomos avançando, e às 9:30h chegamos pra tomar sol e vento no topo da Esfinge.
Este foi o segundo cume atingido em reposição ao Tucum e Camapuã, deixados de lado por razões já explicadas. Dele tivemos visão privilegiada de tudo que ficou pra trás, e também do próximo objetivo, a Ponta do tigre, o qual parecia bem próximo, e sem muita pressa, seguimos.
As nuvens se foram, e o dia estava magnífico. O vento contínuo tornava tudo muito agradável, e a escalada mais parecia um passeio. Meia hora depois, chegamos a Ponta do tigre, donde a visão era ainda mais bela, especialmente para Abrolhos. Nesta hora, o vento furtivamente arrancou das mãos do companheiro a identificação daquele cume, e num piscar de olhos, atirou sem pena pro abismo. Ele bem que tentou ir atrás, mas já não havia mais esperança de ver novamente aquele pedaço de papel. Tratamos de seguir pro próximo da vez, o Gigante. Pisamos nele às 10:50h, donde se tem uma bela visão pro Olimpo logo a frente, ponto culminante do conjunto Marumbi, onde chegamos meia hora depois. Mesmo sendo a cume mais popular do conjunto, também estava deserto. A montanha e sua paz, era toda nossa nesse dia. Na caixa quadrada de aço, decidimos deixar um novo caderno assim como fizemos no Morro do Sete, onde na capa colamos a identificação da 31ª montanha da travessia, seguido dum breve relato. Mesmo sabendo dos problemas locais, decidimos arriscar.
Mirando a sudoeste, fixamos nossa próxima meta nos campos dourados do Boa vista. Para chegar nele, a partir de agora era terreno novo para nós dois, e essa expectativa também era muito empolgante. Antes de começar, decidi que era hora de fazer uso da calça de tactel encontrada pelo Jurandir. Serviu certinho, e certamente iria proteger as pernas já judiadas pela vegetação esfoliante.
Seguimos por uma bela senda bem definida, crivada de rochas, e duma beleza cênica de tirar o fôlego. Caminho objetivo, antigo, e marcado com velhas fitas de PVC cobertas de musgos, que não criou duvidas em momento algum. Quando finalmente as rochas acabaram, o caminho seguiu suavemente pela direita, e logo adiante começou subir até que chegássemos aos campos dourados. Então concluímos que o cume só podia estar perto. Ao olhar para trás, a visão mais fantástica que já tive do Olimpo. Mostrava numa estética impecável, toda sua imponência e soberania sobre os demais cumes. Eram 13:40h quando fizemos cume do Boa Vista, 32ª montanha da Alpha Crucis, e que merece muito o nome que tem.
Sem conhecer nada por ali, procuramos alguma trilha descendo sentido noroeste, afim de interceptar a FreeWay. Havia outra no sentido contrário, que óbviamente levaria ao Leão, Angelo, e Bandeirante. Seria perfeito se pudéssemos incluir no roteiro mais essas três importantes montanhas, mas infelizmente não tínhamos a menor idéia do que íamos enfrentar deles pra frente até chegar ao Pelado, nem o tempo que levaríamos. Sendo assim, por prudência, decidimos ir pelo caminho que conhecíamos.
Depois de achar a trilha, algum tempo descendo chegamos numa corrente antiga. Nessa hora o calor era bem forte e a sede já estava forte, pois há tempos a água já tinha acabado. A descida seguia os padrões tradicionais do Marumbi, sempre acentuada. Então finalmente chegamos num filete d´água, onde fizemos uma pausa para comer e beber.
Perto de 15:00h chegamos ao ponto onde estava a saída secreta para FreeWay. Como não há evidências, e se continuar pela trilha normal, acaba fechando um circuito pelo chamado “Pau do Maneco”, e sai novamente na estação do Marumbi. Nessa hora o GPS entrou em ação indicando o ponto exato da saída. Cem metros a frente pela mata fechada, e chegamos na primeira fita alaranjada e cobertas de musgos que marca o inicio da Freeway. Não havia nada de roçado ali, como havia dito a Bárbara. Bem ao contrário disso. Estava bastante fechada e difícil de seguir já logo no início, totalmente diferente da primeira vez que passei ali com mais cinco amigos em 2010, quando estava perfeitamente transitável.
Quanto mais avançávamos, pior e mais difícil ficava de seguir o tênue rasto. Muitas vezes só sabíamos que estávamos no que um dia foi trilha, ao achar por acidente as velhas fitas perdidas em meio a vegetação fechada e densa. Nos córregos o problema se agravava ainda mais, e perdíamos muito tempo pra encontrar a continuação. Eu lembrada que em 2010 tinha que seguir um pouco pelo rio até achar a continuação, mas como tudo estava fechado, isso não resolvia nosso problema. Num destes córregos, perdemos mais de uma hora até se localizar, o que nos deixou bastante irritados. Nem mesmo a paciência budista do Jurandir passou no teste, que acabou se irritando muito com a situação dramática que se apresentava. E assim foi por toda a FreeWay. Aquela vegetação debochava da nossa cara, ironizando o próprio nome. Aquilo não tinha nada de “free”, muito menos de “way”.
Depois de muito suor e mato no peito, finalmente ameaçávamos atingir os campos, mas o sol já estava bem baixo. Neste campos, depositávamos toda nossa esperança de que as coisas melhorariam. Lógicamente não foi isso que aconteceu. Com vegetação à altura do peito, a caminhada continuou travada. E agora havia mais os caraguatás pra nos cortar, furar, e arranhar. Fora o visual espetacular, todo o resto estava um verdadeiro inferno. Só dava para saber que ali era o caminho, porque o chão era firme no trilho correto. Cada vez que ficava fofo, significava que passamos reto numa curva, e então tínhamos que voltar uns metros pra encontrar a continuação correta.
Já quase sem luz, ouvimos o murmúrio da cascata dourada. Como era alentador isso. Pois além da água fresca e corrente, significava que mais meia hora acima estava o cume do pelado. Assim sendo, às 18:45h acabou nossa pressa. Descemos com cuidado pela corda instalada na grota até chegar ao riacho. Seguimos por ele até a cascata, e nela, largamos a bagagem para tomar fôlego e água. Enchemos as vasilhas, e seguimos subindo pelo rio mais um tanto até deixá-lo de vez. Eis que chegamos então na famosa arvore onde há uma tabua amarrada com arame, escrito com tinta verde “Pelado”, e ao lado gravado os símbolos gregos, Alfa e Omega.
O cume estava muito próximo, mas ao passar por um bosque com chão macio e coberto por folhas secas, fomos atraídos. Decidimos que seria um ótimo lugar para bivaque, pois era protegido do vento que nessa hora varria os campos, e balançava forte a copa dos arbustos. Claro que ainda era cedo pra parar, mas andar a noite e sem trilha, seria mais cansativo do que produtivo. Ali poderíamos ter uma boa e longa noite de descanso, a última da jornada (se não houvesse imprevistos).
Acreditávamos tanto nisso, que decidimos mandar pelos ares qualquer tipo de racionamento, e consumir ali toda a comida quente disponível. No caso, dois pacotes de sopa Vono cada um. Bebemos até a última gota daquela sopa fervente, e fizemos um belo litro de suco como sobremesa. Agora tudo que sobrou eram algumas barrinhas já repugnantes de cereais, alguma de chocolate 25g, e dois pacotes de Tang. Combustível já com a luz da reserva acesa, que deveria durar até chegarmos em casa.
Às 22h estávamos prontos pra entrar em “stand by”. Nos planos pro dia seguinte, a expectativa de finalizar a jornada com apenas um dia de caminhada. Sonhar com o êxito se fez mais presente que nunca, o que trouxe paz e alivio extra ao sono das criaturas.
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Sobre o autor

Elcio Douglas Ferreira é um dos maiores personagens do montanhismo paranaense. Experiente, frequenta nossas serras há mais de 35 anos, sendo responsável pela abertura de inúmeras trilhas e travessias. Foi um mentores da Travessia Alpha Crucis, considerada como a maior e mais difícil travessia entre montanhas no Brasil, que ele fez pela primeira vez em 2012. Possui experiência em alta montanha, já tendo escalado O Illimani na Bolívia e o Aconcágua na Argentina em poucos dias num esquema non stop impressionante.

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