Travessia Alpha-Crucis, dia 7

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04 de Julho de 2012, quarta-feira 6:45h – Acordei com a luz da lua cheia no oeste, forte a ponto de incomodar, e uma sutil claridade já se projetava do horizonte litorâneo. Esse novo dia que se iniciava, prometia ser o mais tranqüilo da travessia. Como avançamos satisfatoriamente no dia anterior, restou pouco pra se fazer na Farinha Seca, e pra ajudar, o fim do dia seria no conforto dum refúgio de montanha, onde poderíamos ter regalias impensáveis até então.

Não demorei muito pra importunar o Jurandir, atolado dentro do saco de dormir. Antes mesmo de levantar, comi algumas coisas do manjado cardápio, que acabou sendo o café da manha. Iniciamos os preparativos pra zarpar, e nesta hora, ao olhar mais atentamente pelo acampamento, noto ao lado duma planta algo incomum. Eram dois ovos. Isso confirmava o que o Hilton havia dito no Itapiroca: Os amigos Julio Fiori, Moisés Lima, e Paulo Marinho, haviam feito a travessia no final de semana. Dormiram por ali alguns dias antes, e é normal o Fiori levar ovos cozidos pra comer na montanha. Só não entendi porque aqueles dois ficaram ali. Deve ter esquecido. Deixamos no mesmo lugar que estava. Em seguida marcamos na vegetação retorcida mais essa montanha da travessia, e já passava das 8h quando decidimos que era hora partir.
A descida do Morro dos Macacos rumo ao Mojuel, constitui uma caminhada muito agradável. Ainda mais quando se faz no frescor da manhã, com raios solares perfeitamente visíveis no vapor suspenso da floresta. Era uma atmosfera encantadora, que junto ao canto dos pássaros, alegrava o dia de qualquer caminhante. Descansados, e envolvidos por toda essa magia, a caminhada se desenvolveu de forma ágil e promissora.
No fundo do vale entre Macacos e Mojuel, fixamos uma marca no belo bosque. Agora seria enfrentar a crista de ligação que levaria a pirâmide final e empinada do Mojuel. Subimos animados e com velocidade, e às 9:45h o cume estava sob nossos pés. As luvas que Jurandir havia esquecido duma vez anterior, ainda estavam no mesmo lugar, próximas a garrafa pet que a décadas repousa ali. Como havia esquecido as minhas em algum ponto pelo caminho, aquelas, mesmo bem surradas, seriam úteis. Já era o segundo par de luvas novas que perdi, mas sabia que na próxima vez que voltasse por estas montanhas, as encontraria, bem como a capa do GPS.
Uma vez no Mojuel, a 26ª montanha, o velho ritual de marcação. E após breve descanso e fotos no mirante leste, rompemos montanha abaixo às 10:10h. Deste ponto o Balança já era visível, e toda a Serra do Marumbi se apresenta a nossa frente. O morro do Canal já não nem parecia mais tão impossível, assim como o sonho de concluir a Alpha Crucis.
A predominância agora era descida, e por crista bem definida até chegar ao Balança. Estávamos no último bloco de montanhas antes de despencar ruma à usina do Marumbi. O próximo agora seria o Jurapê Açu. Montanha com vegetação alta e sem visual, mas mesmo assim agradável por se tratar duma floresta bem amigável, tipo bosque. Eram 11h quando paramos no cume para descanso e identificação desta, a 27ª montanha. Nessa hora aconteceu algo que podemos chamar de conjunção astral. Olhei no GPS e percebi que o altímetro marcava 1100 metros, e o relógio, exatamente 11:00h. Jurandir fez até questão de fotografar o momento fugaz antes de avançarmos.
Seguimos pro Jurapê Mirim, a penúltima da etapa da Farinha Seca. Não havia identificação para ela, mas se somou no roteiro pra compor os 44 cumes, assim como a Esfinge, no bloco do Marumbi. Esta parte é a única da Farinha Seca que ficou pendente de abertura de trilha. Algo em torno de 200 metros, aproximadamente. Nossos amigos que passaram no final de semana, não devem ter tido tempo de resolver o problema, pois continuava da mesma forma que eu, Jurandir, e Barbara deixamos quando passamos por ali de ataque, na inauguração da travessia meses antes. Agora na Alpha Crucis, como a ferramenta havia ficado no Espalha-Brasa, fomos novamente obrigados a adiar a conclusão do serviço.
Andamos devagar para não perder o rasto, e quando finalmente reencontramos trilha boa vinda do Balança, a caminhada voltou a render a contento. O céu estava azul, o calor forte, e o Balança mais perto que nunca. Subimos rapidamente o último top antes de chegar acampamento Alto Alegre, lugar do inesquecível do precário bivaque que fizemos debaixo de chuva no dia da reconquista do Balança. Na deliciosa sombra e com a brisa canalizada pelo vale, largamos as mochilas e tomamos o último fôlego antes de percorrer os cinco minutos que nos separavam do cume. Levamos apenas a câmera e o material de registro, e em instantes chegamos na 28ª montanha, e última da segunda etapa.
O Balança não pode ser considerada uma simples montanha, muito menos para mim. Há exatamente 15 anos, o grande amigo Oséas de Araujo (Black), perdeu a vida nas vertiginosas escarpas desta selvagem montanha. Naquela época, já sonhávamos com a Alpha Crucis, mas essa tragédia colocou os planos em coma durante todos estes anos. Somente despertou novamente em 2011, e com força total. Trabalhamos duro e sem trégua para construir o elo central que possibilitava a realização da travessia. Foram três frentes de trabalho: Uma entrando pela Graciosa, a partir do Polegar, outra pelo Rio do Meio, rumo a Tapapuí e Farinha Seca, e finalmente outra pela Usina do Marumbi, para vencer as encostas medonhas e traiçoeiras do temido Balança. Sem dúvida foi a mais complicada e sacrificante. O resultado foi uma trilha planejada, relativamente segura, e de qualidade, para chegar a este cume. Agora estar no Balança, e saber que há uma trilha que te leva são e salvo até Usina do Marumbi em menos de três horas, faz com que qualquer um se sinta em casa durante as travessias na Farinha Seca.
Fixamos o adesivo na arvore do cume, e seguimos pro mirante afim de contemplar, e vadiar um pouco. Afinal eram somente 13h, e tínhamos folga de tempo pra fazer ainda com luz o que faltava até a Vila do Marumbi. Ficamos por mais de meia hora ali, só na folga e curtindo a vantagem conquistada com o bom rendimento da caminhada.
Às 13:30h voltamos no Alto Alegre, e antes de seguir ladeira abaixo, aproveitamos o recanto para repor energias. Já estávamos sem água há muito tempo, e a sede era grande. Nossa única esperança antes de chegar ao Rio Ipiranga, era a água empoçada na franja, onde sapos costumam se banhar. Mas infelizmente não estávamos em condições de fazer exigências, nem mesmo se importar com pequenos detalhes. Logo depois de vencer o crux da trilha por raízes equilibradas, chegamos na tal poça. Por sorte não havia sapos, nem girinos. Colhemos em torno de um litro de água, e estava deliciosa. Por pouco não matou nossa sede. Aproveitei então para afundá-la com a remoção da areia do fundo. Agora quem passar lá, terá pelo menos dois litros de água.
Seguimos em frente e chegamos na cachoeira seca, a qual justificava o nome. Descemos rápido a pirâmide do Balança até chegar na suave crista de ligação, por onde trilharíamos por meia hora até chegar no degrau. Nesse trajeto passamos pelo local de bivaque duma das investidas, e logo a frente ao mirante que dá visão pro Salto Rosário. Dali seria mais meia hora até o Tobogã, lugar refrescante onde paramos para baixar a temperatura corporal.
Continuamos às 15:30h, e em pouco mais de vinte minutos estaríamos no Ipiranga, para beber o rio todo. Pouco antes disso, usamos o resto de fita amarela pra fixar a última marca desta etapa. Matamos totalmente a sede no rio, porém decidimos deixar o indispensável banho depois de cruzar o rio São João.
Já na trilha batida e tranquila que leva ao Salto Rosário, seguimos em velocidade rumo as turbinas da Usina Hidroelétrica do Marumbi (UHM), indicatico incontestável do final da segunda etapa.
O rio São João estava nervoso, e tivemos que procurar pelo melhor ponto para cruzá-lo sem ser levado pela correnteza. Agora sem mais obstáculos, tudo que restava era um bom banho para aliviar os odores e recuperar a auto-estima. Acabou sendo um banho bem rápido em virtude da baixa temperatura da água, mas serviu ao propósito.
Saímos na porteira da UHM às 16:50h. Fizemos uma singela comemoração pelo fim da segundo elo da Alpha Crucis. Tudo que precisávamos ainda, era seguir pela estradinha até Eng. Langue, e depois pela trilha calçada até a vila do Marumbi. Neste meio caminho, ainda tínhamos que resgatar as provisões que havia escondido dois meses antes, quando fiz o Caminho do Itupava em solo com essa finalidade.
Andando pela estrada de terra, os olhos de lince do Jurandir detectam algo na beira da estrada, jogada no mato. Seriam mais cento e poucos reais? Não! Era uma calça velha de tactel, preta, toda suja de lama seca. Certamente alguém voltando do Itupava decidiu se livrar daquela imundice por ali mesmo. Jurandir a descola do chão, olha bem, e diz: É teu tamanho… e até está boa ainda… Quer? No inicio achei que tava de sacanagem. Mas ao sacudir o barro seco notei que realmente podia ser útil na atual situação. Certamente estava bem melhor que a minha, e sendo assim, decidi aceitar o presente.
Seguimos adiante para chegar ao rio que cruza a estrada, pouco antes da estação de Eng. Lange. Era o ponto de referência para encontrar a nova carga logística que deixara escondida na fenda entre duas rochas. Reencontrei facilmente. Abrindo os sacos plásticos pretos, num deles havia equipamento de cozinha (fogareiro, gás, panela, talheres, isqueiro). Como havíamos trazido o kit que estava no Espalha-Brasa, decidimos que este deveria permanecer por ali mesmo, para um resgate futuro. Já no outro, havia alimentos pra cozinhar (sopa e macarrão instantâneo), as quais seriam nosso jantar mais tarde, bom com pra noite seguinte, que de acordo com nossos planos, deveria ser a última da travessia. Ainda havia um terceiro pacote, onde estava um pacote de leite em pó de 400 gramas, e o melhor, PET 2L de coca-cola, que na atual situação valia ouro. Escondemos de voltar o que ia ficar, e já querendo anoitecer, prosseguimos.
Em Eng. Langue tudo estava calmo, e não vimos ninguém. Seguimos pela trilha calçada rumo a vila do Marumbi. No meio do caminho, já na penumbra, notamos alguém descendo. Era o guarda-parque que havia deixado o turno. Trocamos algumas palavras, e informamos que íamos pousar na casa do Giancarlo (Cover). Perguntamos se havia alguém na vila. Nos disse que estava tudo tranqüilo por lá, e que as únicas pessoas que estavam, eram a Bárbara e seu namorado Cainã. Ficamos muito surpresos e felizes por saber que essa pessoa espetacular que tanto estimamos, seria nossa vizinha naquela noite. Por fim nos despedimos para percorrer algumas centenas de metros que nos separavam duma autentica e aconchegante casa da montanha.
Mesmo com pouca luz, conseguimos apreciar da estação o conjunto do Marumbi. Como sempre, imponente e majestoso. Cruzamos discretamente a vila pra não chamar a atençao, e atravessamos o pontilhão para procurar uma entrada a esquerda que levasse a uma casinha marrom com portas e janela vermelhas. Sem dificuldade encontramos o endereço, e descemos de vez as surradas mochilas.
Pontualmente às 18:30h e com as chaves em mãos, abri dois enormes cadeados, enquanto Jurandir ligava o disjuntor da luz. Foi uma sensação única e indescritível abrir aquela porta, acender a luz, e adentrar aquele ambiente agradável e acolhedor. Depois de tantos dias sem conforto algum, finalmente teríamos uma noite especial, onde poderíamos jantar numa mesa, tomar banho quente, dormir numa cama. Era um forte estímulo para concluir a  travessia, e estávamos radiantes diante desta realidade.
Seguindo recomendações do proprietário, abrimos as torneiras antes de abrir o registro na caixa de água, localizada encosta acima e a alguns metros da casa. Sem conhecer direito o local e já noite, sofremos um pouco até encontrar. De volta na casa, pudemos finalmente nos esbaldar. Dávamos valor a cada recurso disponível, coisas corriqueiras que nem percebemos no dia a dia. Viver por vários dias na natureza selvagem, nas montanhas, servem para aumentar a percepção dos recursos que nos cercam no cotidiano, mas que nem lembramos mais o valor que tem, nem o quanto tornam nossa vida melhor.
Sem perder um minuto sequer, de cara me livrei daqueles trapos imundos, e mergulhei num longo e quente banho. Sai dele completamente renovado. Ligamos a geladeira e botamos a coca-cola pra gelar. Num jarro preparei um litro de leite, que consumimos puro pra repor proteínas. Daí fomos pro fogão. Preparamos dois miojos pra cada. Na ansiedade de saborear logo aquela delicia, nem percebi a mesa meia falsa, e por pouco não caiu tudo. Ver aquela pratada de macarrão espalhada no chão, sem dúvida iria me causar grande injúria. Bebi coca-cola na xícara, até parecia café. É claro que havia copos, mas eu não curto ser normal. Comemos e bebemos a vontade, e quando olhar pra comida já dava até nojo, decidimos deixar um breve relato de agradecimento no livro de visitas da casa. Também colamos um adesivo da Alpha Crucis na vidraça do rancho. Depois preventivamente, decidi usar gel de massagem de novo nos joelhos.
Ali somente coisas boas estavam acontecendo, mas sem dúvidas, a melhor estava por vir. Também a nossa disposição estavam dois quartos, camas. Poderíamos ter uma noite de rei como há vários dias não tínhamos. Jurandir ficou num, e eu noutro. Programei o celular pra acabar com nossa moleza às 5:00 da manhã. Deitar na cama macia, com travesseiros e cobertas de verdade, era última e mais agradável tarefa do dia. Nós sabíamos que num piscar de olhos despertaríamos do mundo dos sonhos de volta pra nossa dura realidade. Ela nos colocaria de volta na nossa rotina, e de frente pra última e mais difícil etapa da nossa interminável jornada. Nela, enfrentaríamos o pior tipo de terreno, sem trilhas, sem facilidades, nem piedade. Porém sabíamos também que, a cada passo dado, estaríamos mais perto de casa, do fim da missão. E esta por sua vez, era uma expectativa altamente estimulante.
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Sobre o autor

Elcio Douglas Ferreira é um dos maiores personagens do montanhismo paranaense. Experiente, frequenta nossas serras há mais de 35 anos, sendo responsável pela abertura de inúmeras trilhas e travessias. Foi um mentores da Travessia Alpha Crucis, considerada como a maior e mais difícil travessia entre montanhas no Brasil, que ele fez pela primeira vez em 2012. Possui experiência em alta montanha, já tendo escalado O Illimani na Bolívia e o Aconcágua na Argentina em poucos dias num esquema non stop impressionante.

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