Travessia Baependi – Aiuruoca em 48h

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Com a viagem de São Paulo exigindo quase 8h de transporte, parte pela distância, parte pelas estradas rurais acidentadas, que impedem uma velocidade mais elevada, não me cativara a travessia Baependi – Aiuruoca. Somando o tempo de ida e volta, com a própria caminhada por lá, normalmente feita em 3 dias, esse roteiro costuma demandar um feriado de 3 ou 4 dias. Com a correria que tem sido 2023, não havia como encaixar tal duração em nenhuma janela de tempo livre. Apaixonada por desafios, a Amanda Mascaro, capitaneando à vera o Arcanjos, arquitetou uma insanidade na medida: fazê-lo em 48h, com ataque opcional aos principais cumes. Com a vaga garantida, foquei nas outras travessias que estava comprometido nesse começo de temporada: Poços de Caldas-Águas da Prata, Serra Fina Full, Curiaco – Marins – Itaguaré. Trilhas inéditas ou versões apimentadas de roteiros já trilhados.

Com a aproximar da data do rolê, separei as tralhas de acampar, selecionando equipamentos leves e funcionais. Com a perspectiva de temperaturas próximas de zero, busquei reforçar a parte dos equipamentos de dormir, para ter condição de me recuperar plenamente, pois sabia que não dormiria muito na van na ida e que a pernada do primeiro dia seria extensa e com altimetria bastante expressiva.

Partimos do Tatuapé às 22h15, após quase deixarmos  um dos nossos quadros mais fortes e empenhadas para trás, pois o Douglas se confundira com o horário de saída, supondo que fosse 23h. Como acabara por esquecer o celular em casa, estava incomunicável. A viagem prosseguiu sem surpresas e fizemos uma parada para lanche já na saída de Aparecida. Algo não caiu muito bem para uma menina do grupo, e, na subida para Passa Quatro, precisaríamos fazer duas paradas para que ela se livrasse do que lhe embrulhava o estomago. Numa dessas, provavelmente na segunda, o Junior acabaria por perder o celular, ao aproveitar a parada para esticar as pernas. Nessas viagens, sempre deixo a lanterna de pronto emprego, de forma que também desci para caminhar um pouco e auxiliar na sinalização da van, parada numa estrada com pequeno acostamento.

Com a melhora da moça retomamos viagem e, pouco após as 6h estávamos no ponto de começo da trilha. Ali há diversas opções de caminhos, e começamos a caminhar pela estradinha que parecia atender à necessidade, mas que veria depois, se distanciaria (e muito) do nosso intento. Felizmente, o grupo permanecia atento à navegação e o erro inicial foi corrigido com celeridade. Deixamos a estrada e passamos a subir pelo pasto em busca do rastro batido que supúnhamos nos aguardar na crista do pequeno morrote. O rastro estava onde imaginávamos, não era tão batido, mas nada que atrapalhasse nosso progresso. Após algum tempo de caminhada, o sol que nascera já conseguia iluminar adequadamente nossos passos, mesmo no contraforte da montanha, por onde a trilha seguia, ganhando altitude aos poucos. Eu seguia no pelotão da frente, entretido em buscar identificar frutas silvestres e orquídeas.

Em pouco tempo, alcançamos o cruzo para o primeiro cume passível de ataque dessa pernada, o Careta. Receoso de não dar conta da proposta se abusasse dos “extras” preteri a subida para outra oportunidade. Nessa viagem, a primorosa organização (Daniela e Amanda) havia previsto 4 opções de trajeto, como sugestões para o FDS. Desde roteiro leve, com poucos quilômetros até o desafio “supremo”: fazer de Baependi até Aiuruoca, terminando na Cachoeira dos Garcia, após cumear o Pico do Papagaio. Passamos na sequência pelo Cruzeiro, onde fizemos uma curta parada para fotos antes de seguir, descendo para o vale do rio Piracicaba onde um simpático e rustico abrigo, conhecido como “Barracão” serve de base para incursões pelos cumes ao redor. Deixamos os equipamentos e fizemos uma breve subida ao cume do Chorão.

 

 

 

Retomamos as cargueiras e tocamos em frente, agora pelo subir e descer sem fim em direção ao cruzo do Piracicaba, na parte alta da Cachoeira do Juju, onde fizemos uma nova parada, rápida e refrescante, enquanto a seção de fotos do pessoal na cabeceira, onde o efeito de “borda infinita” permitia imagens singulares. Ainda havia muito a andar, antes de acamparmos, e a dúvida quanto a factibilidade da proposta, certamente, rondava o pensamento de muitos.

Ainda que as subidas fossem intensas e por vezes longas, o principal era a constância na caminhada. Paradas curtas para banho e fotos, onde aproveitava-se para descansar um pouco mais, esticar as pernas antes de retomar a caminhada. Nesse aspecto, a Amanda foi crucial para dar o tom das paradas e motivar os menos céleres para retomar o caminhar, em todas as paradas, fosse para fotos, retomada de fôlego ou banho.

Depois das fotos subimos pela longa encosta antes de descermos para cruzar as gélidas e velozes águas do Santo Agostinho, bem distante do ponto onde lança suas águas no rio Gamarra. Com a água na altura da cintura, entendi mais prudente deixar a cargueira e voltar para dentro d’água, ajudando os demais no cruzo. Pouco após as 13h50 estávamos com todos do outro lado do rio com descanso de 10 minutos autorizado pela em Amanda. Ainda havia bastante o que andar naquele dia, antes do acampamento planejado, já no Recanto dos Pedros, com 80 % da caminhada superada. Alcançamos a primeira placa da Parque do Pico do Papagaio às 15h50, bastando fazer uma longa descida para a região do totem do Santo Daime.

Ali, considerando que em breve anoiteceria, decidimos aguardar para seguirmos todos juntos, minimizando a possibilidade de um perdido mais sério, no seguir de rastros ou do tracklog durante a noite. Após alguns minutos de descanso, já com o frio de final de tarde se fazendo sentir com força, retomamos a caminhada serra acima, lentamente. O Henrique, talvez por excesso de peso, talvez por falta de condicionamento, sentiu mais intensamente o cansaço da longa caminhada, informando que precisava fazer uma pausa, pois estava sem conseguir caminhar, com fortes dores e cãibras. O Douglas, a Amanda e mais alguns, seguiram em passo mais lento, para permitir que nos os alcançássemos.

Infelizmente sua situação de esgotamento era tal que ficamos bastante tempo parados, mesmo com o Henrique medicado. Aliviei um pouco o peso da mochila dele, passando a levar sua água e o power-bank. Emprestei uma das minhas lanternas suplementares, uma vez que a dele estava quase sem bateria. Pelo rádio, reportei ao grupo da frente que aguardaria e seguiria mais tarde e o Douglas, para ajudar no avanço, retornou até nos e passou a levar a cargueira dele. Mais à frente, após algum desentendimento, seguiu em frente com as duas cargueiras, buscando alcançar o grupo que estava à frente, sob a condução e  navegação da Amanda. Alcançou-os no começo da derradeira descida para o Retiro dos Pedros e, seguiu com eles até o ponto de acampamento, o de chegaram às 20h36.

Escolheu um bom ponto de acampamento, com uma área próxima que caberia a minha barraca. Montou a sua tenda, tranquilizou a Amanda quanto a nossa chegada “iminente” e tratou de preparar uma primeira refeição quente. Como eu havia decidido não deixar o grupo de retaguarda ao léu, continuei a seguir com eles, apontando a distância e a altimetria restante para o acampamento. Nossa velocidade era baixa, muito baixa… baixíssima seria mais adequado. Comigo fazendo o “fecha” do grupo, de forma a não impor um ritmo que não suportassem, as erradas de navegação  se repetiam, a cada pouco, brevemente corrigidas. Decorriam em parte da baixa visibilidade à noite, somada ao cansaço acumulado. No trecho da derradeira descida, preferi tomar a frente e puxar o grupo que aguardar acertarem a passagem, naquele trecho confusa pelos vários desvios abertos na mata para evitar as poças de água que se acumulavam. Com o caminho definido, rapidamente alcançamos o último ponto de água do dia, onde tratei coletar o máximo possível para preparar o jantar e passar a noite. Alcancei a Amanda e o Douglas, insisti que vestisse minha jaqueta de pluma , já que emprestada a dela e estava caindo ainda mais a temperatura. Montei rapidamente a barraca, coloquei o isolante e o saco de dormir dentro e pedi para que ela se abrigasse, enquanto eu terminava de preparar o jantar. Preparei uma sopa e duas porções de purê instantâneo, com legumes e proteína de soja. Fizemos mais um chá quente e colocamos uma garrafa pequena com água quente para ajudar a aquecer durante a noite. Vesti o conjunto de segunda pele de dormir e também me abriguei do vento frio que soprava. Naquela noite o relógio marcaria 0°C de mínima, dentro da barraca, próximo das 6h.

Dia 2

O dia amanheceu ensolarado, e após recolher as tralhas e colocar a lente de contato (esquecendo os óculos de grau na pedra próxima), vestimos as cargueiras e partimos para a caminhada do segundo dia, bem menos extensa que a da véspera. No planejamento, um ataque ao Pico do Papagaio, antes de descermos em direção à cachoeira dos Garcias.

Iniciamos a caminhada pouco após as 8h com direção à linha de crista que nos daria acesso ao Papagaio. Seguindo os rastros de passagem, notamos que o caminho declinava um pouco à esquerda, fugindo da linha de crista que seria o mais provável para fazer a ligação entre o Recanto dos Pedros e a região do Papagaio. Alguém, verificou no GPS e informou que as trilhas “convergiam”… seguimos mais um pouco, cada vez menos confortáveis com a divergência entre o caminho intuitivo e os rastros seguidos, até alcançar um pequeno mirante, de onde podia-se observar a trilha batida, muitos metros abaixo.

Aquele caminho não fazia sentido… uma conferência mais apurada logo identificou o erro no uso da escala do aplicativo de navegação… seguindo por aquele caminho, cortaríamos muitos quilômetros de trajeto, evitando toda a região do Papagaio. Apesar de termos conosco convalescentes da trilha da véspera, a noite de sono os trouxera quase à plenitude e frente ao reduzido caminhar previsto para o dia, decidimos retornar sobre nossos passos até o cruzo Retiro dos Pedros X Pico da Bandeira X acesso à trilha para o Papagaio e corrigir a rota. O erro não chegara a ser tão intenso, de forma que sua correção não tomou demasiado tempo.

Às 9h17 alcançamos a “Pedra do Rei Leão” e paramos para fazer fotos, lembrando do Simba e de seu pai, Mufasa, no “clássico” do distante ano de 1994. Curti a ideia e apresentei minha cargueira à imensidão de montanhas que tanto me cativa. Registros feitos, passamos a descer a sucessão de pequenos cumes pedregosos, de forma gradual até a trilha de ligação entre os Garcias e o Pico do Papagaio.

Trilha aberta, batida e de pequena altimetria a ser vencida… 11h40 estávamos no cume do Pico do Papagaio. Alguns optaram por não se desgastar mais e decidiram por permanecer aguardando na área de camping, já quase na região de descida para os Garcia. Na descida, uma confusão acabou por se instalar devido a alguns totens que desciam uma cume até quase que sumir em abismo… eu e o Douglas procuramos passagem e apesar de vermos rastros da trilha ao longe, concluímos que não era o melhor caminho e retornamos. Nesse tempo de busca, o restante do grupo acabara por seguir em frente, sem nos aguardar. Aborrecidos com o comportamento do grupo, egoísta ao nosso entender, sentamos borracha na pernada, com o intuíto de passar o grupo e deixarmos de nos preocupar com o se daria certo ou não, se haveria ou não perdidos, etc.

Chegamos no restaurante dos Garcia às 15h, escolhemos mesa com bom visual e enquanto esperávamos a chegadas dos companheiros de jornada, aproveitamos para lavar mãos e rostos. Com a chegada da Amanda, o mal entendido se desfez e, conforme prometido, fiz questão de convidar aos companheiro para almoçar ali, desejo antigo. O almoço foi muito saborosa, em especial a salada e a truta… talvez temperados pelo apetite da caminhada até ali… tida como “impossível” por vários grupos. Como a Amanda acabara de provar, não há nada de impossível em fazer Baependi – Aiuruoca em “48h”… antes eu diria que é “impossível comercialmente”, apenas. Não convém fazê-lo a menos que o grupo seja muito forte física e tecnicamente.

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