Travessia Ciririca-Graciosa_2009

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O Climatempo foi categórico: “Fique em casa, que é roubada“, o Simepar completava: “Nem pense, vocês vão sifu“ e os amigos que conhecem o buraco foram unânimes: “Tô fora, é fria“, mas o Jorge Soto e seu parceiro Carlos, “o Mamute“ faziam corinho: “Vamos, vamos, vamos em frente“.
Fotos: Jorge Soto e Carlos Filho

O dia ameaçava nascer quando nos encontramos no Posto do Túlio, lá pelas seis e alguma coisa debaixo de um céu cor de chumbo. Os dementes vieram de São Paulo sem dormir e estavam prontos prá pernada. Um beijinho de despedida na Solange e lá vamos nós pro sítio da Bolinha no valente Ford Fiesta do Carlos que no meio do nevoeiro não identificou a saída da auto estrada. Novo contorno até o Posto Tio Doca e desta vez acertamos o pé no barro, carro estacionado e mochilão nas costas, vamos embora que agora, atrás não vem gente.

Embicamos pela trilha que serpenteia o ribeirão Samambaia rumo ao Ciririca pela trilha de baixo toda enlameada devido ao inverno chuvoso deste ano. Algumas fotos de apelo erótico ao passar pela grande árvore no caminho e muitas outras ao chegar ao Poço das Fadas. Na passagem pela Pedra da Corda tivemos um significativo atraso devido às dificuldades inerentes a tarefa de fazer um "Mamute" descer aquela piramba agarrado a um fio de nylon, enfim paramos na Cachoeira do Professor para um primeiro lanche e seguimos em frente num passo lento e seguro.

Diante das previsões pessimistas até que o dia estava excelente e a falta do sol só o tornava mais agradável para a caminhada. Enchemos os cantis na "ultima água" e dá-lhe vapor na rampa do cume. O Luar estava todo exposto e o Tucum as vezes aparecia por entre as nuvens, do Cerro Verde, Itapiroca e do PP nem sinal, totalmente engolidos pelo etéreo mar branco. No cume do Ciririca totalmente aberto tivemos um momento de relaxamento, muita prosa e comida prá forrar a pança. Nada se avistava dos Agudos logo abaixo e do Sete distante, abaixo e acima de nós tudo era opaco e denso. Tanto o Jorge quanto o Mamute se mostravam temerosos de que eu abortasse a travessia e estavam louquinhos prá enfrentar a danação naquela grota dos infernos. Quem sou eu prá tirar o prazer dos meninos?

Começamos a descer a bagaça do Ciririca pelo sul, naquela trilha que nunca conheceu facão, escorrega aqui, bundada ali, corda podre mais a frente, pedra escorregadia e os caras já estavam convencidos de que não havia volta. Nem meia hora de pernada e já estávamos encharcados até a medula, tiritando de frio no meio da cerração. Visão de dois a três metros e dá-lhe precipício! Saímos da neblina para a chuva escancarada antes de atingir a mata nebular já na penumbra de uma tarde sem claridade. Tudo lúgubre a nossa volta, como nos melhores filmes de monstro, zigzageando pelos labirintos escondidos ou batendo queixo ao sermos atravessados pelos ventos gelados ao despontar pelos campos lamacentos. Estávamos no centro da nuvem e detestei cada minuto da vida de anjo.

Já havíamos decidido não enfrentar o Agudo da Cotia só para assinar caderninho, sem visual não merecia o desgaste físico e paramos no fundo do vale apenas o tempo necessário para apanhar a água da noite e em seguida rumamos diretamente para o alto da Colina Verde onde rapidamente montamos o acampamento durante breve pausa na chuva.  Para quem navega as cegas pelo inferno a Colina Verde é o que tem de mais próximo do paraíso. Chão seco, isto mesmo, é tão drenado que fica seco debaixo de chuva, plano, macio e protegido do vento. Roupas secas, saco de dormir sobre o isolante térmico e o fogareiro chiando na porta da barraca com a panela cheia até a boca. Ahh! Como a vida é boa, basta não pensar no dia seguinte.

A noite fora tranqüila e quente apesar das pancadas de chuva e houve momentos em que até vi a silueta da lua e uma estrela solitária em meio a névoa, mas amanheceu do mesmo jeito, tudo branco e opaco. Depois do cafezinho quente a tortura matinal, comecei torcendo o calção, depois a camiseta e por fim as meias. Um litro de água suja, amarela e fedorenta saiu de cada peça. Vesti-las foi um prazer a parte e nem terminada a cerimônia rolou um trovão a leste, depois outros e os anorakes pularam prá fora das mochilas diretamente no lombo enrijecido pelo frio. Do GPS do Mamute só quis saber onde era o norte e nem demos duzentos passos pelo campo quando desandou o aguaceiro. Recomeçamos a tatear pelos campos debaixo de chuva e vento frio, seguindo minhas próprias pegadas do ano passado, cruzando as mesmas gretas que tentaram inutilmente me engolir até que uma primeira lufada de vento mostrou o Agudo da Cotia a nossa esquerda, outras abriram a visão do Ciririca enquanto as nuvens baixas eram varridas em pedaços e por fim apareceu a garganta no horizonte. É prá lá que vamos pessoal!

Dentro da grota o mundo é surreal, árvores, pedras e terra são revestidas de liquens que pendem como barbas de um verde musgo. É tudo atapetado e gotejante. A medida que descíamos pelo buraco as pedras foram crescendo e a água correndo por debaixo dos pés até se transformar num córrego encachoeirado. Algumas corredeiras e enormes pedras ensaboadas de limo visguento se transformaram em pesadelo para o Jorge e o Mamute até que tudo desandou numa linda cachoeira. Estava tão concentrado em não quebrar o pescoço pulando de pedra em pedra que nem vi a entrada no Rio Forquilha e só fui me dar conta dele quando vi a "Pedra da Colméia". Esta pedra é única porque dela pende um almofadão de liquens parecido com uma colméia de abelhas e situa-se logo adiante de outra pedra notável, é a maquete perfeita de um navio com a proa emborcada na praia.

O rio estava bem acima de seu nível normal e isto dificultava para andar sobre suas pedras lisas e também para se orientar, pois mudaram quase todas as referencias visuais, mas por instantes a névoa novamente se dissipou e mostrou a garganta bem a frente e ficou assim por tempo o suficiente para localizar o ângulo da forquilha que dá nome ao rio. Com visual é bastante simples, basta seguir adiante sem tirar os olhos da enorme massa do Arapongas, bem a frente, e num piscar de olhos ele desaparece. Identificado o cotovelo da forquilha começamos a procurar pela entrada na mata, o Jorge e o Mamute um pouco acima e eu mais abaixo até que encontrei minha precária marca amarrada a um galho de árvore.

Adentramos na selva confiantes em chegar logo a garganta e romper para o outro lado da vertente, mas não foi o que o destino nos reservou para esta tarde. Pouco adiante interceptamos o riacho e as fitas colocadas pelos "Nas Nuvens", escalamos a cascatinha que desce pela direita e seguimos em frente até as fitas acabarem no bambuzal. Continuamos firmes no meio da quiçaça, quebrando bambu na bordoada, arregaçando taquara fogo e rasgando cipó espinhento com o peito descoberto até que percebi uma paisagem estranha, o vale se orientava a esquerda e corria água sobre um leito de pedras negras, mas insisti no mesmo rumo até que dei num grande degrau de pedra coberto de musgo. Mandei ver o lance e cheguei num mar de bromélias gigantes, dali vi a Colina Verde por uma fresta na vegetação e concluí que a garganta que se desenvolvia a minha esquerda jamais poderia ser vista daquela posição então só poderíamos estar escalando a face norte do Tangará já que a encosta do Cotoxós é um inferno comparada a esta. O GPS do Mamute confirmou minha suspeita e resolvemos traçar uma diagonal a direita contornando o cume sem perder muita altitude. Rapidamente recuperamos a rota e entramos na garganta correta para reencontrar as fitas amarelas.

Iniciamos a descida por entre as grotas medonhas e escuras que formam as nascentes do Rio Mãe Catira. Pedras imensas, árvores vivas e mortas cobertas de limo, cipós e espinhos. Frestas e abismos abrem suas bocarras por detrás ou embaixo de cada pedra escorregadia para tragar os incautos. Horas de labuta contra os elementos hostis até que das pedras nasce o riacho que se avoluma com o encontro de seus pares para formar o rio que por fim vai se alargando, nivelando e correndo livremente por entre as pedras. Livre mas nem tanto e de tempos em tempos encontramos enormes árvores tombadas transversalmente sobre seu leito que ao cair arrastam outras menores num emaranhado de cipós que quase represam o rio. Bastariam mais um pouco de tranqueira trazida numa enxurrada forte para que se forme um dique e depois de um só golpe se rompa numa "cabeça d´água" avassaladora. Esta onda assassina com mais de um metro de altura arrasta tudo o que encontra no seu caminho, troncos gigantescos e pedras colossais descem rolando a vertente com o som de mil detonações a dinamite e as águas avançam dezenas de metros para além das margens. Este fenômeno ocorre todos os anos nos rios São João, Nhundiaquara e Mãe Catira e não são poucas as suas vítimas.

Zoei com o Jorge e o Carlos afirmando que suas bundas estavam se apresentando a todas as pedras do rio, mas realmente estava muito difícil de evoluir por dentro do rio devido ao nível muito alto da água que encobria boa parte das pedras e deixava muito escorregadias as suas pontas expostas. Estava tão obcecado em chegar a Cachoeira da Santa e me livrar da parte alta do rio que ao passar pelo enorme tronco preto deitado sobre o leito que nem me lembrei do abrigo de palmiteiros que o Elcio, o Johny e o Batista descobriram durante sua investida relâmpago, mas felizmente o Jorge resolveu cortar caminho pela mata e o encontrou, resolvendo acampar por ali.  

Foi uma decisão acertada tanto pelo horário como pela topografia favorável do terreno, confortavelmente plano e numa distancia relativamente segura na dissipação destas prováveis "cabeças d´água". Desta vez havia árvores para o Carlos montar sua rede de selva enquanto eu e o Jorge armamos nossas barracas no roçado. Felicidade é ouvir o fogareiro chiando debaixo de uma panela fumegante enquanto contamos "causos" de caminhadas passadas e trocamos planos para as futuras.

De madrugada a chuva cessou e pude ver a luz da lua cheia rasgando a densa folhagem da mata que nos envolvia e pela manhã o sol apareceu num céu azul imaculado. Repetimos todo o ritual de torcer e vestir as roupas encharcadas, socar as tralhas dentro das mochilas e voltar a pular pedras por dentro do rio, mas agora está tudo diferente. O sol, a luz, a alegria e os pássaros fazem toda a diferença. O rio está bonito, a floresta está maravilhosa e o espetáculo de luz e sombra faz tudo vibrar com a vida que renasce. A frente o rio despenca numa primeira seqüência de quedas e alerto para os paredões do dique de diabásio que se inicia, mostro os paredões de pedra negra que se erguem a pique na medida que afundamos no canyon. Os dois ficam extasiados com a visão da grota sob a luz da manhã e por fim a magistral panorâmica do alto da cachoeira.

Dias depois surgiu na internet uma polemica sobre o verdadeiro nome da cachoeira, mas, diga-se de passagem, que ela realmente não tem um nome oficial. Sempre a chamei de "Cachoeira da Santa" por duas razões. A primeira é que seu acesso se dá pela Trilha da Santa ou Santinha, como é chamada pelos habitantes das proximidades, devido a mesma se iniciar as margens da estrada da Graciosa, junto ao marco do quilômetro 22 onde até meados da década de 70 havia uma imagem de Nossa Senhora no mesmo lugar em que ainda fazem despachos e macumba. A outra é porque dependendo da quantidade de água que dela despenca, as pedras desenham uma imagem negra de mulher com a cabeça saliente por entre um véu de branca espuma.

Depois de comer meu último ovo cozido iniciamos a desescalaminhada por uma estreita passagem na beirada do vazio, descendo pela encosta barrenta até o fundo da grota onde se forma uma piscina, mais algumas fotos e novamente enfrentamos a medonha rotina de pular pedras. Na realidade tanto o Jorge como o Carlos já vinham há algum tempo empurrando água com as coxas e passamos por magníficos piscinões sem que nenhum deles praticasse o tradicional thibummm, então a poucas centenas de metros para escapar daquela tragédia, escorreguei caindo de costas prá dentro rio. Relaxei o corpo diante do tombo inevitável e mergulhei inteiro na piscina, mesmo assim batendo violentamente o cóccix contra uma pedra submersa. Flutuei a frente e fiquei estirado sobre outra pedra até conseguir respirar novamente, esperando amenizar a dor. A caminhada tornou-se quase insuportável dali pra frente, mas graças ao bom Deus logo saímos do rio.

Conta uma antiga história que o rio recebeu seu nome de uma ilustre negra escrava que foi liberta pelo seu senhor depois de ter muitos filhos e sozinha estabeleceu moradia as suas margens. Toda lenda tem sempre um fundo de verdade.

Iniciamos a caminhada pela discretíssima e quase imperceptível Trilha da Santinha em direção a Serra da Graciosa, subindo e descendo incontáveis encostas barrentas por entre uma floresta densa onde poucas vezes a luz do sol consegue penetrar. Sobe e desce morro, cruza rio e escala cachoeira, desviando imensas árvores tombadas pelos temporais e passamos ao lado de uma toca de tatu recém cavada, quando desafiei o Mamute a pegar o bicho. Pegar tatu é fácil, mas desentocá-lo tem seus segredos. Antes é necessário certificar-se que na toca haja um tatu e não uma jararaca que também gosta de esconder-se nelas, então se enfia a mão no buraco até apalpar a carapaça e o bicho estica as pernas enfiando as garras nas paredes. Pode puxar até saltar a veia do pescoço que dali ele não sai. Calmamente procure a parte traseira do animal e introduza o indicador bem lá, no orifício anal, então o bicho se encolhe todo e entrega os pontos depois de já ter perdido as pregas. Comer tatu fica ao gosto do freguês, mas antes lave o dedo.

As 13:00 horas estávamos despontando para fora do mato junto ao marco de pedra no quilômetro 22 da centenária estrada da Graciosa, muitos cumprimentos, festa, fotos e mais caminhada pela beira do asfalto até o alto da serra no quiosque da vista Engenheiro Lacerda. O céu já estava preto e pesado novamente, ameaçando cair sobre nossas cabeças. Trocamos de roupas e enquanto tomávamos uma cervejinha o Carlos corria na chuva até um ponto distante 500 metros para ligar pedindo pelo resgate que ainda iria demorar outra hora e meia. Neste meio tempo o mundo veio abaixo com a ventania, voava lata de lixo, toldos e tudo mais, muitas árvores caíram e a estrada foi interditada. A aventura ainda não terminara.

Apareceu a Santa Solange em meio a tempestade para nos salvar e zarpamos para resgatar o carro do Carlos no sítio da Bolinha. A estrada estava um barreiro imenso que fazia o automóvel patinar na descida, mas fomos em frente até encalhar depois da porteira. Imaginei que a frente estaria pior ainda e então o Carlos foi buscar seu Fiesta a pé para que eu não emporcalhasse toda a estrada e daí é que ninguém saía de lá mesmo. Depois de muito sufoco apareceu o valente e segui atrás até faltar uns 600 metros para o asfalto, então parei a uma distancia razoável, acionei a tecla do Adventure Locker e mandei ver mesmo com a Solange dizendo para não ligar aquilo. O bicho chegou até a metade do atoleiro, gingou, patinou e escorregou pra dentro da valeta. Que m..! O Mamute passa com um Ford Fiesta e esta b… enfeitada fica atolada dentro de uma valeta!

Já tinha barro até na copa das árvores e o carro continuava atravessado na estrada com o traseiro dentro da valeta até que apareceu um caboclo com uma legítima Ford Corcel Belina I, cansado de assistir tamanha palhaçada resolveu dar uma mãozinha para desimpedir a estrada. Tomou a liderança e mostrou aos três patetas como se tira uma jabiraca da lama, com dois tapas e um cascudo o carro desatolou e desci deslizando de ré até terreno firme. Tomei embalo, passei pra segunda e entrei quente espalhando lama, contorcendo-se todo de uma valeta a outra até que saí na outra ponta livrando a estrada pro vovô ir pra casa. Pra mim a aventura tinha terminado, mas o Jorge e o Carlos ainda enfrentariam 110 quilômetros de engarrafamento na entrada de São Paulo.

No retorno pra Curitiba, a Solange ainda repetiu pelo menos umas três vezes aquela célebre frase que ilustra toda a sapiência feminina:
– Eu bem que te avisei pra não ligar aquela porcaria do Locker…, mas você é teimoso feito uma vaca!

Leia também Ciri-Graciosa: A Serra Fina Paranaense no relato de Jorge Soto, a outra versão desta mesma travessia

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Sobre o autor

Julio Cesar Fiori é Arquiteto e Urbanista formado pela PUC-PR em 1982 e pratica montanhismo desde 1980. Autor do livro "Caminhos Coloniais da Serra do Mar", é grande conhecedor das histórias e das montanhas do Paraná.

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