Travessia Curiaco – Marins – Itaguaré  –  A monstruosa

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Tomei conhecimento por acaso, de que o Kleiton Lincon, que eu conhecia da SF, durante a nossa travessia com os “Perdidos” do ano anterior (Serra Fina Achados e Malucos), pretendia tentar uma subida ao Marins, por uma rota inusual, a partir do bairro aos pés da montanha. De imediato, a ideia me cativou, e desejando boa sorte ao colega, me prontifiquei a ajudar em eventual resgate, se necessário. O caminho que ele escolhera para o acesso era o inverso da rota desbravada anos antes pelo Ângelo Neto, descendo em solitário, pela sequência de cristas do Marins, Maria, Mariana e Focinho de Cão, em 2010 e repetida, apenas uma vez, no ano de 2015, pelo próprio em parceira com o Ricardo Rui. Em se tratando de serra do mar, isso quer dizer vegetação quase que virgem. Pretendia fazer a subida em 3 dias, e subiria com equipamentos e um grupo forte, pelo que previa. Desejei boa sorte e fiquei no aguardo das boas notícias.

Passados os 3 dias, soube, por ele mesmo que houvera necessidade de solicitar o resgate, por parte dos bombeiros, pois havia se encurralado em uma passagem que não acreditava segura de superar com os meios de que dispunha. Felicitei-o pela prudência em reconhecer a própria limitação e solicitar o resgate antes que algo pior ocorresse. Apesar de não concluir, de forma autônoma, o intento de fazer a travessia “invertida”, o grupo alcançara o cume do Focinho de Cão, de forma que Claiton Monteiro, Kleiton Lincon e Mateus Monteiro se fizeram o terceiro grupo a palmilhar aquele cume.

Depois tomaria ciência da rusga pública entre ele e o primeiro a subir o Focinho de Cão, acredito que fundada na divergência de emprego da palavra “conquista” de um cume.

Aqui, cabe uma muito simplória explanação, minha leitura apenas, da questão: “conquistar” um cume, é o mérito do primeiro a alcançar seu ponto mais alto, documentando o feito de qualquer forma. Fotos, relatos, mensagens para a posteridade deixadas no cume, testemunhos, registros de gps da expedição, são provas sempre aceitas baseadas na boa fé do declarante. Caso se constate, em momento posterior, uma ascensão esportiva anterior, os “méritos” da conquista são naturalmente repassados ao montanhista (ou grupo) predecessor. Simples, claro e natural. Já ocorreu antes. Ocorrerá novamente.

Uma vez que a montanha foi conquistada, o conquistador tem o direito de nomeá-la, respeitando algumas regras, com grande amparo na tradição (o IBGE formaliza a maioria delas). Havendo um nome local antes, é praxe mantê-lo, até como deferência aos moradores do entorno. Talvez seja o caso do Focinho de Cão/Curiaco. Escutei da Dona Ofélia que ela se lembrava de referirem aquele cume como Curiaco fazia muito tempo, desde que ali chegara, há mais de cinco décadas, e que, em algum momento entre a década de 80 e 90, o “pessoal de São Paulo” começou a se referir a ele como “Focinho de Cão”, nome mais difundido atualmente. Por prevenção, grafei ambos no livro de cume e nesse registro.

O acesso por eles escolhido acresce bastante dificuldade ao trajeto “clássico” em descida? Sem dúvida, varar mato montanha acima é mais desgastante que montanha abaixo. Antes da investida deles a rota só fora trilhada duas vezes, uma na conquista e outra, cinco anos depois. O trio, Claiton, Kleiton e Mateus alcançou o Mariana, mas não concluiu o acesso até o Marins, de forma autônoma. Mesmo assim, antes de solicitarem apoio, já haviam cumeado o Focinho se Cão. A fazê-lo por baixo, do vale, do bairro, foram os primeiros. Conquista pessoal decorrente de muito esforço e preparação? Sem dúvida. Conquista no sentido de serem os primeiros a pisar naquele cume, sob a ótica esportiva? Não. Acredito que dessa imprecisão no emprego da palavra “conquista” surge a rusga entre esses dois montanhistas. Não é meu ensejo discorrer mais sobre isso.

Com a proposta de fazer uma incursão ligando o bairro dos Marins com o Itaguaré lançada pelo Douglas no grupo, tratamos de preparar e planejar o como faríamos. A praxe passa por discutir quem está disposto a se alegrar comendo mato e terra montanha acima, equipamentos mínimos, estudo de relatos e mapas, avaliação das informações de tracks disponíveis, logística, datas, etc. Sempre procuramos cumprir essa etapa de forma detalhada e ampla.

Preparativos – incursão prévia

Com base nos relatos do Ângelo Neto e do Kleiton Lincon, decidimos que uma das prioridades seria contarmos com água abundante. Nesse intuito, subiríamos pesados, com cerca de 5 l por cabeça e, por proposta da Amanda Mascaro, faríamos um ataque antes ao Marins para deixarmos alguns litros do precioso fluido entocados para brindarmos a chegada. Uma vez pensado, partimos para executar o planejado. Subimos à noite, com mochilas de ataque pesadas, com o mínimo de equipamentos por segurança, cada um levando 6 litros de água para deixar lá em cima, além de 1 litro para consumo próprio no retorno.

Com esse ponto de suprimento abastecido, marcamos a data da subida para 17/09/2022.

Tentativa 1

O grupo seria composto pela Amanda Mascaro, Douglas Garcia, Guilherme Wilian (PR), Kleiton Lincon, Rogério Alexandre e Wilian Marcelino. Apesar da chuva fraca e constante, iniciamos a subida com a esperança de que a chuva cessasse conforme caminhasse para o amanhecer e, na sequência, tivéssemos tempo firme. Pilhados e ansiosos, apertamos o passo morro acima, e com isso, aquecemos por demais os corpos e acabamos descuidando, de forma que mesmo com o uso (inadequado) das proteções para chuva, nos encharcamos. Com a temperatura na casa dos 7ºC e as roupas encharcadas, não tardou muito para começarmos a ter sinais de hipotermia, em seus estágios iniciais. Eu percebi que além de tremer, não conseguia fazer o movimento de pinça. O Douglas me passou que tinha impressão de que o Guilherme e o Kleiton estavam sofrendo com o frio. Nessa hora deixei a decisão de bivaque de emergência tomada, apenas à espera do primeiro a se manifestar por ele. Minha intenção era não dar margem a discussões ou divisões no grupo. Sendo assertivo e tomando para mim a necessidade de fazermos a parada, tornaria mais fácil aos demais “simplesmente aceitar” a decisão tomada. Isso nos faria ganhar um tempo crucial naquelas condições.

Kleiton, Amanda, Douglas, Willian no gelo que foi a primeira.

Douglas, Willian, Guilherme, Amanda e eu a brindar a vida.

Pouco depois, chegamos num platô mais aberto e o Kleiton propôs o bivaque. Como pensado, sem dar margem para discussões, em pouco mais de 7 minutos estávamos sob a lona (montada mais elevada do que deveria, mas foi o possível nas condições). Cedi uma blusa seca pra Amanda e a colocamos no interior do grupo, tirei a blusa encharcada e vesti a jaqueta de plumas, e para proteger da densa garoa que molhava tudo, fiz de um cobertor de emergência um simulacro de poncho. Espremidos, aproveitamos o calor corporal possível ali. O Douglas optou por se manter sobre a cargueira dele… passou frio, e não foi pouco. Para combater o enregelamento das extremidades, dava risada. De nervoso e de frio. Por isso que falo, minha mãe tem razão quando diz que ando com um pessoal amalucado.

Iniciamos a caminhada a meia noite, paramos para bivaque às 04:00 e, com o conforto possível naquela situação aguardamos o clarear do dia. Alguns pequenos cochilos de uns e outros, a depender das condições particulares, principalmente de frio. A alvorada não trouxe uma condição climática mais favorável, e após uma reflexão cuidadosa, optamos por abortar a tentativa, por segurança. O maior receio era que o tempo permanecesse tão úmido quanto até ali, o que nos colocaria, ao chegarmos no cume do Marins, sob temperatura bem menor, com equipamentos molhados, receita fácil para um perrengue mais sério. Há o dia da caça e o dia do caçador. Aquele era um dia da montanha. E ela decidira que não nos queria ali. Insistir, com o preparo de que dispúnhamos era envidar contra o cassino. Era momento de recuar, então preparamos um chocolate quente para retornar algum calor aos corpos e tratamos de reunir as tralhas para a descida.

No retorno, sendo descida, a velocidade média aumentou o um pouco, dado que não havia necessidade de tantas paradas as conversas que eu ouvia tanto do grupo à frente quanto do grupo atrás de mim, não faziam nenhum sentido. Acredito que todos estivéssemos ainda sob hipotermia, e a confusão decorrente dela. A descida foi relativamente rápida e as nuvens começaram a se dissipar quando estávamos no alto do morro do pasto. Víamos sol ao longe, nos picos; mas ali era sombreado pelas montanhas às nossas costas, então estimamos que os raios do astro-rei apenas nos alcançariam quando estivéssemos junto aos carros, na propriedade da Dona Ofélia e seu filho, Rivail, na base do poço Curiaco. Conta certa, e foi por demais agradável sentir o aquecer mais intenso do corpo, sob o sol. Retornamos aos lares, com o travor do insucesso e a certeza tácita de que voltaríamos a tentar, sob condições melhores de tempo.

Dois mil e vinte e três. Ano novo, vida nova. Fizemos algumas trilhas, de dificuldade crescente e planejamos concluir a travessia no feriado do dia do trabalhador. Assim teríamos 3 dias para acertar uma janela necessária de 2 de tempo firme. O feriado se avizinhou com previsões incertas ainda, típicas de mudança de estação, de forma que acompanhamos detidamente o tempo, com as cargueiras preparadas, na expectativa de termos a janela necessária. Não ocorreu e sábado, à tarde, jogamos a toalha para aquela data. Postergamos sine die, pois a sequência de compromissos prévios tornava pouco provável que conseguíssemos reunir o grupo novamente antes de agosto.

Na quarta, a janela climática que buscávamos se delineou para o fim de semana seguinte, com os modelos numéricos de previsão do tempo convergindo para tempo firme tanto na sexta, quanto ao longo do final de semana. Só havia expectativa de chuva, na terça seguinte. Uma janela improvável e alinhada ao final de semana. Instamos ao grupo que reavaliassem os compromissos para o final de semana, obtendo aquiescência explícita de uns (eu, Douglas e Willian), promessa de verificar a possibilidade (Kleiton), sondei a viabilidade da Amanda, mas o comemorar do aniversário da mãe, que ela organizara com tanta dedicação, me fez sequer detalhar o que pretendíamos. Na quinta, no meio da manhã, o Kleiton informou que conseguira reprogramar o compromisso e que estava dentro da nova tentativa. Na correria que se seguiu, acabamos por olvidar de convidar o Guilherme, pelo que peço, em nome do grupo, desculpas.

Como havíamos decidido após a tentativa anterior, dessa vez subiríamos mais pesados, com equipamento para, se necessário, instalarmos proteções na rocha. As chapeletas de inox seriam instaladas com parabolts de mesmo material, evitando fragilização ou corrosão por pilha galvânica. O reforçar de equipamentos cobraria seu preço no peso das cargueiras, e no afã de minorar o desgaste físico, fizemos novo arranjo de equipamentos, responsabilidades e confortos. Subiríamos com barracas para dividir em duplas, cozinha centralizada e alguma divisão de tarefas. A mim coube, dividir barraca com o Kleiton e cozinha para o grupo todo. Tratei de separar refeições liofilizadas, dobrando as indicações de consumo das embalagens, prevendo que o gasto calórico seria elevado. Escolados do frio anterior, o Douglas levaria cappuccino em pó, para prepararmos nos cafés da manhã e no momento de eventual instalação de proteções, quando o progresso do grupo seria refreado pelo processo de instalação. Separei também 4 pacotes de sopa instantânea pra cada um, para lanches/almoço de trilha ou combate à hipotermia. Como seria o responsável pela cozinha, separei um fogareiro a gás como principal e um fogareiro de combustível sólido, como backup. Reforcei no grupo a necessidade de contarmos com espaço nas mochilas para absorver as águas deixadas no ponto de bivaque anterior.

Arranjo de equipamentos preliminar.

Auxílio e backup da navegação eletrônica

Face às obrigações de trabalho, combinamos o encontro no metrô Tatuapé, já fora da área do rodízio municipal de veiculais para as 18:00 de sexta. Dali seguiríamos, direto para encontrar o Kleiton na lanchonete Nova Bréscia, na entrada da cidade de Piquete. Com a intenção de entrarmos na trilha o cedo possível e ganharmos horas adicionais de luz no trecho que desconhecíamos da subida.

Dia 1

Na sexta, no começo da manhã, tivemos a notícia de um desfalque involuntário na equipe: o Will fora escalado, de última hora, para trabalhar. Em função de sua especialização e conhecimento, não havia outro para cobrir a necessidade. À contragosto, reconheceu a realidade e seu profissionalismo prevaleceu ante a diversão. De quarteto, passamos a trio, e os convites de última hora para recompor a equipe não lograram êxito. Paciência. Revimos os equipamentos e consumíveis para a nova configuração e antecipamos a saída do Tatuapé para 17:00. No horário combinado, com a chegada do Douglas, partimos para Piquete com o encontro na lanchonete marcado para 20:30. Chegamos lá pouco antes e aproveitamos para jantar a comida simples, mas saborosa, feita no fogão à lenha. Com a chegada do Kleiton, partimos para o Poço do Curiaco, base das nossas incursões.

Dona Ofélia nos recebeu com carinho na noitinha que esfriava rapidamente. Depois de estacionar a viatura, retiramos os equipamentos e revisamos os arranjos das mochilas, distribuindo o material técnico de escalada que levaríamos, para eventual necessidade. Fiquei com algumas poucas ferragens, martelo, chave e brocas, o Douglas com nossos 60 m de corda, furadeira, fitas e bateria. O Kleiton levou com ele, além das tralhas escondidas na mochila (entre elas 6 kg de equipamento fotográfico, pacotes de miojo, etc. vai que, né?), 4 litros de água, costuras e sapatilhas. Deixei espaço para a água que iríamos recuperar no ponto do bivaque anterior. Pelas minhas lembranças, ali haveria 10 litros de água, pelo menos. O GPS principal, apesar de verificado durante a manhã, apresentava algum bug. Não houve meio de fazê-lo voltar a operar. Informei aos colegas que, de redundância tripla na navegação (GPS principal, secundário e mapas, passaríamos para redundância dupla). De qualquer modo, as direções de modo geral seriam ditadas pela própria morfologia da crista e os pontos em que permite o acesso subindo.

Cargueiras arrumadas, partimos às 22:12, sob a torcida da Dona Ofélia. Com o solo mais seco, rapidamente alcançamos o ponto de cruzo do rio nas incursões anteriores, e tentando evitar de iniciar a trilha com os calçados encharcados, preparamos um vau malfeito com pedras. Houve quem passasse sem molhar o calçado, quem quase o conseguisse, mas acabasse por enfiar um ou os dois pés na água do rio, que corria pouco acima das canelas.

Do outro lado do manso riacho, fizemos um pequeno arco para acessar o pé do morro do pasto, uma subida que parece não ter fim, pela monotonia na imagem. O segredo para subir esse tipo obstáculo é não prestar muita atenção no quanto já se galgou ou no quanto falta. Subindo devagar, de forma cautelosa e procurando distrair a mente da atividade em curso em pouco mais de 1 hora de subida, dobramos à esquerda, e passamos a andar pela crista do morro, com a cerca que divide as propriedades nos fazendo companhia até o início de um bosque no contraforte da crista que buscávamos alcançar.

Subida exigente, desviando da vegetação que aos poucos retoma antiga vereda de passagem dos grupos precedentes.  Há cada pouco encontrávamos fitas de sinalização que o Clayton deixará na passagem anterior. Buscar essas fitas passou a ser uma espécie de gincana e encontrá-las um prêmio apaziguador. Vencido o aclive mais intenso, a vegetação modifica, passando a ostentar árvores encarquilhadas, com os troncos retorcidos, gramíneas, orquídeas. Nesse trecho uma quantidade expressiva de tocas mais recentes fazia parecer que houvera escavações por ali. Animais de comportamento gregário? Apenas uma coincidência? Não faço ideia, mas foi algo que me chamou atenção. Prosseguimos em suave declive até o pé da próxima encosta a ser galgada, nos trechos mais abertos, como fora durante toda a subida do pasto, deixávamos as lanternas na menor intensidade, de forma a poupar as baterias, aproveitando o intenso luar.

Subimos procurando abrir passagem para o corpo por entre a vegetação formada por uma infinidade de samambaias, moitas de capim e arvoretas. O final do verão, abundante de chuvas ali, permitirá um expressivo crescimento das plantas e por vezes, parecia que não se encontraria rastro da passagem anterior. apenas impressão, mas acabou por nos fazer supor, após as horas de subida terem excedido as 4 horas empregadas na vez anterior que havíamos deixado o ponto de bivaque passar. Com a navegação eletrônica reduzida ao MapShare, optamos por descer para buscar a água para que a subida fosse menos sofrida. Deixamos as cargueiras e despencamos encosta abaixo, céleres pelo corpo leve, pela passagem facilitada pelo rastro da ida minutos antes e pela ansiedade em recolher a água e retomar a subida. Descemos uns 5, talvez 10 minutos, gradualmente mais desconfortáveis com a dúvida quanto a termos ou não deixado escapar o ponto de bivaque, apesar de o procurarmos atentamente. Eu deixara nosso aparelho de GPS operacional na cargueira, então o ponto precisava ser encontrado no físico usando mapa e coordenadas. Não é o processo mais expedito, e após descermos algumas centenas de metros, verifiquei nossa posição relativa ao bivaque que buscávamos, constatando que estava acima de nós. O ponto em que deixamos as mochilas era muito próximo do ponto de bivaque, e como subimos mais lentos, nosso referencial de tempo não era adequado.

Retomamos a subida, aliviados por termos sido eficientes na identificação do erro e de sua correção. A tranquilidade com que aceitamos a possibilidade de termos passado o ponto e a unanime decisão de buscá-lo denotava o cuidado que nos acompanharia em toda a pernada, fator que certamente muito contribuiu para não termos nenhuma intercorrência.

Retomamos as cargueiras e voltamos a subir, agora com os pontos observados se alinhando, à perfeição, com os indícios das passagens anteriores.

Trilhando na madrugada

Orquídea de ampla distribuição geográfica .

Cerca de 03:00 alcançamos o ponto do bivaque de emergência, constatando de forma inequívoca que, de fato, subíamos mais lentos que a vez anterior. Algo se aprende, né? Também subíamos mais pesados, de forma que é bem justificado o abandono do buscar celeridade no ganho de altimetria.

Retiramos as cargueiras, combinamos uma pausa rápida de cinco minutos para não esfriarmos os corpos e, após o Douglas recuperar as águas entocadas, tratamos de distribuir as águas entre as cargueiras. Percebi nessa hora que fizera bem em poupar espaço e peso na minha cargueira, haja vista a dos meus companheiros já estarem quase que “topadas”. Na cargueira do Douglas, conseguimos somar 3 garrafas de 500 ml de água com gás. Peguei duas garrafas de 1,5 litro, uma de dois litros e mais 6 garrafas de 500 ml, das quais duas usei para preencher novamente a minha garrafa da peitoral. As de 1,5 litros foram colocadas nos bolsos laterais, quatro de 500 ml dentro e posicionei a garrafa de dois litros sobre o tampo da mochila, firmemente presa pela fita em Y. Agora com os quilos de água somados aos 12 quilos de peso original da minha cargueira, passei a me arrastar montanha acima, mas sabedor que aquela água seria crucial para vencermos as subidas sem desidratarmos nem precisarmos recorrer às águas de bromélias, musgos e poças, não me perturbava com a mochila estar tão leve quanto costumo arranjar. Cabe aqui, duas breves linhas sobre a cargueira que eu usava, nessa noite em especial: uma Mini Leve da Alto Estilo que, projetada para uma carga limite de 12,5 quilos era demandada a dar conta de 20 quilos. A sobrecarga seria sentida nos ombros, felizmente de forma não muito intensa. As passagens técnicas exigiriam a retirada das cargueiras inúmeras vezes, e a cada vez, era oportunidade de ceder um pouco de água para os companheiros de trilha, de forma parcimoniosa, uma vez que eu não sabia o que nos aguardava nos quilômetros faltantes. Com o nascer do sol, certamente o consumo de água cresceria consideravelmente.

Logo após sairmos do ponto do bivaque, a inclinação se intensificou, no morro grafado como “lamento” no tracklog de referência e o primeiro ponto de exposição da subida se apresenta: uma laje rochosa, em “v” invertido, com abismos em ambos os lados e uma faixa, talvez de dois metros de vegetação a cobrir sua linha divisória. No final da laje, um formigueiro de uns 60 cm reinava soberano. Subi pela vegetação, “colado” no Kleiton e, quando percebi o formigueiro, lembrei do relatado pelo Douglas na subida ao Ruah Norte, onde formigas do tamanho de grandes feijões cobriram seu corpo. Ali, não haveria como remover as formigas antes de colocar pelo menos uns 6 m de distância dos precipícios que circundavam. Deixei que o Kleiton abrisse uma boa vantagem, de forma a poder superar o formigueiro, agora com as hostilidades formalmente abertas contra os invasores, em rápidos passos pelo terreno conflagrado. Uma vez que o Douglas estava uma vintena de metros abaixo, foquei em superar o ponto antes de avisá-lo. Assim teria certeza de que nem o distrairia na laje nem que ele não me ouviria pela distância. Passado o formigueiro, verifiquei rapidamente que não havia formigas nas minhas roupas e o alertei do risco adicional na extremidade superior da laje.

Retomei a caminhada encosta acima, quase que todo o tempo abrindo passagem por entre moitas de capim e pequenos e intrincados bosques de bromélias, que nos molhavam os calçados e que, felizmente, não apresentavam espinhos.

Algumas passagens, exigiram o escalar de barrancos de 2 ou três metros e, onde as raízes ou galhos não permitiam uma pega segura, empregávamos a fita, com alguns degraus feitos por nós, para viabilizar a subida. Não foram muitos os pontos nesse sentido, acredito que até o pé do Mariana, uns 5 pontos, se tanto, demandaram o emprego da fita.

Trecho costumeiro da subida

Seguindo próximo do Kleiton, eu podia aproveitar o caminho recém-aberto quase que o tempo todo, e, quando percebia que havíamos passado direto em alguma bifurcação ou desvio, ajudar na correção de rota. Faltando pouco mais de meia hora para o dia clarear, um paredão mais alcantilado, com uns 20 m de altura parecia obstar qualquer tentativa de galgá-lo. Para onde conseguíamos ver, em sua base, a inclinação era crescente, ao ponto de parecer se tornar negativa nos metros finais. Insistir ali era convite certo para um acidentar, de forma que retornamos sobre nossos passos, buscando a passagem, agora à direita que nos levaria a uma fenda por onde contornaríamos aquela parede. Rapidamente encontramos a passagem correta, mas com a sinalização do Kleiton de que passaríamos por alguns pontos de maior exposição e com a proximidade da aurora, optamos por fazer uma parada para café, enquanto o dia clareava. Saquei o fogareiro e a caneca maior da mochila, e com o pote de cappuccino que o Douglas trouxera preparei 1500 ml de bebida quente, que tomamos em pequenos goles, sentados em andares nos degraus da trilha. Com o clarear do dia, retornei os equipamentos de cozinha para a mochila, deixei um pedaço de fita laranja de prontidão para indicar o ponto de desvio da crista e retomamos a subida. O receio de que as toureiras fragilizadas pela passagem do Kleiton e minha não suportassem o peso do Douglas com a cargueira me fez pedir que ele ficasse em segundo. Isso acabaria por fazer com que a queda do meu chapéu preso pela capa da cargueira não fosse notada, antes de nos afastarmos demais deles. Quando notamos, noutro lance mais técnico, ainda aguardamos o Douglas retornar 20 minutos até uma passagem bem vertical que exigira o uso da fita, antes de concluir que para recuperar teríamos que voltar, no mínimo em dupla até ali, o que acresceria pelo menos 1 hora entre ir e voltar. À contragosto, mas primando pela segurança pedi que déssemos o material por perdido, para talvez o recuperar numa incursão futura.

Esse ponto técnico fora superado com um simples rapel de uns 6 metros. Poderia ser superado de outra forma? Acredito que sim, mas já que dispúnhamos de tanto equipamento, foi uma forma de dar uso, rsrs. A partir desse ponto, a subida se fez por uma calha bastante vertical que nos levaria até o colo do Curiaco. Subindo de forma lenta, e procurando deixar a passagem para quem me seguia o livre possível, fomos galgando os metros finais até o primeiro grande marco do dia, alcançado às 8:55. Deixamos as cargueiras, pegamos o material para o livro de cume e com grande cuidado, pela exposição das passagens ali, subimos os metros faltantes até não ser mais possível fazê-lo, por não haver mais o que subir… 9:25 estávamos no cume!

Fizemos uma pausa no cume, dividindo as atividades com um (eu) fazendo o registro no livro a ser instalado e os outros dois buscando pedras para fazer o totem de proteção para o tubo que guarda o livro de cume. Cabe ressaltar que esse tubo, em particular, tem uma história mais nobre que outros. Foi resgatado na Travessia Serra Fina, pelo Carlos Renato do grupo Summit, perdido ou abandonado por um trilheiro quase que ecologicamente correto. Levara o Shit Tube – ST (ou kit de dejetos – KD) e o usara, mas acabara por abandoná-lo, na serra.

11/09/22, ST resgatado na SF.

ST convertido em tubo de cume para o Curiaco.

Totem lítico para proteção do tubo de cume.

Não tenho detalhes do encontro dele, então não me sinto em condição de apontar se foi descuido (a meu exemplo da capa da mochila/chapéu) ou preguiça mesmo. Seja como for, foi resgatado, teve seu conteúdo adequadamente descartado e recebeu nova vida. Talvez, se os cuidados com sua guarda forem efetivos, permaneça íntegro no cume por décadas.

Sendo plástico, é muito importante que conte com a proteção do totem frente ao potencial desagregador dos raios solares que levam à fragilização e quebra precoce do tubo.

Lição de casa: busca de nomear a orquídea rupreste no Curiaco / Focinho de Cão. Identificação de Plantas Brasileiras.

 

Instalação do tubo de cume, registros aos amigos ausentes na montanha, mas presentes em nosso pensamento.

 

Concluída a instalação do tubo, pouco após as 10:00 retomamos a caminhada, sabendo que agora teríamos que galgar sucessivos falsos cumes até alcançarmos a base do Mariana, na sua face sul. Esse seria o trecho definidor do rolê todo, pois nele a altimetria a ser superada era bastante significativa e frequência dos trilheiros anteriores, não passava de meia dúzia de pessoas, em pouco mais de 12 anos da conquista do Curiaco, o que é insuficiente para consolidar um rastro mais desobstruído. Com essa quantidade e espessamento de montanhistas a transitar, cada um enfrenta a mata quase que virgem a conter o avanço. Como vivenciáramos naquela parte da travessia, o pequeno decréscimo na inclinação era mais que compensado pelo fechar da vegetação. Quando andávamos no rastro anterior, na crista, o fazíamos com a vegetação pelo meio das coxas. Quando desviávamos da crista, a vegetação alcançava o peito. O progresso era lento, sofrido e suado. Mesmo assim, passo a passo, metro a metro, a persistência ia vencendo as dificuldades.

Deixando o Curiaco e começando a longa subida para o pé do Mariana. Chapéu perdido, fazendo falta.

A maior parte do trajeto o Kleiton mantinha a dianteira, identificando de primeira, por onde passar. Em muitos lugares, encontrávamos rastros da passagem em 2021, em outros trechos a trilha sumia e exigia uma vara mato de maior intensidade, encosta acima. Eu passava em seguida, buscado deixar a passagem o mais desimpedida possível. Quando o Kleiton cansava e precisava descansar um pouco, eu tomava à frente e ia seguindo abrindo passagem pela crista. Nos trechos em que crista era mais plana e menos alcantilada, as referências de passagens anteriores eram as arvoretas que se via adiante, com a trilha seguindo no buscar sem fim da próxima arvoreta, para depois repetir o processo.

Chegamos no platô da base do Mariana às 14:00 e passamos a buscar o ponto de acesso ao colo entre ele e o Maria. Ali, um fenômeno natural e de longo ciclo (acredito ter lido que ocorre a cada 30-35 anos), a seca da taquara (Bambusa taquara), ocorrida há algum tempo, tornava a região peculiar. Por toda a parte, a impressão era de haver “rastros de passagem”, devido ao arranjo das hastes secas que forravam o chão. Se antes houvera uma passagem clara entre as moitas de bambu, agora havia amplitude e trânsito livre em quase todas as direções, bastando contornar as plantas pioneiras que cresceram onde antes havia um denso taquaral. A progressão nesse trecho é falsamente facilitada, pois o avanço mais rápido em “qualquer direção” permite que se ande mais rápido na direção incorreta e marcas de passagem anteriores são quase que imperceptíveis, pois todo o ambiente fica modificado. Grandes rochas, depressões maiores no terreno, e o perfil da encosta rochosa, quando visível passaram a ser nossos guias. A estratégia foi buscar a base do maciço no sentido nordeste e em aclive, por onde a vegetação primária permitisse avançar com menor desgaste.

Douglas e Kleiton com a crista nordeste ao fundo.

Nesse trecho as plantas pioneiras formam áreas de progressão muito dificultosa, com uma miríade de espécies dotadas de espinhos, hastes flexíveis e de crescimento rápido. Minhas luvas não protegiam minhas mãos de forma eficiente e, cada pouco, novo espinho achava caminho até a minha carne. Foi desagradável, mas em algumas passagens onde não vislumbrava alternativa, o jeito era a resignação e o sofrimento. Nas mãos foram muitos os espinhos adquiridos, mas não foi nelas que recebi os dois mais marcantes: um na ponta do nariz e outro na almofada do pé direito. Esses foram meus companheiros marcantes desse trecho até chegarmos na base de uma falha entre os maciços rochosos do Mariana e Maria.

Vista sul do conjunto Mariana – Maria

Acredito que ambos, assim como o Marins sejam grandes batólitos desnudados e expostos pela erosão diferencial do solo, ao longo de milhões de anos. Na base dessa descontinuidade entre os rochedos, o talude formado pelo acúmulo de detritos proporcionava uma rampa de acesso. E por ali subimos, ganhando os metros finais para as lajes rochosas do Mariana, onde deixamos as cargueiras às 15:17 e tocamos para o cume, alcançado às 15:30. Fizemos um breve registro da travessia, constatando que o livro original havia sido removido e em seu lugar estava um novo livro, trazido horas antes pelo Centro Excursionista Universitário – CEU, sob a égide do MoNa Mantiqueira Paulista. Eles estavam sendo guiados por um Ângelo, que depois eu saberia ser o mesmo Ângelo que havia desbravado a crista que acabáramos de subir, quando descera, em 2010 a partir do Marins até a vila, conquistando o cume do Focinho de Cão no trajeto. O mundo do montanhismo é muito pequeno, e as coincidências são tantas que parece por vezes objeto de combinados prévios.

O novo livro de cume é um pouco maior que a caixa metálica de guarda, então após envolvê-lo em duas camadas de plástico, forçamos o encaixe e depois de recolocar a caixa na pequena toca de guarda, travei a rampa cunhando uma pequena pedra contra o teto da toca.

Quero expressar nosso obrigado pela iniciativa do CEU em trazer novo livro, sabemos o quanto é exaustivo levar além de toda a tralha necessária e de conforto próprio, mais peso e volume, mesmo que “pequeno” por um sem-fim de passos e metros verticais. Se a ordem de chegada no Mariana fosse inversa, quando chegassem encontrariam um deixado por nós, mas sem todo o protocolo do MoNa, por desconhecimento nosso. Num acesso futuro, seria legal acrescermos aos registros do livro atual uma síntese do livro original, e uma exposição de motivos de sua retirada, acredito que para preservar a história do montanhismo ali contida. Senti falta, também das coordenadas geográficas do cume. Gostaria de compartilhar com os eventuais leitores um pequeno trecho da mensagem que deixaram: “Parabéns para todos que chegaram aqui.” Espírito montanhista é isso. Alegrar-se com o vencer alheio. Com a devida vênia, faço minhas, as palavras de vocês.

Após a guarda do livro e de sua caixa, tocamos pra baixo até o colo Mariana-Maria, no caminho tendo uma visão clara da arriscada aposta do Kleiton na incursão anterior para acessar o Marins que acabara por se mostrar inviável com o equipamento de que dispunha na oportunidade. Chegando no colo, vestimos as cargueiras e depois de uma breve busca encontramos os rastros da passagem de acesso para o Maria, à direita, que fomos seguindo costeando a face sul do Maria, até que a trilha permitisse subir mais fortemente em direção ao colo Maria- Marins. Superei um pequeno lance mais vertical, meio que chatinho de passar com as cargueiras, retirando a mochila e lançando-a acima antes de galgar o lance. O Kleiton apoiou meu pé para que não escorregasse, pelo ângulo do apoio na rocha. Uma vez comigo já parte de cima, colocamos a fita como auxílio, com o Kleiton fazendo a passagem de cargueira e o Douglas depois de testar um pouco optando também por fazê-lo sem ela. Gostos e motivos variados influem nesse tipo de decisão e como cada um segue uma política particular, procuro não dar “solução pronta” nesses casos, porque vejo que induz a pessoa, muitas vezes a tentar exatamente o oposto, rsrs.

Curiaco / Focinho de Cão visto do cume do Maria. Fácil sorrir quando a parte mais complexa estava próximo da conclusão.

Alcançando a região do colo Marins-Maria, deixamos as cargueiras e subimos ao cume, sem maiores dificuldades. Apesar de cansados, sem as cargueiras tínhamos a impressão de quase que flutuar encosta acima. Havia um montanhista acampado ali, na borda da face sul do Maria, com a imensidão que havíamos percorrido a seus pés. Nessas coincidências improváveis, tratava-se do Ângelo Neto, apenas o desbravador daquela crista que havíamos subido e conquistador do Curiaco/Focinho de Cão, lá nos longínquos anos de 2010.

O saudamos pela conquista e informamos que havíamos deixado um tubo com livro de cume lá para registros das passagens posteriores e que tínhamos a intenção de terminar a travessia no dia seguinte, após passar pelo Itaguaré. A cordial desavença entre o Ângelo e o Kleiton não recomendava estender a conversa ali, arriscando turvar o ânimo de ambos. Com o dia caminhando para findar, fizemos alguns registros fotográficos e tratamos de descer do Maria, recolher as mochilas e caminhar para a derradeira subida do dia, pela encosta do Marins. Sobe para esquerda, buscando uma canaleta onde os grandes blocos de rochas permitem a passagem por pequenas fendas, como se curtas cavernas fossem. Nesse trajeto passa-se por uma laje onde pôde-se subir em chaminé, ou como fizemos com o auxílio da fita, ganhando alguns preciosos minutos. Após uma sucessão de pequenos trechos técnicos, alcançamos o platô do cume às 18:07 e tratamos de verificar onde seria possível acamparmos, de preferência as duas barracas próximas. Encontramos uma área plana e ampla, que aceitava o colocar de espeques, e enquanto o Douglas e o Kleiton montavam as barracas, me arranjei para preparar o jantar.

MapShare -acompanhamento da pernada.

Cume do Marins, 18:07. Parte mais complicada, superada!

Após dar um primeiro tapa-rombo do estômago, dividido entre o trio, fui com o Douglas resgatar o providencial estoque de água, deixado pela incursão de suprimentos com a Amanda.

Com o estoque deixado, à custa de bastante suor, no cume do Marins, não tínhamos apenas água. Tínhamos conforto. Mais de dois litros por cabeça permitiam luxos inimagináveis para aquele fim de dia: sucos de sabores variados, macarrões, risotos… tudo foi tragado sem maior cerimônia pelos nossos estômagos famintos. Pouco após as 20 horas, já estávamos dormindo, com o partir do dia seguinte planejado para 07:00.

Dia 2

Acordamos cedo, como de costume, e começamos os preparativos para a pernada do dia. O Douglas resolveu usar a furadeira de despertador, talvez um dos mais inusitado que já soou no cume do Marins. Antes que nossos colegas de montanha se unissem para espancá-lo, lembramos que descarregar a bateria não a deixaria mais leve, e deixando o Kleiton para o último cochilo antes de desmontar o acampamento, sai para apreciar o nascer do sol, fazer o devido registro no livro de cume e esticar as pernas. Em seguida, desmanchamos acampamento, retornando as tralhas para as cargueiras. A quantidade de vasilhames plásticos vazios era enorme, mesmo compactados. Deixei de fácil acesso capacidade para transportar 2,5 litros de água, sendo 1 litro na alça peitoral da cargueira. Com alguma displicência quanto à disciplina de partida normalmente seguida, iniciamos 7:30 a descida cuidadosa do Marins e seguimos pelas lajes de pedra em direção ao cruzo com o rio Marins em sua parte alta, dobramos à direita e passamos a caminhar em direção à base do Marinzinho, onde faríamos o café da manhã e coletaríamos a água para o dia.

Kleiton (à frente) e Douglas na descida da rampa do Marins.

O Douglas levara um filtro Sawyer, por prevenção. Eu coloquei pastilha de clorin para cada litro, como cuidado adicional, cuidados exagerados, mas não queríamos facilitar no terreno já conhecido (por eles pois para mim era a primeira vez ali, também). O café da manhã teve cappuccino, mingau, ovos mexidos com bacon e pães. Para acompanhar chocolate e bolachas.

Reforçamos o café considerando a longa pernada que nos esperava. Após empanzinados, retornamos as tralhas para as cargueiras e tocamos para o Marinzinho, cumeado às 10:40 onde fizemos um breve registro e seguimos descendo pela face norte, com o auxílio de uma corda ali deixada. Ao longe já era visível a Pedra Redonda, nosso próximo ponto de parada e local de acampamento tradicional para quem percorre a trilha no sentido Itaguaré – Marins. Andando forte, mas sem apressar o passo, alcançamos a pedra redonda (que não é redonda) às 12:40. Após uma breve pausa para registros no livro, fotos e contemplação, prosseguimos na caminhada agora em direção ao cruzo do Itaguaré, onde deixaríamos as cargueiras para atacar o cume.

Maria, Maris e Marinzinho, vistos da Pedra Redonda.

A progressão não chegava a ser rápida, mas sendo constante com curtas paradas para retomar do fôlego nas subidas, passamos por “cavernas” à exemplo da véspera, e no sobe e desce de crista de montanha, alcançamos o ponto do cruzo às 16:00.

Deixamos as cargueiras e tocamos para cima, em ritmo forte, mas cuidadoso e 16:30 estávamos no cume da última montanha dessa travessia. Na passagem conhecida como “pulo do gato” havia uma corda presa em duas ancoragens “p”. Um pouco desconfortáveis com um eventual montanhista necessitando de socorro, durante a passagem para subir, apenas assobiamos sem resposta. Decidimos que além de anotar no livro o achado incomum, iríamos chamar na passagem de volta. Conjecturas sobre o porquê da corda lançada lá nos acompanhariam por mais algum tempo. Enquanto eu fazia os registros no livro, o Douglas fazia as fotografias e, num repente, percebeu que nosso colega estava emocionado, com lágrimas nos olhos. Eu entendo, havia sido muita desejada aquela subida até o Marins e o que ele estava concluído era ainda maior, uma travessia inédita num dos pontos mais tradicionais do montanhismo paulista. Nenhum trecho, per si, era inédito. A Marins-Curiaco-Bairro fora conquistada em descenso, pela maior factibilidade, e trilhada apenas duas vezes de forma autônoma e uma terceira, quase que totalmente concluída de forma autônoma, com o considerável incremento de dificuldade de se fazer subindo. Isso em 13 anos de crescente interesse da sociedade por montanhismo e esportes ao ar livre. Quantos montanhistas passaram pelas partes altas nesse meio tempo? Posso assegurar que foram milhares. Nesse primeiro trecho da travessia, menos de 10 homens e nenhuma mulher (ainda) trilhou. Isso na região que pode ser entendida como berço do montanhismo paulista. É feito para poucos, de fato.

O segundo trecho, do Marins até o Itaguaré é bem mundano, ainda que menos frequentado que o Pico dos Marins em si. É uma travessia consolidada, que apenas apresenta margem para perdidos, com o tempo aberto, pelos inúmeros caminhos de rato, atalhos e desvios entre as áreas de acampamento que existem mais próximo ao Itaguaré. Se nenhum dos trechos em si, era inédito, o que torna essa travessia especial? Bom, primeiro o fato de unir ambos os ramos dela, algo nunca feito, e até onde temos conhecimento, sequer tentado antes, seja no sentido de ascensão Curiaco – Marins – Itaguaré ou mesmo Itaguaré – Marins – Curiaco, em descida. Depois, o tempo exíguo em que foi feita, tanto a subida quanto a travessia toda, explicitando que um grupo forte e coeso pode fazer uma circular em dois dias, um final de semana normal. No formato de travessia, acaba por demandar a contratação de resgate para voltar ao ponto de partida. Para quem gosta de desafios, ou está buscando treinar para montanhas mais técnicas, etc. é um prato cheio.

Todos os registros feitos, tratamos de retornar até as mochilas, tendo chamado diversas vezes na região da corda, em busca de identificar alguém que pudesse necessitar de auxílio. Como só o silêncio nos respondeu, decidimos retomar a caminhada, que ainda pediria algumas horas para findar.

Conseguimos contato com o amigo Juninho, lá de Marmelópolis, amigo antigo do Kleiton que, felizmente, topou fazer nosso resgate, mesmo que combinado de última hora. Marcamos para 1999 horas e partimos às 16:45 para o último trecho dessa pernada com as cargueiras nos ombros. Subimos as últimas elevações e, caminhando para a rampa do Mata-Cachorro, encontramos a segunda persona grata desse rolê, reforçando que até as pedras se encontram: nosso amigo Júlio Carmo, parceiro de trilhas insanas e que ficou feliz em nos encontrar ali. Ao vê-lo, surgiu uma possível resposta para a corda misteriosa, que ele boa hora confirmou ter deixado ali pelo adiantado da hora que concluíra um rapel. Acabamos estendendo a conversa, pela enormidade de assuntos que são de interesse comuns, mas ciosos do combinado com o amigo do resgate, nos despedimos e tocamos montanha abaixo, já com as lanternas preparadas para emprego, pois assim que entrássemos na mata, elas se fariam necessárias.

No afã de não deixar o amigo do transfer esperando, descemos acelerados e um trecho em que a trilha também recebe a corrida de água, observei um rastro para a direita, pelo qual seguimos por algum tempo para logo começar a perceber, pelo solo fofo em que pisávamos, que havíamos saído da trilha correta. A luz e a voz do pessoal que passava subindo para o Itaguaré nos serviram de faróis e rapidamente, varamos mato até reencontrar a trilha e retomar a descida. Apesar da ansiedade, o terreno não permitia desenvolver velocidade, e mesmo puxando o passo, só alcançamos o ponto de resgate às 19:40. Arredondando para 20h, havíamos feito a travessia em 46 horas corridas. Levaríamos ainda duas horas até nos vermos novamente com D. Ofélia, aos pés da montanha Curiaco, de onde partimos na sexta-feira. Em 48 horas de muito suor, cautela e companheirismo, havíamos concluído o proposto e, face ao esforço dispendido, decidimos nomeá-la como “A Monstruosa”.

Trio, no pós travessia. Superação e alívio.

Dona Ofélia, nossa anfitriã no Curiaco.

Ficamos conversando um pouco a Dona Ofélia e Rivail, seu filho, A simpática senhorinha, nos serviu café e bolo, ambos deliciosos, nos contando histórias dos tempos idos, desde que chegou há 54 anos, quando nenhuma das estradas que hoje conhecemos por ali havia sido pensada. Pelo adiantado da hora e tendo em mente a viagem de retorno que ainda nos aguardava, logo nos despedimos dela e de seu filho, nos aboletamos nos carros e tratamos de retornar às residências.

Me prometi um retorno para aproveitar a beleza do Poço Curiaco, apreciar as muitas cachoeiras da parte baixa, conhecidas pelo Rivail desde pequeno. Talvez me hospedar no aconchegante chalezinho de que dispõem para aluguel aos finais de semana, para temperar de tranquilidade essa vida de acampamentos, nem sempre dos mais confortáveis. À exemplo dos trechos que passamos, deve ser um lugar encantador, com toda certeza, e muito preservado.

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Sobre o autor

Julio Cesar Fiori é Arquiteto e Urbanista formado pela PUC-PR em 1982 e pratica montanhismo desde 1980. Autor do livro "Caminhos Coloniais da Serra do Mar", é grande conhecedor das histórias e das montanhas do Paraná.

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