Uma pernada singular, diferente do arroz-feijão do par de serras mais frequentado no Paraná pelos colegas de SP: Ibitiraquire e Marumbi. Ainda antes de estudar o assunto, apenas pelo que ouvira falar, reservei minha vaga. O final de semana escolhido, 13 e 14/7 estava distante e apenas mais próximo seria possível avaliar o tempo. Reserva feita, deixei a coisa de lado e fui tocar outras prioridades. Nas vésperas, as previsões se apresentavam pouco alvissareiras, com frio e chuva. Revisei os equipamentos para essas condições e procurei ver o lado bom da coisa: sede não passaríamos, também não precisaríamos disputar espaço para montar as barracas. Teríamos toda a Serra da Jaguatirica para nós. Mantivemos o acompanhamento das previsões para constatar que todas sinalizavam uma piora substancial. Com o quadro definido, discutimos opções (manter, remarcar ou alternar destino). Por segurança, sendo um grupo grande e heterogêneo, com integrantes de experiências diversas, a dupla de organização Amanda e Fernanda descartou a manutenção logo de partida e passou a se avaliar se postergaria o evento ou cancelaria. Ao final, alternou-se a data para o final de semana 31/8 e 1/9.
Com o tempo extra, aproveitei para refinar o planejamento lendo tudo que encontrei a respeito, analisando os relatos, tracklogs, mapas e imagens de satélite. Preparei um mapa para a travessia, cotejando toda a informação encontrada. Com a nova data, houve necessidade de repasse de algumas vagas em razão de compromissos firmados previamente e, encerrando essa dança-de-cadeiras, tivemos o ingresso do meu xará, Rogério (Homem Pássaro) na véspera da partida.
Com a previsão do tempo muito favorável, meu novo arranjo de mochila poupou importantes gramas, preservando o conforto e a segurança. Completamente montada, com capacidade para 2 litros d’água, pesou 4,59 quilos. Desse total, cerca de 800 gramas eram de alimentos diversos, dos quais retornariam 240 gramas.
Partimos do metrô Tatuapé pouco após as 23 horas, a van com dois assentos livres, pois no caminho pegaríamos o Anderson e a Pérola em um posto da marginal Tietê, de acesso mais fácil para eles.
Com a formação completa seguimos tentando conciliar a ansiedade com algumas horas de sono, sob a segura direção do Elber, com uma parada próximo das duas da madrugada para banheiro e lanches. A presença de carretas em velocidade e as irregularidades da pista, com vários trechos de serra torna essa viagem algo que demanda atenção constante. Sob a cuidadosa condução do nosso insone (felizmente) motorista, chegamos à lanchonete do posto alpino, nossa base de partida pouco depois das 5h.
Dia 1
Aproveitei as instalações para a higiene matinal, fiz os últimos preparativos, tomei um café da manhã bem reforçado e, 5h30 parti pela estradinha de acesso e manutenção das antenas de telefonia que fundamenta a toponímia, sem forçar o passo e apreciando o dia que clareava rapidamente, logo dispensando o emprego da lanterna. Meus colegas de travessia permaneceram mais algum tempo concluindo os preparativos e informei que subiria à passo, de forma que me alcançassem próximo da bifurcação para a Pedra da Bigorna.
Subi atento ao primeiro ponto d’água sinalizado, pois seria o indicativo de como encontraria as demais nascentes ao longo da travessia. Cheguei nele às 6h30, numa discreta saidinha à direita da estrada. Abasteci meu inventário ao máximo e, vendo o singelo filete de água que corria, me arrependi por não ter mais volume disponível para coleta. Aproveitei a fartura ali, e mesmo sem sede, me obriguei a sorver um bom ½ litro antes de retomar a caminhada.
Pouco acima, um virginal lírio branco fazia par com o alvor das nuvens ao fundo. Uma vintena de metros acima, às 6h42 fiz o primeiro registro com o sol que despontava vencendo as baixas nuvens no horizonte e lembrei do dito “cerração baixa, sol que racha”. Sol forte, água escassa, montanhas a subir e talvez quiçaça a transpor quase perfaziam o quinteto perfeito para uma caminhada sofrida. Agradeci mentalmente a mochila leve, que tornava o caminhar estrada acima bem tranquilo.
Alcancei o Morro das Antenas às 6h50, constatei abundante e contínuo sinal de celular da operadora que uso (Vivo) e prossegui encosta acima em direção ao distante cume seguinte, em algumas cartas anotado como Capivari Pequeno, mas até onde entendo, apenas um falso cume do Capivari Grande. Quase no cimo, a trilha se divide, com a esquerda prometendo um acesso mais à prumo e a trilha da direita sinalizando a volta a uma pequena ravina que surge. Para aquecer as panturrilhas, optei pelo traçado da esquerda e após galgar umas dezenas de metros, parei para aguardar os colegas. Parada oportuna, inverti as camisetas, deixando a verde claro sobre a negra, revisei a aplicação de protetor solar, mastiguei um chocolate e logo fui alcançado pelo Anderson com sua mochila Alto Estilo. À nossa direita, na subida já podíamos observar o Capivari Mirim a distância, nosso local de pouso. Em duplas ou trios, o pessoal chegava e, sem cerimônia ou comando, buscava um canto de relva ou laje para apreciar a impressionante paisagem que a vista desimpedida para o Represa do Capivari (Governador Parigot de Souza) proporcionava.
A Fernanda me questionou se eu teria algum jeito de “consertar” o encaixe da barrigueira da Maria, que quebrara. Analisando a peça, entendi que poderia recuperar seu uso, pelo menos para o rolê em curso com duas fitas Hellerman e alguns entalhes e assim o fiz, aproveitando para apresentar para a Ariane um emprego para o canivete que comprara há pouco.
Depois de um breve descanso, com o grupo completo retomamos a caminhada até o acesso à Pedra da Bigorna, uma formação rochosa que permite a vista desimpedida para todo o conjunto de serras ao redor. Apresentei para o meu xará e para a Ariane um capim comestível que vicejava fartamente por ali. No acesso, alguns colegas mais prudentes optaram por aguardar ali, junto com as cargueiras, enquanto fazíamos o ataque, poupando os músculos para o desafiador trajeto restante. Preferi fazer o ataque com a mochila, pois estava bem tranquila e, sempre que posso, não me separo da cargueira. Mesmo com o solo da descida bastante úmido, ao cruzarmos o ponto de água, um filete quase imperceptível permanecia escoando.
Ficamos algum tempo entretidos no fotografar, revezando as operações de registro com apoio no acesso aos que queriam posar ali. Mesmo pouco afeito às fotografias, eu mesmo fui até a ponta rochosa duas vezes, embevecido pela beleza da paisagem que a Bigorna, com vista desimpedida para todo o maciço Ibiteruçu descortinava.
Retomamos por sobre nossos passos, agora sentindo melhor a aclividade do ataque, alguns sentindo as pernas “pegarem”, outros (meu caso), tentando entender onde que fora parar o fôlego…
Na passagem pelo discretíssimo filete d’água, sorvi alguns goles, quase que lambendo a pedra. Mesmo em pequeníssima quantidade, o frescor desses goles trouxe tamanho alento que subi a primeira trintena de metros extasiado. Depois a realidade da falta de fôlego voltou a se impor e ao alcançar o grupo estava com o coração a bater nas mãos.
Abandonamos a bifurcação, ganhando altitude pela crista até alcançar o cume do Capivari Grande às 10h40. Na superação do trecho de corda, as mochilas de maior peso foram içadas em separado, em trabalho de equipe visando a segurança de todos. Fizemos uma pausa, registramos a passagem no livro de cume e pegamos a intensa e abruta descida para o vale. À minha frente, Pérola, Otaisa, Mina e Raquel. Aos poucos fui ganhando posições até alcançar a dianteira e poder aproveitar a maior velocidade de deslocamento para contribuir com a manutenção da trilha, tirando os galhos que nasciam para a trilha e facilitando a passagem dos próximos. De alguma forma, passei batido pelo ponto d’água, à esquerda e ao alcançar o talvegue do vale, supus que a água estivesse correndo nas grotas entre as pedras. Não a encontrando ali, observei o mapa e, erroneamente, li que ficava na encosta do Médio, de forma que toquei encosta acima por uns 15 minutos, antes de perceber que não podia ser ali e voltar ao mapa para identificar o erro e retornar sobre meus passos. Já no vale encontrei o Pássaro, com as explicações dele tratei de subir encosta acima até o ponto d’água, uma pequena cascatinha de água cristalina, à esquerda de quem desce o Grande.
Abasteci meu inventário, bebi bastante água e voltei a caminhar, agora no afã de recuperar o tempo perdido ao bobear na descida e passar direto pelo ponto d’agua. Apertei o passo e já chegando na Pedra do Ovo alcancei a dupla Pássaro e Célio. A Pérola, formando trio com a Raquel e o Denis subia à passo constante, com poucas paradas.
Como subira os últimos minutos em ritmo mais tranquilo, optei por não esfriar o corpo e toquei em frente em direção ao cume do Capivari Médio, fazendo uma longa parada na região da Caverna, às 14h19. já quase no cume. Concluí que não seria muito oportuno chegar ao ponto de acampamento muito cedo, pois a exposição ao sol demandaria mais água e eu não dispunha do precioso líquido de forma abundante. Ali, a sombra e solo macio propiciam acolhedor abrigo ao sol que castigava na crista. Excelente lugar para um bivaque, com até umas 8 pessoas meio que espalhadas entre esse ponto e um próximo. O Pássaro também optou por descansar um pouco ali e quando retomei a caminhada ele ainda ficou algum tempo aproveitando o frescor. Pelo horário de chegada ao Mirim, arrisco que tenha cochilado um pouco, inclusive.
No cume, escolhi um bom local para armar meu pernoite, com vista desimpedida para o poente na represa, plano e sem nada que ameaçasse a integridade da barrada. Às 16h07, com a barraca armada, tratei de procurar uma pedra para facilitar o preparo da janta, de forma a evitar que a chama do fogareiro pudesse causar qualquer risco de incêndio nas folhas secas, em razão da moderada brisa que soprava. Preparei uma deliciosa polenta cremosa com molho de tomate, proteína de soja saborizada, queijo ralado. Em casa já havia adicionado alguns pequenos cubos de provolone de forma que ficou com uma textura bem interessante. Para acompanhar alguns goles de limonada. Ao final da refeição me sobrou um litro d’agua para passar a noite, café da manhã e caminhada até o próximo ponto de coleta, na encosta do Mirim. Não estava mal, mas como o encontráramos o ponto próximo da Bigorna quase totalmente seco, sinalizei para os amigos que subiriam para trazer o livro de cume que trouxessem água.
Na hora de transportar a pedra, por descuido sofri pequena queda e ralei dedos e perna com aspereza da pedra. Lembrete de que cuidado e cautela nunca são demasiados. O emprego da luva teria minimizado os ferimentos, mas meu descuido havia sido completo e eu havia utilizado a luva para proteger o sobre teto da barraca da Pérola de ser danificado pela haste quebrada, fixada com silver tape. Um simpático doguinho apareceu por ali para apreciar o por do sol conosco e, após fazer amizade com o povo, passou a ser mimado com os lanches e jantares que o levávamos.
Já sediado, a Ariane me trouxe um pé de bota da Otaisa que também demandava reparo, feito com a agulha do canivete e duas fitas Hellerman. Mostrei a ela como efetuar a coisa, explicando o porquê de fazer as fixações na região empregada. Por acaso, pouco depois soube que o outro pé do mesmo par de botas apresentava o mesmo problema e a orientei que, com cuidado procedesse de forma análoga. Para minha alegria e orgulho, ela efetuou um reparo ainda melhor que o meu. Bemmmmm legal, isso.
Dia 2
A noite foi ventosa, e como fui dormir mais cedo do que estou acostumado em casa, acordei algumas vezes durante a noite. A cada vez aproveitando para fazer algo antes de adormecer novamente. Pouco depois da meia noite, conferi a temperatura dentro da barraca, com o relógio apoiado no solo, longe do corpo: 17°C. Às 5:00 verifiquei as mensagens no celular e vi que o Erick e o Dindo haviam começado a subir para nos encontrar a tempo de apreciar o nascer do sol. Eles traziam o livro de cume para reposição que o Erick pegara na véspera com a Síntia, do CPM.
Aqui, quero deixar algumas linhas sobre a importância dos livros de cume. São eles que fornecem as informações mais precisas em caso de operações de busca, resgate ou socorro. Permitem aos bombeiros calibrar as estimativas de deslocamento do grupo, e a partir disso, tornar mais preciso a definição das áreas de busca. Representa, para o desaparecido nos quase infinitos oceanos verdes, o farol a guiar as equipes em sua incerta direção. Para os montanhistas de veia romântica, oportunidade de deixar registrada suas dores e alegrias. Alguns dialogam com figuras queridas que já nos deixaram. Faço parte desse time e relembro sempre meu irmão que lá nos distantes anos 80 me apresentou um bocado de princípios e lugares maravilhosos. Catatau à época, caminhei mais nas palavras dele que nas minhas pernas. Num tempo que mapas eram raros, trilhava-se com relatos, esboços, bússolas e cabeça, muita cabeça. Escutei à exaustão: você pode não saber chegar aonde pretende, mas saber voltar é imprescindível. Marco Aurélio ainda não havia desaparecido e o mundo parecia mais amigável. Divaguei, deixe-me concluir: o Clube Paranaense de Montanhismo tem um projeto de gestão desses cadernos de registros. A instalação, a reposição, a guarda e a disponibilização para o público destas informações sobre a égide do CPM. Por vezes, faltam braços e pernas para dar conta da hercúlea tarefa. É nesse ponto que, dentro do possível, contribuo. Antes da trilha, verifico se há falta de algum caderno que seja de conhecimento dos montanhistas, e com a anuência e confiança do CPM, retiro um caderno já previamente preparado, porém “em branco” e procedo a reposição. Que meu leitor não se engane, uso aqui a primeira pessoa, apenas de forma figurada. No caso, as pernas desse trabalho voluntário eram do MDA nas pessoas do Erick, Dindo e Guilherme, amigos de montanha, moradores do Paraná.
Trouxeram também alguns litros de precioso elixir da vida. Todos dispúnhamos de água suficiente para chegarmos ao próximo ponto, mas a ideia era fazer um pequeno agrado ao pessoal. O Guilherme trouxera, numa cargueira de mais de 30 kg, 6 pacotes de nhoque, carne moída, queijos, ovos, bacon, e 3 litros para ele, a patroa (Gabriela) e a filhota (Valentina). Essa simpática paranaense, aos 8 anos já subiu montanha que muito marmanjo fraqueja. Nessa subida, para apreciar um final de tarde no alto do Capivari Mirim, soube que subira à frente, guiando os pais… anotem o que escrevo: essa menina dará muito orgulho e, não se pode evitar, algumas preocupações aos pais. Já deixou pegadas nos cumes e levou memórias do Morro da Palha, Capivari Mirin (duas vezes), Camapuã, Samambaia, Anhangava, Pão de Ló… e ainda tem 8 anos. Boa parte já fora consumida no preparo do jantar e na hidratação durante a subida. Eu possuía ainda cerca de 700 ml para o dia seguinte, contingenciando parcialmente jantar e café da manhã. Por precaução, aumentei a capacidade do meu inventário de 2 litros para 2,5 litros. À posteriori, deveria ter sido ainda mais conservador.
Fui o último a partir do Mirim, procurando evitar perdidos e verificando se o grupo não esquecera ou deixara nada… levávamos conosco não só o nosso lixo como o pouco (pouco mesmo, essa trilha estava quase que impecável) material encontrado. Havia pilhado o pessoal desde a véspera quanto à necessidade de cuidado adicional com a navegação no segundo dia, pois esse trecho estava com “alertas” em alguns tracklogs, bem como reportes de que a trilha a partir do Capivari Mirim estaria muito “fechada”. Vendo a dificuldade de interpretação dos rastros do pessoal próximo, tomei a frente desse subgrupo de forma a não permitir um distanciamento muito grande entre nós e a tropa na dianteira.
Passamos pelo primeiro ponto d’água sinalizado no tracklog e por mais que a região estivesse úmida, os grandes blocos rochosos não abrigavam nenhuma poça. Seguimos atentos pois a eventualidade de não dispor de água poderia prejudicar fortemente nosso avanço e, talvez até nos obrigar a retornar, por segurança.
Encontramos Daniel e a Katy coletando água no segundo ponto, a partir de uma pequena depressão nas rochas, onde a água que permeava a areia da encosta se acumulava lentamente. Desci metro e meio pelo leito do riacho seco e encontrei outro ponto de acumulação, de onde consegui recolher pouco mais de 3 litros. Enchi ao máximo o meu inventário, e coletei cerca de 600-700 ml para a Pérola que dividiu com o Anderson, o Dênis e a Raquel.
O lento minar acusava que a coleta para o grupo seria morosa, de forma que quase todos os demais entenderam que dariam conta de completar a jornada com a água de que já dispunham. Entrei por sob as grandes rochas à direita, mas encontrei apenas outros dois pequenos pontos de acúmulo, para os quais improvisei um canudinho com uma folha enrolada. Num deles, mesmo esse subterfúgio foi pouco eficaz, minha cabeça simplesmente não entrava o bastante na loca para alcançar a água e depois de usar a manga da blusa para pegar água, voltei à mochila e pequei uma toalha compactada para fazer essa função e finalmente pude sorver o líquido que me provocava, inalcançável antes, agora sem miséria alguma. Satisfeito com a nova estratégia de coleta, permaneci mais uma dezena de minutos me hidratando ao máximo, antes de voltar a caminhar. Parti com 2,5 litros na cargueira e pelo menos 1 litro adicional no estômago.
Ao partir, atrás de mim ficaram apenas o Daniel e a Katy que seguiam mais lentamente, apreciando a tranquilidade da mata. Sabedor da longa experiência em trilhas da serra do mar do Daniel, toquei em frente, em passo apertado e logo comecei a reencontrar meus colegas de travessia, que gentilmente me franquearam passagem. Alguns, com menor cancha nas trilhas menos abertas sofriam a se arrastar de joelhos, com as cargueiras por vezes enganchando na vegetação, para frustração e como gostam de brincar “máxima humilhação”.
Em pouco tempo venci a parte arbustiva da encosta e me vi a galgar os degraus de rochas que o passar de montanhistas por anos entalhara por entre o capim que sobrevive ali, à espera da próxima chuva.
Nos metros finais de subida ultrapassei o Dagoberto e, já no cume, me somei ao Pássaro que chegara pouco antes ao livro de cume do Capivari IV. O Pássaro confirmou que havia livro e que estava íntegro, apenas um pouco umedecido. Dessa forma passei a depender de que houvesse caixa sem livro no Capivari V para não precisar levar de volta a SP o caderno que portava. Retirei a cargueira e a posicionei de forma que não atrapalhasse o acesso ao livro, peguei minha pazinha e papel e tratei de varar mato até o mirrado bosque na outra encosta para cavar meu buraco matinal. A terra fofa não apresentou dificuldades e logo retornei ao grupo, mais leve e tranquilo. Como a água coletada não estava com o melhor dos aspectos, aproveitei para montar um filtro improvisado com uma toalha compactada e um furo na tampa de uma das garrafas, apresentando o improviso a quem tivesse interesse. Após filtrar, cedi meio litro d’agua para a Maria e outro tanto para a Otaisa.
Descobri que estávamos com o livro inaugural daquela montanha, depositado quando da instalação da caixa de cume no ano anterior, pelo CPM. Até nossa passagem, os registros somavam cerca de 30 assinaturas e dessas, menos de 10 a fazerem a travessia completa. A esmagadora maioria faz um ataque a partir do Mirim e retorna. Essa travessia escreve o nome da Equipe Arcanjos no livro do Montanhismo Paranaense com caixa alta.
Atravessar esses sertões em dupla ou trio homogêneo e tarimbado não apresenta grande desafio. Faze-lo à vera, em grupo heterogêneo de 19 montanhistas sem nenhuma ocorrência de média gravidade que seja, é algo que poucos grupos podem pretender e ainda menos, entregar. Quase todos eram autônomos nos aspectos basilares do montanhismo, e no quando contrário ou menos confiantes de suas capacidades, tutelados por alguém que assegure, no mínimo, a segurança imprescindível a essas caminhadas mais exigentes. do O livro apresentava sinal de umidade, de forma que deixamos uma toalha compactada para absorver eventual umidade dentro do saco plástico de guarda. Foi a primeira vez que observei esse tipo de marcas em livros guardados nas caixas metálicas padrão do CPM, talvez por ter sido manuseado em dia de tempo chuvoso. Seguindo o protocolo do MDA, por precaução com os registros do livro histórico, fotografei todas as suas páginas e enviei para o CPM.
A partir do IV, a Pérola assumiu a frente, navegando até o cume do Capivari V, pela crista e pela encosta direita, conforme a necessidade ou conveniência. Observando alguma dificuldade de visualização das marcações em certos pontos em que as fitas se desfaziam pelo intemperismo ou que me pareceu merecerem reforços acresci alguns laços em cetim laranja brilhante.
No cume do Capivari V fez-se uma parada para contemplação e lanche. Cedi alguns goles d’água para os colegas no cume e, como o sol não dava trégua, informei que seguiria sem pressa. Nas condições em que estávamos mesmo permanecendo parados a necessidade d’água era crescente, portanto, tão célere perdêssemos altitude e encontrássemos as condições esperadas do vara-mato mais intenso, mais pouparíamos as reservas para o momento de maior desgaste. Segui sem pressa, sendo alcançado algum tempo depois pelo Celso num lance em que havia rastro pela direita, mas que mergulhavam quase a prumo. A perspectiva de não conseguir retomar a crista e a ausência de rastros ou marcações a frente, me fez considerar que era entrar na mata de forma muito precoce, com grande altimetria a ser perdida. Ao voltar da incursão de análise, o encontrei e após galgar a rocha, observei rastros mais à frente e passamos a caminhar próximos, entre os grandes tufos de capim que apenas guardavam marcas de passagem ocasionalmente. De qualquer modo, procurei deixar bem evidente o caminho que trilhávamos, tornando o avanço menos complexo para os que vinham na sequência.
Chegamos na casa às e após coletar um litro de água que teimava em resistir fresca ao sol num pequeno açude, subi em busca de uma fonte de água mais confiável, por precaução. O Dagoberto foi mais ágil e encontrou uma fonte de água corrente, captada em alguma nascente no vale acima. Após nos hidratarmos, ofertei chips de batata, inhame e queijo para reporem os sais perdidos, principalmente para quem, por extrema sede tomara quase que 3 litros. O Dagoberto deitou-se ao chão para resfriar o corpo com o ansiado líquido. Foi legal de ver a naturalidade com que resfriou o corpo, mas contribuiu para aumentar meu receio com os colegas que supúnhamos nos seguir. Coletei toda a água que podíamos e retornamos sobre nossos passos, até a entrada da mata, na expectativa de vê-los surgir cambaleantes. Como o tempo passava e isso não ocorria, entrei alguns metros pela mata com o Caio, e gritamos na expectativa de conseguir incentivá-los nos últimos metros. A voz distante, à nossa direita me fez crer que estavam seguindo o tracklog de referência, eles também a varar mato… tanto suor dispensamos para facilitar a passagem deles, mas fora em vão.
Não era momento de criticar decisões mais certas ou menos erradas, até porque cada grupo tem seus motivos para o caminho que trilha. Também não era momento de analisar prós e contras de cada opção. O momento exigia ação, de forma que peguei minhas tralhas e toquei estrada abaixo, em busca do ponto em que a trilha em que seguiam se uniria à estradinha de terra de acesso à propriedade. Pedi ao Caio que me chamasse caso surgissem por ali, mas pelas vozes que ouvimos era improvável. Não me passou pela cabeça verificar as mensagens, mas a Fernanda já informara que estavam descendo bem e que o resgate pela van, previsto para as 16 horas havia sido antecipado para as 13h.
Às 13h16, ao reunir com o grupo da Fernanda, Maria, Cláudia, Otaisa e Cauê, soube que estavam fazendo o fecha e que os demais estavam descendo para a rodovia, em direção ao ponto do resgate. Bastante aliviado, pois temia que alguém apresentasse uma intermação no varar mato na sede, distribui os 2,5 litros que coletara na casa acima e tentei que comessem algo salgado, para prevenir uma hiponatremia frente à perda de sais pelo suor… saberia depois, por uns e outros que sequer suavam mais… sinal preocupante, mas sem dispor de água, havia pouco a fazer e os menos abalados andaram à frente, abrindo a passagem aos mais fragilizados, num belo trabalho de equipe.
Deixei minhas garrafas d’agua com eles e informei à Fernanda que retornaria pela estradinha até casa para avisar aos que haviam ficado lá. Mal comecei a subir, e vi o Cauê descendo, e ele informou que o Celso e o Dagoberto também desciam. Despreocupado, tratei de tocar estrada abaixo, fazendo apenas uma parada para coletar deliciosas bergamotas em um pé, à beira da estrada. Chupei umas, guardei outras nos bolsos e apertei o passo para acompanhar a Fernanda que, à Mascaro, descia quase a correr a estradinha.
O resto, como se diz, é história. Trocamos de roupas, após banhos “de gatos” com lenços umedecidos ou garrafas d’agua e, às 14h, tomamos nossos assentos na van em busca do espetacular almoço no Dionísio, onde ainda antes de ir ao banheiro, encomendei um enorme prato feito de chuleta e duas latas de Coca-Cola zero.
Em São Paulo já às 20h11, nos despedimos e dirigi para Santos, chegando às 23h37 e encerrando mais uma grande pernada com os Arcanjos.
Intimoratos Montanhistas dessa expedição:
Anderson de Oliveira; Ariane Cardoso Galindo; Caio Kenji Kuwana; Camila Godoi; Cauê Motincelli; Celso Domingos; Claudia Neri; Dagoberto Fagundes; Daniel Vaz Villalobos; Denis Gois; Fernanda Souxa de Oliviera; Katiussia Cesar Santos (KATY); Maria Zenilda Silva; Mina Nakagawa; Otaisa B.M. da Fonseca; Raquel Akihoshi; Rogério Alexandre Francisco da Silva; Rogério Campos Amaral (PÁSSARO); Thais (PÉROLA).
3 Comentários
Sensacional essa travessia, com paisagens maravilhosas!
Parabéns Rogério pelo relato 👏🏽👏🏽👏🏽
Valeu Arcanjos 💪🏽
Mais um desafio superado com sucesso!
Relato incrível como sempre!
Valeu Rogério!
Essa equipe é o dream time. Parabéns pela diferenciacao time!