Travessia Paranaguá – Cananéia

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Pouco mais de um ano depois, vou, finalmente, tentar passar em palavras uma das viagens que pouco posso explicar, se não por um encontro do acaso ou por um acaso do destino – pois quando se fala de lá, até destino ou coincidências podem entrar, tranqüila e vagarosamente no texto.


Até então, ainda não conhecia a “filha da amiga da mãe” que era comparada comigo. Fiquei sabendo que a Débora subia os morros, que foi pro Pico Paraná e que sua mãe também ficava com o “coração na mão” como a minha…

Em dezembro de 2005 liguei pra casa da Débora – “Ah, você é a Aliny, aquela que..” – com um convite pra subir o Pico Paraná com a gente. Ela não podia naquele dia, mas, como contra-proposta, me convidou pra ir pra Superagui em janeiro e fazer a travessia até Cananéia!

Na hora eu nem sabia onde ficava Cananéia na verdade, mas claro que eu queria conhecer! Fiquei de ligar pra ela da praia e combinar tudo. Levei o que precisava pra lá, caso desse certo ir com eles pra tal da Superagui.

Quinta-feira, 5 de janeiro de 2006.

Complicações à parte, já em Paranaguá, não sabíamos se o barco de Superagui, o Megatron, viria e, com algumas informações do tipo:

1. São mais ou menos 12km de praia da vila das Peças até o canal de Superagui.

2. Comprem uns foguetes porque quando chegarem nessa ponta do canal, não tem ninguém pra atravessar vocês.

O que fazer com os foguetes?

3. Sinalizem pros pescadores do outro lado (Superagui) que eles não deixarão vocês dormirem naquele areião, é perigoso, venta muito… Eles buscam vocês!

… lá fomos nós. Decidimos pegar o barco pra Ilha das Peças!

Quando pisei no trapiche da Ilha das Peças podia até não parecer, mas eu tava explodindo de alegre por dentro! Começamos a caminhada logo depois e andamos a tarde toda. Nenhum dos quatro – Aliny, Ciroca, Débora e Fabio – tinham pisado naquelas areias ou visto aquelas águas vermelhas (que será que é isso?!) antes.

Ver o forte e o farol da Ilha do Mel, achar aquele Farol inclinado de repente no meio do nada (e Vê-lo todas as outras vezes que passei por lá de barco) foi demais!

Chegamos então, já de noite e curiosos pra saber se a areia terminava mesmo ali, na ponta da Ilha das Peças. Ah!!!! Não achamos nenhum foguete pra comprar em Paranaguá! Pegamos as lanternas e, claro que em vão, começamos a gritar também.

Já estávamos quase desolados quando de repente surge vindo por trás de nós uma luz no mar – Um barco!! Um barco!!!! – e voltamos nossas lanternas na direção da nossa talvez carona. E o barco continuou passando e passando… Reto, indo pra Superagui! Mas claro que esse passeio começou assim, surreal, porque depois daquele areião sem fim, das lanternas nos braços fracos e do desconhecido no início da noite, aquele barco viu as luzes no meio do nada e fez uma curva pra nos pegar! Entramos no mar com tudo e com água até a cintura (a minha cintura, pelo menos) e, peraí… Caraca, é o Megatron (que a gente teria pegado lá em Paranaguá)!!!! O dono do barco é o César e ele, além de fazer um precinho camarada pelo resgate, nos deixou acampar por ali, perto da casa dele na v-i-l-a d-e s-u-p-e-r-a-g-u-i …

Os três companheiros que conheci só na rodoviária de Paranaguá algumas horas antes de entrar na barca pra Peças (loucura não, seria o tal acaso do destino) são fantásticos e, naquele mesmo dia, depois de algumas surrealices, talvez uns textos lindos, lidos iluminados pela lanterna e muito bem escritos sobre mundo, guerra, amizade e amor viessem muito bem a calhar dentro de uma barraca no meio da vila com quatro patetas rindo e incomodando os pacatos moradores. O primeiro dia foi show e o passeio tava só começando!

“Desculpa a bagunça de ontem a noite, viu?!”

Sexta-feira, 6 de janeiro de 2006.

Depois de um panetone, pegadas que seriam só o começo de uma soma de quase 80km de mochila e praia deserta que foram inesquecíveis.

Ainda na curva da ilha, antes de começarmos os trinta e poucos km que tínhamos até a Barra do Ararapira, encontramos um casal com bikes que nos aconselhou parar na casa da Dona Rosa e, km à frente, do Seu Basílio. Chegamos na Dona Rosa pra almoçar, usamos a cozinha, o fogão, provamos o pão que ela acabara de fazer, sujamos pratos e talheres. Lavamos louça na bomba d’água no meio do quintal, junto com as galinhas. Brincamos no rio vermelho a tarde toda e achamos as butucas gigantes também.

Achamos “razoável” tomar um banho de rio e descansar até que o sol ficasse mais suave. Saímos, então, depois das 17h rumo ao Seu Basílio. A Ilha da Figueira, linda pedra vista durante toda a viagem, ficava sempre quase do mesmo tamanho e à frente… As árvores grandes que víamos lá longe continuavam sempre longe, não importava o quanto caminhávamos.

Anoiteceu, o estômago roncou…

Certo momento, de repente, pareceu vir contra nós um vento rasteiro trazendo uma areia muito clara e “Credo, o que é isso que ta vindo?!?!? Para, para!!!”. Era uma tempestade de areia?? “Será que tem isso aqui”, a gente deve ter pensado em coro… As sombras das nuvens iluminadas pela Lua nos fizeram parar… E assim eu via como o desconhecido e o escuro nos “assusta” e, ao mesmo tempo, nos encanta e enfim… Era só a sombra da nuvem na areia…!

Enfim, tarde da noite, cansados e sem achar a casa do tal Basilio – Bacilo, Brasílio, Vacilo, Débora, como era mesmo? – resolvemos parar um pouco. E lá estamos, num montinho, com as mochilas abertas, comendo, rindo e falando quando em meio às risadas surge um uivado… Susto. Um silêncio toma conta e mais um uivado. Surge uma pessoa encima do barranco, do outro lado do rio, e então vemos o cachorro – Pingo, o ladrão de pães de forma. Fomos falar com o cara, dissemos que estávamos procurando a casa do Seu Basílio e… – que surreal? – era ele… Por que paramos alí? Bom, só pra descansar cinco minutos, limparmos os pés e colocarmos os tênis de volta depois de atravessar o rio.

Acampamos ali e…

Sábado, 7 de janeiro de 2006.

… tivemos um dia cheio de coisas totalmente fora da nossa então realidade. Um velho homem que vive como um bicho encruado num muito mais que humilde ranchinho. E que nasceu “ali, ó, embaixo daquela árvore”.

Almoçamos com o Seu Basílio, na verdade Brasílio – mas isso não importa. Fizemos uma bela miojada no chora-chora (ou fogão a lenha) e ouvimos, bestas, as tantas charadas e histórias que aquele homem tem pra contar. Ele nasceu ali, dançou, cantou e tocou o Fandango, plantou, cultivou e cuidou do rancho… E vive ali, hoje sozinho e sem poder ir nem à Vila de Superagui, ao sul, nem à Barra do Ararapira, ao norte. Fica ali, come conforme o que ganha de mochileiros e pegadeiros que passam por lá e o conhecem.

Brincamos no mar, no rio, no mar e no rio de novo… Finalmente, no final do dia, hora de ir embora. Acho que depois de uma hora, andando com o vento na cara, as lágrimas de uma certa emoção ainda não haviam secado… Que sensação tive quando saí de lá? Não faço nem idéia de como explicar.

Seu Basílio nos disse sobre um rio 2km antes da Barra que com maré cheia não se passa. Alertou-nos também sobre uma parte que também com maré cheia deve ser passada no meio do mato e não beirando o mar. Passamos esse mato, mas paramos no rio.

Já estava noite, com Lua e estrelas brilhando, quando chegamos no rio. Não dava pra ver até onde ele ia. Com as lanternas voltadas à água, tentamos atravessar o rio por cima, por onde quebrava as ondas, por ali… “Também não. Não? Não…” Havia uma luz lá do outro lado… e que ficou lá até amanhecer. Não tínhamos noção se o rio afundava muito mais que aquilo, mas a água quase batendo nas mochilas (pelo menos na minha e na da Débora, devido ao grande comprimento de pernas) foi suficiente pra dormirmos ali mesmo, perto da vila e não na vila, como tínhamos planejado. Inovando, com preguiça de montar e desmontar barracas e com um céu estrelado daqueles, esticamos apenas um plástico que ia por baixo da barraca, esquentamos as barrigas e fomos dormir.

Eles reclamaram dos mosquitos, das butucas, a Débora dormiu no meio porque só tava com um cobertor de emergência e o Ciro e o Fábio “meio que” dividiram um saco de dormir e amanheceram, que amor, abraçadinhos… Pena que não deu tempo pra foto…

Eles reclamaram, mas, sinceramente? Passou um ano e eu ainda não tive nenhuma noite tão bem dormida como aquela. Meu bivaquinho na praia foi de muitas estrelas, foi de riscos brancos no céu, foi de escuridão e mais estrelas ainda depois da Lua se esconder, foi de virar pro lado e realizar a melhor cama do mundo simplesmente na areia de uma praia, na beira de um rio depois de dois dias vendo: à direita, mar, à esquerda, mato, à trás e à frente sempre o nosso caminho na areia. Aquela noite foi até de arriscar um “Noite Feliz”, embora o Natal já tivesse passado, numa gaitinha de blues que descobrimos na grande bagagem do Ciro.

Domingo, 8 de janeiro de 2006.

O dia amanheceu e a primeira coisa que vi, depois dos dois moços abraçadinhos, foi o “Malvado” que na verdade eram flores… E, mais uma vez eu ri daquilo que a noite e o escuro te fazem dizer “Credo, que isso?! Parece o Malvado dos Ursinhos Carinhosos…”

Chegamos na vila, pessoal muito gente fina. A mulher do Rubens, o engraçadão, um dos pescadores, fez um almoço show pra gente e depois de tomarmos banho e fazermos os curativos do pé do Ciro – que a essa altura já era virado em bolhas – atravessamos pra São Paulo numa canoa com tudo: nós quatro, todas as mochilas e os dois remadores.

Ilha do Cardoso, chegamos e de cara conhecemos um casal não exatamente casal que passeava pela ilha também. A Gika e o Jorge nos indicaram ficar em Maruja, vilarejo com festas, fandango, maracatu atômico, sei lá!, e cataia! Conseguimos ligar pra casa, e assim seguimos nosso rumo por mais praias desertas. Naquele dia tomamos dois banhos (que chique) e dormimos de graça no camping também (que pobre).

Mas antes de chegar na parte do camping, devo ressaltar que, finalmente, a Ilha da Figueira estava ali, na nossa frente e não à nossa frente! Devo lembrar que nessa praia fizemos corrida de pipotecas aluscinadas, que faltou uma bola de futebol, que vimos uma baleia morta na areia e que o sol estava muito forte! Devo ressaltar também que pena que pegamos só uma ou duas músicas naquela festa doida…

Como já era tarde, resolvemos fazer nossa cozinha num trapiche de frente pra um canal. Naquela noite todo mundo já estava meio podre. Eu cheguei com muita dor nas costas, o Ciro e a Débora com os pés estourados e até o Fabílson apresentava sinais de fadiga…

Tomamos cataia…

Naquela noite não sei muito bem o que aconteceu, mas eu acabei indo antes pra barraca e acordando só no dia seguinte sozinha!!! “Caramba, será que eles dormiram essa noite?”

Segunda-feira, 9 de janeiro de 2006.

Recebemos várias informações no dia anterior pra continuar nossa caminhada. No entanto, havia um problema, pois elas divergiam “um pouco”… Era um “tranquilo” daqui e um “é muito perigoso” dali…

Tomamos um café bem reforçado, demos uma volta em Maruja, fomos até a praia e resolvemos dormir até o sol baixar. Acabamos saindo de lá no final da tarde e ficamos sabendo que um grupo ia pro mesmo lado que nós. Tentamos identificar na praia esse tal grupo, mas o nativo que ia com eles voltou sozinho com histórias de rolo, de “jogar o cara de uma pedra lá encima”… Ficamos sem saber se íamos ou ficávamos. Minha dor nas costas era grande e eu incentivei a ficar, aquelas informações do caminho já não se igualavam e o cara chegar com essa história de gente querendo matar sei lá quem não era muito convidativo e animador.

Resolvemos caminhar pelo menos até o primeiro costão e, se fosse o caso, voltar pra Marujá e ficar mais uma noite. Não vimos grupo, não vimos mais ninguém, nem vivos nem mortos, não ouvimos mais histórias e achamos a trilha que subia o costão depois de passar por algumas pedras com as ondas quebrando lá embaixo. Bora!

Até que não foi ruim… Não foi ruim? Foi lindo!!!! À frente tínhamos mais ou menos mais 8km e outro costão, uma praia particular praticamente. Já era final de tarde e andamos até a metade dessa prainha. Montamos a barraca, ficamos tontos, brincamos, rimos até chorar, corremos, plantamos bananeira… Aquele pedaço de praia era muito nosso!!!

Ou não?

Quando estávamos esquentando água pra miojada escutei umas vozes, como se duas pessoas conversassem baixinho e as vezes aumentassem o volume da voz. Vinha do meio do mato. Eles não escutaram, pois estávamos rindo e conversando… Um pouco depois, mais vozes… “Credo, tenho certeza que escutei.” E dessa vez eles também.

Tudo bem que estavam todos cansados, com insolação, dor de barriga, bolhas nos pés… Comemos a primeira panelada e resolvemos fazer a segunda… Havia um pouquinho de fogo no fogareiro do exército que tínhamos e, incoscientemente (agora vem a parte chata da história) a Débora jogou, ao mesmo tempo que falamos em coro um “NÃO!!!”, álcool no fogo…

Nossa grande e infinita sorte é que, naquele momento, o vento estava contra mim e não a favor do álcool… Vi fogo subir pela minha canela, me afastei pra trás e os meninos jogaram areia ao mesmo tempo que eu pegava a toalha do meu lado.

Fiquei puta!!! Saí em direção ao mar, depois achei melhor não, voltei, não sabia o que fazer… Nossa, como ela pôde fazer isso… Como temos ações inexplicáveis em meio segundo de bobeira… Mas cada vez que penso nisso, penso que nós tivemos muita sorte porque segundos depois eu realizei em meus pensamentos o que teria acontecido e de que tamanho seria nosso desespero e coragem pra enfrentar a situação se o fogo explodisse no frasco de álcool que a Débora segurava!

No final das contas, uma hipoglós e um anti-séptico resolveram meu problema. Passei nas duas canelas inteiras, onde ardia e tentei dormir, me acalmar. Acho que a Débora estava indignada, o Fabio estava consolando e o Ciro, coitado… com os desarranjos intestinais no auge!

Terça-feira, 10 de janeiro de 2006.

Como nossa viagem era surreal mesmo, tivemos todas essas emoções. E como se não bastassem essas, tivemos a emoção também de não prosseguir a pé depois de um balneário chamado Cambriú, pois dali sim, segundo eles, a trilha era perigosa e em meio a costões, praias e mato, pessoas até já haviam morrido…

Mais “emocionante” ainda foi pagar o pescador pra nos levar até Cananéia. Mas não tínhamos escolha.

Então levantamos acampamento e seguimos a Cambriú.

Encontramos novamente o casal que não era casal que foi até lá conosco. Depois de todos os choros pro pescador, não teve jeito. Pagamos, entramos no barco, sentamos, curtimos as ondas quebrando no barco e o barco quebrando as ondas… Aquele lugar é lindo demais, tudo é lindo, o céu e o mar são mais azuis, os sorrisos são mais bonitos, o verde é mais verde e…

…parece até poesia, mas está lá, pronto pra ser visto e admirado.

Depois de uma hora no barco, aquele motor parecia estar dentro da minha barriga e com todo aquele sol das 11h acabei ficando meio mareada. Enfim chegamos a Cananéia! Nossa, que alegria. Eu não via a hora de chegar em casa pra contar tudo e, principalmente, pra cuidar dos queimados que ficaram bem feios… (só deu pra ver o estrago na manhã seguinte)

Almoçamos por lá e fomos até a rodoviária pra comprar passagem pra Registro. De lá, pegaríamos outro ônibus até Curitiba e, que beleza, enfim, dormiríamos em casa.

Acontece que nossa viagem era surreal e algo mais ainda tinha que acontecer!!!

Claro, não havia mais passagem pra Curitiba. “Só amanhã de manhã.”

Saímos pela cidade discutindo se batíamos palma da na casa de alguém pedindo um cantinho do quintal emprestado ou se dormíamos no banco da rodoviária. Nenhuma das duas opções estavam sendo aceitas e nós estávamos andando nas ruas. Como as Igrejas estão sempre no alto para serem olhadas e respeitadas, vi uma cruz que poderia ser nossa saída. “Duvido que o Padre, sendo um padre, negue um espaço pra dormirmos em segurança, tendo em vista nossa sorridente situação.”

No caminho, entretanto, comentamos nossa idéia com uma cabeleireira e pedimos sua ajuda. Ela nos disse que o Padre era muito chato, mas que umas 4 quadras dali havia um Albergue e poderíamos ir pra lá.

E fomos. Era um Albergue Espírita e, no ambiente, claro, uma razão, talvez… surreal? Ajudamos a arrumar a mesa da sopa, servimos os pratos e sentamos à mesa com mais algumas pessoas muito humildes, viajantes, trabalhadores, sem casa ou sem rumo. Foi, no mínimo, diferente “atrasar” nossa viagem justamente ali. Foi muito estranho, depois de tantas noites dormindo com o barulho do mar, conseguir dormir naquele silêncio do albergue…

Quarta-feira, 11 de janeiro de 2006.

No dia seguinte agradecemos toda a acolhida daquele lugar tão especial e fomos até a rodoviária. Compramos as passagens, felizes da vida, cheirosos e limpinhos e, finalmente, entramos no ônibus que nos levaria pra casa!

E essa foi a nossa travessia Paranaguá – Cananéia, passando por três ilhas e somando quase 80km a pé pelas areias de praias desertas, maravilhosas, simples, inesquecíveis e… surreais?!?!

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