Apesar de há tempos estarmos propensos a fazer esta caminhada, eu nunca estudei bem como ela era, onde começava, onde acabava e nem o que havia no meio. Preguiçoso, peguei o tracklog do Wikiloc, de uma caminhada que Augusto, junto com a Márcia e o Jorge Soto fizeram alguns anos atrás, carreguei no GPS, para depois pegar a estrada para Santa Catarina.
O começo da trilha no município de Alfredo Wagner, acessível desde a BR 282. O caminho já é maravilhoso, serpenteando planaltos em meio a campos e capões de Araucária. Fica ainda mais bonito na estradinha que leva à Pedra Branca, bairro rural onde começaria a trilha.
Como a pernada é uma travessia, fomos em dois carros, mesmo em apenas 4 pessoas. Ao chegarmos à Pedra Branca, deixamos o KA da Andressa na casa de um simpático casal que nos recebeu muito bem, a Dona Anita com o Seu Walmor. A estradinha da Pedra Branca estava bem enlameada e não cheguei a ir até o final dela (onde começaria a trilha) para ver como era a transição do bairro para a trilha que leva ao platô da Serra, visível desde ali. No GPS vi apenas o tracklog do Augusto e distante cerca de 5 km em linha reta um ponto chamado “Desde aqui”.
O Wikiloc é o site de tracklogs mais popular do mundo, mas não é o melhor. Isso porque ele corta o nome dos waypoints e às vezes generaliza tracklogs, reduzindo as trilhas. Eu sei bem disso, pois sou um dos autores de um site que faz uma “competição” com o Wikiloc, oferecendo tracklogs sem estas generalizações, o Rumos. A situação então era essa: Eu não havia estudado a travessia e tinha um tracklog no GPS com uma trilha reduzida e com pontos sem nomes completos…. Pra piorar, ao remover o GPS da energia da bateria do carro, percebi que as pilhas que estavam no aparelho já estavam sem energia. Troquei aquelas pilhas por outras carregadas, juntamos todos os equipamentos na Ecosport e fomos nós quatro rumo ao final da travessia, no bairro rural de Urubici chamado Rio dos Bugres, cerca de 100 km por estrada dali.
A viagem demorou mais de uma hora, pois a estradinha atravessa as montanhas em zig zagues tortuosos com vistas deslumbrantes. Passamos por Urubici e rumamos em direção à Serra do Corvo Branco pelo estrada recém asfaltada, deixando o caminho principal para subir um caminho rural depois de passar por uma igrejinha na beira da estrada. Fomos ganhando altura ao ponto que a civilização ia ficando para trás, pelo menos a civilização moderna, pois perto do topo do platô, com exceção de um aconchegante chalet de um casal de Florianópolis, todas as construções eram de madeira, dando a sensação de que estávamos voltando ao tempo. Deixamos o carro estacionado e começamos a caminhar com as mochilas nas costas.
A estradinha do Rio dos Bugres foi ficando estreita e após passar por uma porteira passa a ser uma trilha larga onde só é possível andar à pé, à cavalo ou num bom 4×4. Apesar de já estarmos acima dos 1500 metros, o ambiente não era bem o de montanha, mas sim o de planalto com seu topo quase plano e fácil de andar. Caminhamos distraidamente entre os campos e capões, apreciando o “gralhar” de uma Gralha Azul no alto de uma Araucária e às vezes o medo das meninas pelas vacas e bois que pastavam no caminho. Andamos cerca de 8 km, até encontrar um bom local para acampar, no alto de uma colina nas orilhas de um rio de lajedo. O sol estava fraco no horizonte sendo que no parar da marcha já sentimos o frio do inverno. Ao procurar minha jaqueta de pluma na mochila, percebi que havia esquecido ela no carro. Durante menos de 2 horas, tentei me aquecer com a segunda pele e o anorak, mas foi impossível e ao chegar da noite decido resgatar a única blusa que havia levado para me manter aquecido.
Saí sozinho no escuro da noite sem lua, usei minha lanterna reserva e raras vezes o GPS para ter certeza que estava no local certo. Percebi que a pilha recém colocada estava com pouca carga e engoli seco, reservando as pilhas da minha lanterna principal para o GPS. Em 4 horas fui e voltei, dando tempo para aquecer um delicioso strogonof de carne preparado pela Camila, que batia o queixo de frio dentro da barraca. Foi uma noite fria de geada, onde a água congelou com facilidade dentro de nossas casas de nylon. Até dormi bem, mas a Camila, o Mario e a Andressa não. Passado o tempo ruim, o sol aqueceu a todos, melhorando o humor da galera.
No retomar da caminhada, achei que estava no caminho certo, quando percebi que a estradinha por onde eu andava rumava em sentido contrário de nosso destino. Talvez o datum do meu GPS e do tracklog do Augusto fossem diferentes, pois sempre que estava em cima da trilha, o tracklog dele ficava alguns metros a esquerda do meu. Neste momento, achei que era isso o que acontecia, mas depois de caminhar 15 minutos, percebi que estava no lado errado de um rio.
A correção do problema não era difícil de fazer. Bastava atravessar o riozinho com profundidade que fazia a água bater na canela. Nem perguntei pro pessoal o que eles achavam e tanto eu quanto a Andressa tiramos as botas e atravessamos o leito pedregoso e enlameado do rio. Doeu de frio!
Neste momento a Camila começou a ficar irritada porque eu havia errado o caminho e havia decidido cruzar o rio gelado sem falar com ninguém. Pra piorar, o caminho dali pra frente era campo e nele percebi aquilo que já sabia: Nem sempre o caminho mais curto entre dois pontos é uma reta.
Nos campos de altitude, há ambientes secos e outros úmidos, onde o solo é encharcado. Nestes ambientes é comum a gente enfiar o pé na lama e dependendo se você sabe amarrar o sapato, pode perder as botas. Para corrigir o rumo, andei reto no campo e fui parar em um charco deste, sendo necessário além de afundar o pé no barro, atravessar uma macega alta para enfim conseguir chegar ao caminho tomado pela equipe do Augusto. Sempre quando estou navegando e interpretando o terreno, eu fico muito sério e nem presto atenção nos outros. Se a Camila já estava brava, neste momento ela ficou pior, pois além de eu ter ignorado as opiniões dela, ainda tinha feito o grupo passar por um perrenguezinho. Ela ficou duvidando de minha capacidade de navegar, interpretar o terreno e utilizar o GPS. Pra piorar, ela não estava gostando de caminhar em cima daquela estradinha de 4×4 e queria caminhar no topo do platô, com a esperança de ter a visão de um canyon. Novamente eu a ignorei, pois sabia que a travessia era longa, o tempo era curto e que dali pra frente não teríamos estradinha e o GPS, sem pilha, poderia nos deixar numa fria se o tempo piorasse.
Assim, depois de uma pequena discussão, continuamos. Particularmente eu estava gostando muito da paisagem, por mais que naquele momento não fosse uma paisagem “selvagem”, devido à estradinha e os ranchos. Por conta da presença de taipas (muros de pedra antigos) e na largura da trilha, percebi que ali poderia ser um antigo caminho tropeiro. Tive a percepção do óbvio, que no passado, levar as tropas de boi e mula pelo topo dos planaltos, apesar de frio, era muito mais fácil do que abrir picadas no meio da mata no litoral. Fui divagando sobre o papel dos tropeiros na expansão das fronteiras do Brasil e na consolidação da cultura, culinária e vestimentas do homem do Sul.
Após longa caminhada pela estradinha, enfim, o tracklog tomava rumo de uma colina entre os campos de altitude. Passando por uma matinha fechada, onde tivemos alguma dificuldade de navegar, saímos no alto de um platô, onde depois de passar por um riozinho, encontramos um local ideal para acampar atrás de uma matinha nebular, próxima da água e com um visual muito bonito. Montamos a barraca e começamos a cozinhar.
Novamente foi uma noite estrelada e sem nuvens. Condições perfeitas para gear e fazer muito frio. Novamente a Camila quase congelou, mesmo dentro do saco de dormir que o Maximo trouxe do Nepal. Contando que o frio foi realmente muito forte e as plumas do saco de dormir dela são bastante dispersas, era impossível não ter frio à noite com aquele equipamento. A constatação disso tornou o clima mais pesado, pois ao contrário de todos que estavam curtindo a experiência, a Camila queria sair dali o mais rápido possível. Sem dormir há 2 noites, ela ficou muito chata e para a gente não brigar no meio do nada, resolvei ficar na minha, navegando à frente e piorando a situação.
Com o sol já aquecendo a todos, nos colocamos à marcha. Agora, não havia trilha e nem sinal de gente. Éramos nós e os campos, numa paisagem espetacular!
Avançamos rumo um morrinho sem nome com mais de 1700 metros de altitude, atravessando ele até chegarmos numa cerca, que atravessamos para dar de cara com um boi mau encarado que não se intimidou com nossa presença. O bichão nos olhou com desconfiança e quando caminhou a nosso encontro, apareceu um vaqueiro que o tocou dali. Bem na hora!
O peão, no entanto, não estava muito contente com nossa presença e nos avisou que era “complicado” pra eles ter gente andando por aquelas bandas. De acordo com o vaqueiro, pessoas que caminham afugentam os bois, que tendem a entrar no mato, dando um enorme trabalho para eles. Mesmo com o “puxão de orelha”, o vaqueiro nos deixou passar, com a recomendação de que não assustássemos o gado. Na verdade era o gado que nos assustava. Pelo menos o sermão serviu pras gurias não se desesperassem com os bois mau encarados. Passamos pela tropa de boi e os peões com cautela para afugentar os animais e novamente estávamos só nós e os campos.
Descemos uma encosta e achamos um bom rio para comer um lanche até que um ou outro tentou quebrar o clima que estava entre nós, mas sem forçar a barra continuamos a caminhada, subindo a encosta do outro lado do vale para entrar 3 bois mau encarados, que aparentemente estavam achando que a gente iria deixar sal no coxo deles.
De mansinho deixamos os bois no vácuo, sem sal e sem capim, ao ponto em que íamos nos aproximando do Morro da Bela Vista, ponto culminante de Santa Catarina. Tangenciamos o morro, sem agraciar seu cume e após um tempo chegamos a um mirante com um visual fantástico para o Morro do Chapéu e um vale onde uma bela cachoeira se desfaz na quebra de um platô.
Ao lado do Morro da Bela Vista, montanha mais alta de Santa Catarina De tão bela e impressionante a paisagem tivemos o ambiente perfeito para quebrar o clima e pedir desculpas um pro outro, fazendo que todos voltassem a ser amigos felizes rumando pelo campo novamente. O clima foi bom até mesmo para aquela chata discussão de relacionamento, feita em menos de 15 minutos, o suficiente para que a Andressa e o Mario ganhassem a dianteira e rumassem por um caminho errado.
Após alcançar a dupla, expliquei que a gente estava fora do tracklog, mas animei a todos dizendo que poderíamos corrigir o erro sem ter que voltar o caminho. Grande erro! Quem foi que disse que a menor distancia entre dois pontos é uma reta?
Entramos numa matinha, numa trilha aberta pelo gado. Atolando os pés na lama e enroscando a mochila na vegetação, caminhamos meia hora rumo um canyon intransponível, dando a lição de moral que eu precisava: Não dá pra desgrudar um minuto da navegação!
Certos de que meu serviço de navegador era essencial, voltamos aquele caminho ruim que havíamos tomado, atravessando outra matinha e chegando num platô de frente à cachu que havíamos visto desde o mirante à montante. A bela paisagem só foi interrompida com a preocupação que tomou conta a todos: O tempo estava fechando!
Atravessamos o rio à montante e pegamos outro trecho de matinha horroroso, novamente com muita lama no chão e muita vegetação impedindo nossa passagem. Pra piorar, o ar já estava carregado de umidade e fomos enxugando o mato com nossas roupas, nos deixando encharcados. Após vencermos este trecho ruim, chegamos no topo do morro, onde o vento nos brindou com um frio indesejável.
Atravessamos umas matinhas, e chegamos numa cerca, onde paramos para comer. Nesta altura, todos já estavam cansados e necessitando parar para descansar. Como falei anteriormente, sempre que navego eu fico tão compenetrado que nem noto os outros, acabei gerando um certo mal estar, pois a galera começou a reclamar dos meus erros e acertos.
Atravessamos a cerca de demos de cara com mais uma estrada de tropeiros, onde encontramos dois vaqueiros a cavalo. Vestidos com um poncho grosso, protegendo-os da umidade e do frio, eles foram simpáticos e nos convidou para dormir no rancho deles. Sem dormir há dois dias, a Camila aceitou na hora. Caminhamos cerca de 15 minutos e enfim chegamos em tal rancho. Feito de madeira, com muros de pedra, o local parecia uma estância na Patagônia. A construção era da década de 1950, mas me achava no século XIX.
Deixamos nossos equipamentos numa área de serviço e tomamos acento na cozinha ao lado do fogão à lenha. Era tudo muito curioso pra mim e pra minha sorte, os vaqueiros eram bem esclarecidos, pude então conhecer a história daquele local e confirmar a influencia da cultura tropeira naquela paisagem.
Apesar de não ser o caminho principal dos tropeiros dos séculos passados, aquele campo tem caminhos seculares. Apesar do capim dos campos terem muita sílica e não serem a melhor forragem para os animais, a pastagem se desenvolve ali desde a época da colônia. As queimadas garantem a renovação do pasto, pois capim velho é mais silicoso, mas a cultura rústica preserva as espécies campestres, sem necessitar o plantio de capins importados, que dão uma forragem melhor ao animal.
Em contrapartida, o animal precisa de mais espaço e caminha mais que o normal. Por conta disso, a carne dos bois do campo dos Padres é mais musculosa e só serve para embutidos. Eles têm cerca de 400 cabeças lá em cima, mas com o cultivo de espécies exóticas de capim, poderiam ter mais de 2000. O frio condiciona a presença de espécies europeias de gado, como o Red Angus e Alberdeen Angus, em contraposição à raças indianas, como o zebu, que não suportariam o frio dos planaltos. Apesar do gado não ser um animal típico destas paisagens, ele se adaptou muito bem e hoje conforma um elemento importante no ecossistema destes campos. Os vaqueiros, mesmo sem muitos estudos, já perceberam que sem o gado, a matinha nebular ganharia espaço sobre os campos. Eles perceberam também que a tendência sem a pastagem é o desaparecimento desta pitoresca vegetação, extremamente biodiversa. Apesar de ser uma tendência natural, esta cultura tradicional mantém a paisagem. Acho um caso interessante de uma intervenção positiva do homem sobre a natureza.
Após uma noite bem dormida e bem alimentados, o humor da Camila melhorou da água pro vinho. Ainda bem, pois naquele domingo ainda teríamos 28 km de caminhada pela frente e para piorar, o sol resolveu não dar as caras. Ao contrário, predominou chuva e vento no dia inteiro. Imagine ela de mau humor com um “tempinho de se morrer na serra”?
Despedindo de nossos amigos, não levamos muito tempo para ficarmos molhados devido ao mau tempo. Sem nenhum visual, tive que navegar com instrumentos, com minha ultima leva de pilhas do GPS que felizmente estavam bem carregadas. A travessia até então estava fácil, com apenas alguns problemas de navegação. Sem visual nos campos, a navegação fica muito complicada, pois é necessário interpretar o tracklog sem ver para onde estávamos indo. Pra piorar, havia aquele problema da trilha real, que fora os trechos de mata nem existe mesmo, estarem sempre à direita do tracklog do Augusto que eu havia baixado da internet.
Subimos o Morro do Chapéu por um local onde deu pra evitar a mata, mas não tardou para o tracklogs nos indicar um caminho no meio da vegetação fechada. Resisti à este fato e saindo de lá pra cá, na borda da mata, descobri um caminho por fora onde pude evitar a situação de andar na vegetação que enrosca na mochila.
Com o frio, caminhamos rápido pelos campos. O Mário já mostrava sinais de que aquele ritmo não estava bom pra ele. No entanto não havia nada a fazer, era parar pra esperar e sentir o frio do vento com o molhado da roupa congelar a espinha.
Campo dos Padres com tempo ruim Nos dados que eu tinha no GPS, o ponto mais próximo do local onde estava o carro da Andressa era o tal do “A partir daqui”. Se ferrando naquelas condições de tempo, ficava imaginando que a complementação daquela frase fosse: “A partir daqui começa a trilha”. Como os autores do tracklog fizeram o caminho contrário ao nosso. Imaginei que a estradinha da Pedra Branca ia até aquele ponto e a partir dali começaria a trilha propriamente dita. Esta esperança me fazia calcular, de tempo em tempo, a distância em linha reta até ali.
Andando entre campos e às vezes entrando nas indesejáveis matas, íamos nos aproximando do ponto “A partir daqui”, nos perdendo somente nas entradas das matas. Parar era impossível por conta do frio, por isso o passo era rápido. Naquele momento a gente já ia preparando o psicológico para mais um possível pernoite, embora desejássemos de qualquer forma chegar ao carro, pois molhados como estávamos, não seria nada agradável montar acampamento, sem falar que a Camila não iria dormir devido seu saco de dormir de pluma de “galinha”e também no risco de no dia seguinte o tempo amanhecer fechado e termos menos pilhas no GPS para navegar.
Após passarmos por um local onde aparentemente havia um canyon, que podemos ver somente por um segundo, entramos numa matinha, onde com dificuldade achamos uma taipa para atravessar. Depois de pular o pequeno muro de pedras, encontrei pela primeira vez uma pegada humana, pista que deu ânimo a todos. Poderíamos não dormir no mato molhados…
As pegadas foram aumentando, até que no meio da neblina apareceu uma macega, felizmente com uma trilha bem aberta no meio, embora fosse também bem encharcada. Neste momento já estávamos sem frescura e atolávamos os pés na lama sem dó de estarmos molhando os pés, pois os mesmos já estavam ensopados!
A Macega virou uma mata e a trilha se manteve aberta, dando esperanças: Ali poderia ser um local bem frequentado, com uma trilha delimitada até o final. Isso significou, para mim, um alívio: Não precisaria perder mais cabelos preocupado com a navegação. Eis que no meio do mato surgiu um descampado com totens no campo indicando que o caminho era por lá. Saímos da zona do conforto, com a possibilidade dali ser um atalho à grande volta em ferradura que eu via no visor do GPS. Deixamos o conforto da certeza para experimentar o conforto do encurtamento do caminho.
Como ali era campo, a primeira coisa que aconteceu foi sentirmos o frio que fazia no momento. A Segunda foi se perder quando chegamos em mais uma capão de floresta, o cujo acabava num grande charco… Pisando na jaca completamente, ou melhor, na lama, atravessamos o charco com o barro no joelho e logo estávamos nós em cima do tracklog, no meio dos campos e sem nenhum visual.
Caminhando no meio da encharcada vegetação campestre, vi o ponto “A partir daqui” se aproximar. Um imprevisto, no entanto jogou água fria na ansiedade positiva. No meio do campo úmido chegamos na beira de uma mata, a qual caminhamos pela beirada sem entrar no mato, até darmos de cara com um canyon. Voltamos e encontramos uma trilha aberta na mata. Alívio novamente, estávamos num caminho aberto com certeza de que muita gente passava ali.
Varando um campo úmido, ao termino deste trecho com trilha larga na mata, nos perdemos mais algumas vezes, até chegamos em terra firma num gramado bem rasteiro, de onde pudemos ver entre as nuvens aparecer os paredões de basalto da Serra Geral. Estávamos no ponto “A partir daqui” Finalmente! Olhava para o norte e enxergava um capão de mata, à oeste, os campos sumiam no meio da neblina. No Sul, estava o caminho de onde viemos e no Leste, o paredão com cerca de 500 metros de desnível para o qual o tracklog apontava. Fiquei estarrecido!
Ainda comecei a descer um suposto valezinho, que acabava no paredão, andei no meio do mato, procurando algum caminho. Nada! Indignado perguntei pra mim mesmo, jogando praga no Augusto, no Jorge Soto e no Wikiloc: _ A partir daqui o que?
Discussões e palpites furados foram aparecendo. Sem visão de onde a gente estava, não dava pra saber o que fazer. Pra onde era a trilha de verdade? Como ela seria? Eram duvidas cruéis que ficavam ainda mais cruéis ao consultar o relógio e perceber que o sol iria se pôr em menos de uma hora. Pior ainda era constatar que ninguém queria dormir naquela condição e que dependíamos de um GPS com palpite mais furado do que o nosso.
Sabendo do erro do tracklog, que sempre apontava a trilha real para uns 20 metros para a direita, tentei achar um caminho no meio do paredão, para desespero da Camila que observou de lado o precipício aparecer entre as nuvens. Não, não poderia ser por ali de jeito nenhum!
Quando o frio já produzia o som dos queixos se batendo, resolvi esquecer as dicas do GPS e tentar a sorte procurando mato por mato, interpretando o que dava pra ver no terreno como possível trilha no meio do capim batido. Seguindo a sugestão do Mario, continuei reto, à esquerda do tracklog e no meio do mato achei o que poderia ser uma trilha, confirmada metros abaixo com a presença de uma pegada humana no solo desnudo. Que alivio! A trilha entre a mata surgiu sem transições com o campo aberto, numa condição idêntica à temida trilha da Pedra da Tartaruga, na Serra do Quiriri, no norte do Estado. A comparação foi imediata e me deu até frio no estomago em lembrar daquele caminho. Quem conhece o Quiriri sabe, a trilha da Pedra da Tartaruga é um inferno!
Ao contrário daquela outra trilha, a descida da Serra Branca se mostrou muito mais amigável. Bem aberta, sem erosões e nem locais escorregadios, não havia bambus pra enroscar a mochila, foi um alívio que só não foi totalmente tranquilizador, pois naquele momento um estralo no joelho da Camila pôs todos na ansiedade. Logo na descida, o joelho dela foi reclamar de dor. Teríamos que carregar ela nas costas depois de tanto perrengue cansados?
Que caminhozinho filho da puta! Todas as vezes que a gente ficava numa boa, acontecia algo que nos deixava preocupados. Era achar uma trilha boa que nos desce certeza que estávamos no lugar certo, para nos perder de novo. Era achar um caminho novo e definitivo que agora uma pessoa se lesionava. Ainda bem que, desta vez, a Camila não reclamou e segurou firme, mesmo com a dor no joelho, até que chegássemos ao final da trilha na baixada.
Já no vale, na base da montanha, ainda nos perdemos um pouquinho nas estradinhas rurais, para dar um caráter de fodeção ainda maior àquela perrengue. Cansados, nem nos abalamos e chegamos na casa do Seu Walmor e Dona Anita, onde deixamos o carro da Andressa dias antes, totalmente ensopados, enlameados e extremamente cansados. Foram 64 km de caminhada em 4 dias e muita tensão na navegação, com a possibilidade de se perder a cada minuto e ficar sem pilhas no meio do nada.
No estado em que estávamos não tivemos como negar a acolhida que o simpático casal nos deu. Pudemos jantar, tomar banho quente e dormir dentro da casa, o que deu uma renovada crucial! Fomos muito gratos à ajuda deles é impressionante a solicitude deste povo simples do campo, a receptividade e confiança que eles tiveram com a gente. Apesar da paisagem lá em baixo não ser tão pitoresca como lá em cima, que como eu disse, me fez sentir como se tivesse voltado ao passado. A atitude amigável e de confiança do casal perante nossa presença nos fez ter certeza que a cultura deste povo, ainda bem, permanece fiel à suas origens.
O Campo dos Padres é um lugar vasto e pitoresco. Nos sentir no passado é normal, tendo em vista que é uma paisagem onde natureza e cultura estão em simbiose. Infelizmente esta paisagem cultural está ameaçada por dois lados extremos da cultura técnico científico informacional dos grande núcleos urbanos. De um lado, os produtores rurais querendo aumentar o rendimento da terra está deixando de ter rebanho de gado, tido como pouco produtiva, para plantarem Pinus, espécie invasora que se propaga com facilidade pelos campos, fazendo sombra nos capins nativos e colocando aquela rica biodiversidade em risco.
Do outro lado estão os ambientalistas. Contrários à presença humana e focados numa filosofia de que a natureza e o homem não se misturam, eles sobrevoam os campos de helicóptero e certamente se encantam com o que vêem. Na ânsia de preservar a beleza estética daquela paisagem, querem transformar os campos em um parque, tirando o gado e o homem. Apesar da boa intenção, a intervenção preservacionista poderá resultar na destruição de toda aquela beleza cênica, já que em 3 séculos de ocupação, o homem se adaptou ao rigor dos campos e desenvolveu uma atividade econômica simbiótica à paisagem. Tirar o homem e o gado é desequilibrar este sistema antroponatural e sepultar uma cultura tradicional que já é engolida pelo crescimento das cidades.
O que acontecerá com esta bela e impressionante paisagem eu não sei, mas posso afirmar que sou simpático à ideia de deixar como está. Quero retornar ao Campo dos Padres e ter contato com esta paisagem cultural do passado que deve sim ser preservada! Não quero, no entanto, ver novamente o retrocesso do radicalismo e das proibições dos órgãos ambientais nos impedir de conhecer este patrimônio e destituir o povo de suas raízes.
Ps. Peço desculpas por ter jogado praga no Augusto pelo tracklog. Na verdade faz parte do jogo este erro que é da tecnologia. Navegar sem visualização, no entanto, é o que dificultou as coisas. Gostaria de agradecer ele por ter disponibilizado o tracklog desta travessia, que segui do começo ao fim. Valeu!