A noite foi extremamente longa para mim e Raffael, mas não pro Jurandir, que roncava feito uma onça na sua confortável rede artesanal. Demorou demais pro farolete lunar se por atrás do Ibitirati, e ainda mais para as primeiras claridades brotarem no leste. Finalmente às 6:48, uma grande bola vermelha começou despontar no horizonte. Sinal verde para a continuação da nossa insana aventura.
Empanturrados de biscoito recheado e castanhas, ensacamos as tralhas para sumir dali. Era vez de Jurandir encarar a dianteira, mas como fui presenteado com meio litro d’água, decidi retribuir a gentileza enfrentando a primeira quiçaça vertical do dia.
Com os músculos ainda frios, não foi fácil na primeira pegada vencer aquele desnível ignorante. Lutei por uma hora e meia entre as cotas 1225 e 1400m, até entregar o posto ao Jurandir. Este seguiu no mesmo embalo e azimute até informar que estávamos próximo ao primeiro paredão. Finalmente chegou a hora do momento decisivo da travessia. Se havia algum lugar onde não seria possível passar, este lugar era ali. Em 2003 quando fiz pela primeira está travessia, descendo pela face leste, procurei ajuda do Vitamina para saber se alguém já havia feito. Ele respondeu que desconhecia, e alertou para que levássemos cordas, pois provavelmente seriam necessários alguns rapéis. Ele acertou! Naquele ano tivemos que usar a corda por quatro vezes. Duas delas, nestas paredes. Em 2004 quando repetimos a descida, eliminamos três rapéis. O único que restou, foi justamente nesta grande muralha que estava agora à nossa frente. A esperança residia no fato de que em 2004, não quisemos perder mais tempo procurando uma passagem. Porém sempre acreditei na sua existência.
Pois bem! Metros à frente e lá estávamos nós na cota 1450m, diante daquele colosso de granito. Ficamos deslumbrados, e ao mesmo tempo aterrorizados. Olhando para trás, as encostas íngremes e tudo que já havíamos percorrido, revelado de forma espetacular. Admirando a parede atentamente, percebi algumas linhas escritas pela própria natureza. Pareciam hieróglifos. Entretanto um deles chamou atenção, pois lembrava um sete e um zero. Assim o batizamos de Paredão 70.
Encostados em sua base, começamos contorná-lo à esquerda procurando uma passagem. Mas no caminho acabamos nos deparando com uma rampa molhada, inclinada, e bem perigosa de se cruzar. Certamente um deslize ali não seria fatal, para o azar do infeliz que escorregasse naquele tobogã de pequenos e cortantes cristais de granito. Certamente deixaria o couro pelo caminho até chegar totalmente esfolado à sua base. Sobreviver a esta queda, seria o pior dos castigos.
Primeiro passou Jurandir, depois o Raffael. Vendo a dificuldade dos dois, já entrei no lance meio tenso. A sola detonada da bota fazia a superfície molhada parecer sabão, e as agarras de mão de nada serviriam se um dos pés escorregasse.
Entrei no lance me segurando nas agarras invertidas de mão. Eram bem boas e solidas. Porém o próximo passo seria posicionar o pé direito bem deslocado do ponto de equilíbrio, e distante do pé esquerdo. Nada tão sério se conseguisse firmar sem escorregar. Mas ao testar a aderência, já de primeira deslizou. Tentei fixar melhor, e nada. As forças nos braços já estavam no limite, e comecei acreditar que ia dar merda. Minha chance de queda era eminente, e desesperado gritei aos amigos. Raffael volta e se posiciona agarrado à vegetação. Então lança o pé esquerdo sobre a rampa logo abaixo do meu como apoio. Com esta preciosa ajuda, consegui enfim sentir segurança. Lancei rápido o corpo rapidamente para margem, escapando da roubada. Ainda com os batimentos a mil, agradeci o parceiro.
Fui seguindo na dianteira, tentando contornar a parede enquanto os dois tentavam inutilmente colher míseras gotas que pingavam do topo. A situação começou ficar cada vez mais complicada, a ponto de sobrar apenas um estreito passadiço com encostas verticais, subindo à direita, e despencando a esquerda. Tentei ir adiante numa última tentativa de encontrar uma passagem segura, mas senti que o lance estava ficando perigoso demais e então recuei. A opção seria voltar um pouco e tentar descer a crista que estávamos, e no vale encontrar uma passagem para a crista paralela, mais ao sul. Pela analise visual, ali estaria nossa última esperança de passagem.
Ao dar meia volta, o Jurandir que vinha por último passou a ser o primeiro da fila. Nesta hora ele sugeriu que talvez fosse possível vencer o platô se enfiando por uma fenda na rocha, com alguns trepa-matos. Porém não tínhamos equipamento nenhum de escalada, e subir ali poderia ser um caminho sem volta e fatal caso as coisas se complicassem mais a frente. Alertei o maluco sobre o final dramático que teria quem se acidentasse por ali. Mesmo assim ele disse que se sentia seguro em tentar o lance solando. Lá se foi usando a vegetação como apoio. Em dois tempos estava lá em cima eufórico, nos informando que achou a passagem.
Chegou a vez de Raffael encarar o abacaxi. Tentou repetir os movimentos sem sucesso. Jurandir sem duvidas era o que melhor escalava entre nós. Além do mais, a vegetação da fenda era muito frágil. Com a passagem do Jurandir, mais a tentativas frustradas do Raffael, pouco sobrou de apoios. Em certo momento, ele até avançou pouco mais acima, mas estava inseguro, e teve que recuar. Estava sepultada nossa última esperança de subir pela fenda, pois junto com ele desceu as últimas sustentações que ainda restavam.
Eu estava precariamente equilibrado na saliência duma rocha, e até tentei seguir por ela pela aderência. Mas era quase setenta graus de inclinação, e se escorregasse, passaria reto pela saliência rumo a uma morte certa no abismo que se seguia. Diante de tal situação, informo Jurandir que fique onde está enquanto eu e Raffael tentaremos o contorno abaixo do vale, numa tentativa que levaria ao menos duas horas para ser executada.
Foi então que tivemos a idéia de usar o toco de corda de dez metros que Raffael trouxe. Com Jurandir no topo do lance, seria só encontrar uma boa ancoragem, e então teríamos de volta o apoio perdido para superar o obstáculo. Mesmo com a corda, não foi tão simples assim devido à falta de apoios para pés. Porém com um pouco de esforço, deixamos para trás o maior problema da face leste do Ibitirati. Havia mais um degrau, porém já contornado na descida de 2004. Seria só achar o ponto.
Pedi ao Raffael que seguisse um pouco na dianteira. Este declarou estar “só o pó da gaita”. Não estava nada diferente disso, mas decidi permanecer na dianteira para recompensar novamente o Jurandir por ter se arriscado por primeiro na roubada que acabamos de superar.
Nesta hora seguimos por uma senda inclinada, com o abismo poucos metros a nossa esquerda. Isso era bem evidente devido à vegetação que subitamente desaparecia, fazendo uma bem definida fronteira com o vazio.
A sede e o cansaço agravados pelo calor nos massacravam. Uma quiçaça especialmente irritante denunciava a vegetação transitória entre mata e campo. Mas algo estava estranho: Onde diabos foi para o segundo degrau? Ainda sem resposta, seguimos vorazes rumo as super bem vindas caratuvinhas. Foi a partir delas, e já com sol e vento na cara, além dum belo visual da imponente pirâmide de Pico Paraná, que tivemos a resposta sobre o paradeiro do obstáculo. Acabamos seguimos tão à esquerda, que contornamos o mesmo. Levando em conta nossa condição deplorável, esta foi uma excelente noticia. Mas ainda não motivo de comemoração. Ainda havia muito chão a ser pisado para chegar ao topo de platô que antecede a impiedosa rampa final do Ibitirati.
Nos campos o sofrimento continuou. Ninguém mais tinha uma única gota de água. Isso por si só já era um grande problema. Mas o que abalava mesmo era saber que além de todo o mato e subida difícil que ainda faltava, o próximo ponto de água estava a pelo menos duas horas de nós, e bem abaixo e depois dos 1877 metros do Pico Paraná, lá no A2. Melhor continuar se arrastando penosamente e nem pensar muito nisso.
Com a paisagem cada vez mais encantadora, especialmente na visão dos amigos que a contemplavam pela primeira vez, várias foram as vezes que paramos para fotografar, usando isso como pretexto para descansar e vice-versa.
Chegando ao topo do platô, nova rajada de fotos e toma-lhe fôlego. Com o sol torrando na pinha, tratamos de descer logo para o pequeno selado com matinha nebular. Desabamos naquela sombra para se refrescar e repor as energias antes de enfrentar a rampa final. No cardápio, castanhas, chocolates, e bolachas recheadas. O drama era que ninguém tinha nem saliva mais para engolir com a comida, tamanha era a desidratação. Em resumo, as deliciosas iguarias desta vez desceram rasgando pela garganta, intensificando ainda mais nossa sede desgraçada. Ficamos numa situação onde prolongar o descanso não era mais viável, em virtude da necessidade extrema em se reidratar.
Sem muita opção, encaramos de frente a rampa final. Se andar nos campos já não estava fácil, muito pior ficou quando fomos reprimidos por um exército composto por milhares de arbustos malignos e entrelaçados, com seus troncos retorcidos, ásperos, e inflexíveis. Muito perto do cume, e na esperança e urgência de interceptar a trilha o quanto antes, a não chegada me causou grande irritação. Como de costume, iniciei os xingamentos. Não é fácil andar o dia todo com uma pedra no sapato, mas ela se torna especialmente irritante nos metros finais antes de chegar em casa. Indignado e totalmente retalhado, acabei aceitando a oferta do Jurandir em assumir a dianteira, a qual havia recusado pouco antes por acreditar que o final estava próximo. O vara-mato irritou até aquela alma com perfil budista. Ouvimos seus protestos injuriados antes que a trilha fosse por fim interceptada.
Vista do pequeno altiplano da face leste para o conjunto do Pico Paraná, União e Ibitirati.
Eram 14:25 quando pisamos no cume do Ibitirati, a primeira vez via face leste. Talvez a parte mais interessante da conquista, tenha sido a forma como foi feita, ou seja, apenas com montanhismo puro e simples, e sem equipamentos de escaladas.
Felizmente agora teríamos uma pequena trégua no sofrimento, pois além da trilha, era só largar o corpo em ponto morto até chegar ao União. Deste, seria só enfrentar corajosamente a última subida forte por rochas escaldantes até nivelar com os 1.877 metros do Pico Paraná. Feito isso estaria vencido, e por uma rota totalmente inédita, o maior desnível do sul do Brasil.
Eram 15:20h quando pisamos no badalado cume, já totalmente livre da tradicional muvuca. Era todo nosso! Estava tão agradável, em todos os sentidos, que chegamos até esquecer por um momento a terrível sede que nos acometia. Jurandir se dispõe a redigir o breve relato da nossa jornada, e depois de algumas fotos e deliciosa brisa na cara, rumamos ao A2, numa demonstração pratica do que significa pressa.
Em menos de vinte minutos larguei a mochila ao lado do abrigo de pedra, e apenas com a garrafa segui na urgência rumo ao raquítico filete que escorria pelas rochas. Por vários minutos, causamos uma interrupção total no fluxo da água, bebendo todo o córrego até se sentir mal,e a ponto de olhar pra água com ar de desprezo. Por fim enchemos as garrafas antes de deixar o lugar.
De volta ao A2, chegou a hora de pensar no nosso resgate. Com um sinal precário no celular, liguei pro meu irmão, que prontamente concordou em vir ao nosso socorro. Como já eram mais de16h, calculei (mal) mais umas cinco horas até o Tio Doca, e marquei lá às 21h. Até poderia ter pedido que nos pegasse na fazenda, mas não quis abusar da sua boa vontade. Além do mais, pra quem não conhece bem a região, poderia ser confuso encontrar o lugar a noite.
A noticia do resgate foi comemorada pelos parceiros, em especial pelo Jurandir que ao fuçar o lixo deixado pela farofagem, encontrou um pequeno fogareiro com gás e tudo, praticamente novo. Incorporou na bagagem e seguimos ladeira abaixo rumo ao A1. Chegamos lá pouco antes do poente, para admirar o Pico Paraná dourado. Notamos uma barraca laranjada montada nos primeiros campos que afloram próximos ao vale das lagrimas. Achamos estranho, pois é bem incomum alguém acampar ali, até por que nunca foi considerado um local de acampamento. Em breve estaríamos passando lá para descobrir o motivo.
No riacho do A1 fomos atingidos pela penumbra. Sinal que o sol já era. Como sempre seguimos o máximo possível sem usar lanternas. Mais adiante e já quase totalmente noite, avistamos uma figura na mata carregando algo. Estava a uns vinte metros a nossa frente e nem nos percebeu. Assim que saiu da mata pro campo, estávamos nos seu encalce. Constatamos que carregava galhos cortados, para usar como lenha. No maldito acampamento farofeiro havia mais um desgraçado, e era uma folia de lixo espalhado pra todo lado. Uma tristeza. Saudei apenas com um “Ôo..” daqueles bem secos, e já entrei de sola:
– Vocês pegaram esses galhos para fazer fogueira?
– Não! Não é pra fogueira!
– Como não é pra fogueira? Retruquei grosseiramente e continuei:
– Vocês não sabem que aqui é parque e que é proibido fazer fogo?
– Não! Aqui não é parque, é uma fazenda!
Então Raffael e Jurandir se manifestam:
-Como não é parque?
– Aqui é parque sim e vocês estão muito mal informados!
Então concluo:
– Olha, vou dizer uma coisa para vocês… É proibido sim fazer fogo aqui, bem como em qualquer parte da serra do mar, e em qualquer época, principalmente com o alto risco de incêndio que está. Portanto, vocês não vão fazer fogo aqui! Ok? Vou passar na fazenda e pegar seus nomes, e se amanhã eu voltar aqui e ver qualquer sinal de fogo ou lixo, vou DENUNCIAR vocês!
– A gente não deixa lixo…
– É bom mesmo! É bom que não deixem lixo nem façam fogo. Passar bem!
Não sei se foi a abordagem correta ou não, mas foi o que achei certo fazer naquela hora, e fiz. Na verdade minha vontade mesmo era puxar o facão, mas como estava mal afiado, desisti. Minutos a frente quando entramos na mata, paramos novamente para pegar as lanternas, e o assunto nos rendeu comentários injuriados por um bom tempo.
Na bica fizemos uma breve parada, pois com o ritmo lento em virtude do esgotamento, estávamos atrasados e já passava das 19:30h. Era impossível chegar ao Tio Doca em uma hora e meia, ainda mais na nossa condição. Na descida do Getulio, me vi obrigado a ligar para meu irmão e estender o horário em meia hora mais, sem me ligar que no nosso ritmo, isso também não bastaria.
Eram 20h exatamente quando passamos em silêncio e no escuro pela Fazenda Pico Paraná, onde nem os cães no perceberam. Seguimos silenciosos pela estrada sem fim que parecia ter sido esticada. Cada um ia ao seu ritmo, e os três tomaram certa distancia. No antigo bar do seu Bandeira, enquanto esperava os amigos, comprei dois litros de refrigerante, água da serra sabor abacaxi. Enquanto tomava fiquei conversando com o atendente que já estava fechando o bar. Ele contou que o IAP havia estado em massa ali dias antes, e instalou novas placas informando a gratuidade no Pico Paraná. Uma delas estava a meros 50m do bar. Nesse meio tempo chegaram os amigos, e depois duns goles, seguimos pela estrada da serraria rumo ao Tio Doca, sempre acompanhados pela luz prateada da lua cheia.
Já bem atrasados, aquela estrada parecia não ter fim. Parecíamos zumbis andando na escuridão rumo ao barulho dos caminhões na BR que nunca chegava. Para complicar mais, quando finalmente chegamos não pudemos atravessar porque havia tela no canteiro central, o nos que obrigava o uso da passarela, que ainda estava distante, considerando nosso estado. O zig-zag da passarela por si só já é um longo caminho para quem está no limite. Antes podia ser cortado, agora não mais.
Do topo da passarela avisto o meu irmão. Já passava de 22h quando finalmente largamos as tranqueiras no bagageiro, e contaminamos o ar do carro com nosso budum horrendo. Péssimas noticias pro nariz do meu mano e sua esposa.
Pouco antes da meia noite, eu e Jurandir descemos em frente meu condomínio. Meu irmão decidiu levar Raffael em casa. Diante do precioso serviço prestado pelo brother, cada amigo ajudou com 25,00. Decidi fazer um agrado e lhe dei 50,00. Assim, todo mundo ficou feliz. Afinal uma aventura como esta, não tem preço.
Resgate do carro
Na manhã seguinte o clima continuava limpo e estável, e muito calor já cedo. Eu e Jurandir partimos rumo à rodoviária onde compramos duas passagens para Antonina às 10 horas, depois do camarada avisar que iria comigo no resgate. O plano era chegar a tempo de pegar o coletivo para Bairro Alto que saia meio dia. Viagem direta e sem imprevistos, chegamos a tempo de dar um role pela cidade e tomar um suco de goiaba na meia hora que sobrava.
No embarque, fomos surpreendidos por uma multidão que lotou o busão, já meio atrasado. Levamos vinte minutos para sair de perímetro urbano, mas pareceram muito mais naquela lata de sardinha barulhenta que mais parecia uma sauna.
Finalmente na estrada para Usina Parigot de Souza, o motorista pode pisar fundo e o ar circulou melhor. Hipnotizados pelas montanhas, mal percebemos que o latão foi esvaziando, e logo só estávamos nós para descer no ponto final.
Que sorte a nossa estar ali para caminhar apenas dois quilômetros e voltar embora de carro. Concluímos que se nossa travessia estivesse começando, estaríamos ferrados naquele forno.
Em menos de vinte minutos estávamos na fazenda, que continuava com ares de abandono, mas felizmente o carro ainda estava lá. Agora sim a missão estava concluída.
Na BR entre Antonina e Morretes, ainda houve tempo para um caldo de cana para brindar o sucesso da investida. Lembramos que há exatamente 24h, estávamos nas encostas do Ibitirati, quase morrendo de sede, e isso conferiu um sabor especial a garapa. Depois do famoso “chorinho”, o ônibus Antonina/Paranaguá despontou na curva. Abraços e agradecimentos, e cada um segue seu rumo, com mais uma incrível e inesquecível história, que ficará guardada para sempre em nossas mentes.
2 Comentários
Boa tarde vocês tem essa trilha salva no wikloc
Baita aventura, muito engraçado esse comentário acima kkkkkk