Travessia Travessa do Vale do Travessão – Serra do Cipó / MG

0

Com o ano de 2024 propiciando poucos feriados em dias úteis, restou otimizar as caminhadas para que se desenrolassem nos FDS. Trajetos longos em lugares distantes de SP foram postergados ou otimizados, de forma a viabilizar a caminhada em um (intenso) dia e o retorno no domingo, para o merecido descanso antes da labuta da segunda-feira.

Com essa configuração em mente, a Amanda “tirou da cartola” a travessia do Vale do Travessão, na Serra do Cipó. Faríamos descendo, acampando já na parte baixa do parque. Nas vésperas, durante as verificações finais, as informações pouco claras quanto a pontos de entrada/saída e quanto a permissão de acampamento nos levaram a alternar o planejado, sucessivamente. No original, faríamos descendo, acampando após passarmos a cachoeira do Tombador, já próximos da cachoeira do Gavião. Terminamos com a travessia invertida: subindo e de ataque. Reservamos camping próximo da portaria de entrada, na parte baixa, de forma que desistentes da travessia não tivessem dificuldades adicionais. Como não há guiamento, exige-se que cada participante esteja apto a trilhar de forma totalmente autônoma quanto à alimentação, PS, navegação etc. Dessa forma, as diferentes velocidades de deslocamento de cada participante são respeitadas e eventuais agrupamentos durante a trilha surgem fruto de afinidades e conveniências, nunca de imposições.

Após o alerta protocolar quanto ao mínimo sugerido de equipamentos, conferências das previsões de tempo para os dias próximos, revisei a mochila, buscando minimizar peso sem descuidar dos itens essenciais.

Arranjo de equipamentos: travessia com acampamento (e) e em ataque (d).

 

Trabalhando em regime misto presencial/remoto, me planejei para seguir direto do escritório, após a jornada diária. Com o rodízio da cidade de SP, não posso trafegar no centro expandido antes das 20h. Combinei de pegar a Amanda no caminho e seguirmos para o ponto de encontro. Deixei para a última hora a impressão do mapa e aproveitei o intervalo do almoço para fazê-lo.

Mapa de planejamento – plastificado e disponibilizado aos participantes.

Saímos na sexta, 21h do metrô Tatuapé, fizemos duas breves paradas para banheiros e cafés, e chegamos na entrada do parque às 8h. Revisamos as mochilas de ataque, conferindo os equipamentos para a eventualidade de um pernoite não desejado dentro do parque. Dada a extensão da caminhada pela região menos “batida” do parque, o risco de que um acidente ou uma improvável tempestade impedisse o avanço e até mesmo o recuo, era uma possibilidade da qual não descuidamos.

Depois de tudo acertado, 9h nos colocamos em marcha, apertando o passo para poupar tempo para a parte de subidas mais intensas. Apesar de não estar no programado, fizemos uma rápida incursão na cachoeira das Andorinhas, das 10h às 10h50.

No retorno, por descuido com a navegação, eu, a Amanda, a Letícia e o Reinhold seguimos direto para a cachoeira do Gavião, onde chegamos às 11h. Havia estranhado a expressiva redução na extensão remanescente, mas não atinara o motivo. Questionado pela Letícia, verifiquei com maior cuidado o que havia ocorrido e, identificado o erro, tratamos de voltar para buscar a entrada do ataque mais extenso planejado, até a Cachoeira do Palmital, passando em sequência pelas cachoeiras do Retiro Velho, Drummond e Fantasma.

Mapa de planejamento – plastificado e disponibilizado aos participantes.

Às 11:18 encontramos a bifurcação para a trilha que pretendíamos seguir e tocamos paralelos ao rio por uns 15 minutos antes de dobrarmos à direita e passarmos a subir de forma mais intensa. Na subida, a dupla Letícia/Rei nos alcançou e logo se distanciou encosta acima. Nós os veríamos descendo para a cachoeira do Retiro Velho e depois na busca da Drumond. Às 12h13, alcançamos a cachoeira do Retiro Velho, fizemos um banho rápido e retomamos o caminhar, em direção à cachoeira Drumond.

Já bem próximos dela, encontramos o Felipe e a Sthéfany que nos alertaram de escorpiões nos troncos ao redor, parcialmente queimados. Questionamos se haviam encontrado alguém do grupo e ante a negativa, ficamos tentando entender o que havia ocorrido para que não os víssemos mesmo que à distância. Informamos que a Letícia e o Rei estavam próximos, na cachoeira do Retiro Velho, nos despedimos e tocamos em frente. Alcançamos a Drumond às 13h e apesar de linda, suas águas não nos pareceram convidativas para entrarmos, face a grande quantidade de galhadas parcialmente visíveis próximas às margens. Estimamos que avançar até a Palmital não seria prudente, pois o deslocamento tomaria entre 1 e 2 horas para ida e volta, e nos pareceu mais adequado preservarmos esse tempo para os trechos mais técnicos da travessia, onde a reduzida frequência de passagem não chega a manter a trilha minimamente transitável.

Chegando na cachoeira do Palmital.

Chegando na cachoeira do Palmital.

Retornamos até o cruzo Andorinha/ataques, fizemos um bom lanche e, às 14h40 apertamos o passo em direção à cachoeira Tombador, onde a parte realmente desafiadora do nosso trajeto se iniciaria. Passamos, sem nos deter, pela cachoeira da Erica.

Nesse ínterim, a tropa da “frente”, puxada pelo Potenza, optou por um atalho de ligação, economizando uns bons 2 quilômetros de trilha ao evitar retornar ao cruzo e passar pelas Cachoeira do Gavião. Com isso, “saltaram” nossa posição, passando a estar cerca de 10 minutos à nossa frente.

O trecho até a cachoeira do Tombador estava bastante frequentado, e foram muito os grupos em direção contrária, provavelmente já se dirigindo à saída do parque. Os cumprimentos de “tarde” foram tantos que foi impossível não comparar com o trecho trilhado pouco antes, onde apenas nosso grupo (ou quase isso) parecia estar. Com a celeridade possível em razão do intenso trânsito contrário, alcançamos a base da Tombador às 15h23, a tempo ainda de ver a Fernanda concluir a subida, pelo lado direito da queda.

Sem demora, tratamos de repetir a escalada para a cabeceira da Tombador, com o auxílio providencial de uma velha corda (e alça de mochila de corrida) presa na vegetação acima.

Amanda e a Cachoeira Drummond

Flora em flor, vale do Travessão ao fundo

Superada a queda, com cerca de 15 m de altura distribuídos em dois lances, tocamos por dentro do rio, até que a Amanda percebeu uma saída para trilha à direita, que não constava no track de referência. Tem bons olhos, essa mulher… bons olhos e boas pernas … mesmo convalescente da internação, por uma semana, em UTI para tratar de uma dengue hemorrágica há pouco menos de dez dias. Meu pai, precisou de mais de 20 dias para conseguir andar sem apoio de corrimão. O fator idade, e a excelente forma física dela certamente foram parcelas importantes dessa recuperação expressa.

Afoito, eu já havia passado esse ponto, sem notar a discreta saída. Retornei até onde ela estava, pois não conseguia escutar o que falava pelo ruído do rio. Constatei que ela tinha razão e fui buscar minhas tralhas onde as havia deixado, pouco mais de uma dezena de metros adiante. Ao cortar caminho pela margem, um buraco escondido pela vegetação me prendeu a perna direita, felizmente sem consequências. Serviu de alerta para redobrarmos os cuidados nos quilômetros faltantes.

Caminhando pela trilha e quando necessário pelo rio, às 16h32 passamos pela cachoeira Fantasma. Ali, encontramos um muro de pedra, que supus ser remanescente de algum antigo rancho. Na viagem de volta, o Potenza me traria outra explicação, bem embasada na sua experiência de infindáveis trilhas pelas matas e rios desse Brasil. Seria um muro de divisa de propriedade, sinalizando o confronto entre duas antigas fazendas. Legal demais aprender e agradeço imensamente a informação.

A conformação do terreno, bem plana e a árvore frondosa me faz supor que possa ter sido um ponto de apoio para quem tocasse gado ou apenas atravessasse a serra por ali, em alguma rota de comércio. Ponto com água próxima, plano, divisa de propriedade … si non é vero, bene trovato.

Pelo adiantado da hora, optamos por não ir até a base das cachoeiras Fantasminha e de Deus. Deixamos o rancho (muro), cruzamos o rio e seguimos alternando trilha e leito do rio até alcançarmos, às 16h40 o quarteto Felipe/Sthéfany/Sandy e Ethan que até há pouco estava com o restante do grupo. Sabendo que poderia ser necessário apoiá-los, optamos por não mais apertar o passo e permanecer próximos deles, de forma a maximizarmos a segurança do agora sexteto.

O Ethan seguia, apoiado pelo trio conforme a necessidade. Cumpre destacar, que mesmo com inabalável determinação, a jornada não se apresentava fácil para ele. Foram muitas as passagens onde as pernas adultas, literalmente com o dobro das dele penaram para vencer. Ethan Faria, com apenas 7 anos, foi, certamente o mais jovem montanhista a cruzar aquelas plagas nos tempos modernos. Foi uma grata surpresa notar, em seu pescoço, um apito de emergência, item de segurança de importância basilar.

A Amanda me informou de que não estava muito bem, pelo esforço e pela ausência do remédio noturno, deixado na mochila principal. Pediu que não informasse nada aos demais, mesmo porque, ali, ninguém poderia fazer nada nesse aspecto. Passei a ter em mente minimizar os esforços dela, na esperança de ajudar de alguma forma. Em diversos momentos abrimos uma trintena de metros à frente do quarteto, buscando identificar trechos mais fáceis pelas margens ou eventual necessidade imperiosa de deixarmos o leito do rio, aja vista as cachoeiras “do Cânion” sinalizadas no track. Numa dessas verificações pela lateral, perdi um dos bastões, felizmente encontrado pouco depois pelo Felipe. Cansados do rio, testavam o avanço pela margem. Foi duro ter que retornar ao curso d’água, mas a vegetação da margem impunha um avanço ainda mais moroso. Conforme avançava, procurava “limpar” a passagem, de forma a facilitar para os que vinham na sequência.

Após o poço, um lance de escalada curta, porém com poucos apoios na vegetação, já castigada pelas passagens anteriores me fez retirar a mochila para superá-lo e depois apoiar a Amanda na passagem. Aguardamos para ajudar aos demais nesse ponto, pois o próprio solo estava deslizando e se desfazendo no pequeno lance. Não devia ter mais que 3 m a queda. Provável que apenas 2, mesmo assim, poderia resultar num acidente mais sério, principalmente pela dificuldade que imporia na progressão ou mesmo de recebermos apoio externo.

Superamos esse lance às 19h10 e continuamos a ganhar altitude por dentro do leito rochoso por mais uma hora, quando decidimos dobrar 90° à esquerda, com um azimute aproximado de 330° e subir paralelo à trilha do outro lado do cânion que forma a Cachoeira do Travessão. A encosta rochosa apresentava vegetação esparsa permitindo avançar sem muita dificuldade adicional ao próprio ganho de altitude. Quando comparado com os trechos de vegetação que margeia o rio, onde a disponibilidade de água e a fartura de sol permite o crescimento com maior viço, o avanço por ali era sensivelmente menos árduo. Conforme subíamos, a vegetação ficava mais esparsa e o progresso se dava com maior celeridade. Estarmos sob espaço aberto, com o luar nos banhando a face a as rajadas e brisa noturna secando o suor trouxeram considerável ganho na moral do grupo, já parcialmente fatigado pelo esforço despendido até ali.

O quarteto seguia agora à nossa frente, avançados de cerca de 50 metros e optou por fazer nova curva, agora à direita, buscando a trilha ainda em meia altitude. Com isso, precisaram vencer vegetação mais cerrada. Mesmo assim, após alguns minutos alcançaram a trilha de subida da Cachoeira do Travessão e passaram a ganhar altitude de forma mais livre. Decidimos continuar a subir pela encosta esquerda, buscando interceptar a trilha já na parte mais alta, onde naturalmente o cânion seria menos profundo e escarpado.

Cruzamos com facilidade o cânion, por sobre um curso d’agua que não devia ter mais que 30 cm de largura, correndo sob duas grandes lajes que faziam papel de ponte. Apesar do volume ínfimo, não pude deixar de notar que a água escavara ali paredes de mais de 2 m de altura, quase que à prumo. Quando sob chuva, certamente, aquele curso d’água não se renderia tão facilmente. O Felipe informou que havia sido necessário descer alguns metros para poderem cruzar o caudal com segurança e, confesso, temi que houvesse um segundo cânion, esse mais profundo e largo, entre nossa posição e a trilha. Aos poucos, conforme nos aproximávamos do risco do track de referência, esse receio foi se dissipando e, sem maiores dificuldades alcançamos a trilha no ponto projetado e passamos a segui-la em direção ao colo que nos daria acesso à encosta oposta da montanha e, a partir dali, às subidas finais e a descida até o ponto de encontro, já na rodovia. Eram 21h, restavam 9 km para findar a travessia. Estimamos que daríamos conta de manter uma velocidade de 4,5 km/h no trecho faltante, chegando até a van às 23h, 23h30. Subestimamos o relevo, ainda havia quase 300 m de ganho de altitude e o piso das pedras soltas que exigia atenção nas passadas. Levamos quase o dobro do tempo estimado, tendo a alegria de ver surgir ao longe, nas nossas costas, duas lanternas se aproximando céleres. Torcíamos que fossem (e eram) os últimos dois montanhistas dessa travessia, a Letícia e o Reinhold. Pelo que havíamos apurado, a Thaís e a Ariane seguiram à frente do quarteto. Informamos a situação ao grupo da dianteira, através do comunicador via satélite (IReach mini) e soubemos que, já no camping estavam: Cauê, Daniel, Fernanda, Kristal, Márcio, Potenza, Ruan e Sérgio.

À nossa frente, dois grupos: a dupla Ariane e Thaís e o quarteto Felipe, Sthéfany, Sandy e Ethan. Ao que tudo indicava, distantes de nós, mas acelerados, vinham Letícia e Reinhold. Procuramos manter uma boa velocidade média, permitindo que a dupla de lanternas atrás de nós se aproximasse. Ansiosos para conferir, na van, a presença da dupla de mulheres que seguira à frente do quarteto, mas atrás do grupo mais célere, numa estratégia que mesclara ousadia, sorte, competência e um grau razoável de imprudência. Não nego que foi grande o aperto no coração, ao chegarmos na van e não as encontrarmos. Pouco depois chegou a dupla Letícia/Reinhold. Ficamos alguns minutos pensando em qual o rumo de ação a tomar, dada a ausência das duas. Não nos parecia provável que se perdessem na parte final do trajeto onde as trilhas naturalmente convergem para o ponto de encontro, os rastros são mais marcados, a passagem de 3 grupos, com lanternas e conversando serviria certamente de farol. A suposição mais forte era de que tivessem saído da trilha e estariam em alguma pousada ou caminhando para o camping, pois não dispunham da informação de que havíamos conseguido comunicação efetiva para solicitar que a van retornasse para nos buscar.

Felizmente, não tendo notado a van ao chegarem no ponto de encontro, às 23h56, decidiram seguir em direção ao camping e nós as alcançamos na estrada, pouco mais de 2 quilômetros à frente, às 0h50. Nossa alegria ao vê-las só não foi maior que a delas de serem vistas e finalmente poderem descansar os corpos nos bancos da van.

Na serra, durante a descida, eu e a Amanda havíamos discutido o que poderia ser feito, na eventualidade de que alguém ou alguns montanhistas não estivessem no camping com a alvorada. Retornar até o ponto de encontro, verificar pousadas. Acionar o corpo de bombeiros para as buscas e resgate. Postergarmos nosso retorno para contribuir nas buscas da forma possível. Felizmente, apesar dos desencontros e do atraso na conclusão, nada disso foi necessário. Resta reconhecer a importância da preparação prévia, de portar os equipamentos indispensáveis, dispor do trajeto básico em algum aparelho ou mapa (e saber usar), não fugir, de última hora, do planejado. São detalhes, pequenos até, mas neles reside a segurança de cada um.

A Sandy Martins foi muito ousada e contou com o apoio integral do Felipe e da Sthéfany para assegurar o transcorrer seguro da jornada do destemido rebento. Coragem que pouquíssimas mães corujas apresentam. Que a experiencia tenha sido tão enriquecedora e agradável quanto foi exaustiva. Aos sete anos já fazendo travessia desse nível, é bom a mamãe manter o coração em dia, pois as emoções que o garoto trará certamente serão de enlouquecer o eletrocardiograma.

Com o franquear de caminhos, cada equipe buscou os ataques planejados, conforme seu gosto com os trajetos variando de extensão entre 36 km Letícia e infante Reinhold (até a Palmital + erros de navegação), 33 km Amanda e Rogério (até a Drumond + erros de navegação), 30 km: Cauê, Daniel, Fernanda, Kristal, Márcio, Potenza, Ruan e Sérgio (Palmital + ajustes) e 22 km Ariane e Thaís (sem extras).

Sempre vivas ao luar

 

 

 

Stachytarpheta reticulata, endemica

Nesse roteiro ímpar, por trechos cujo passar dos anos olvida a história e a natureza retoma, pouco a pouco, seu inconteste domínio, soubemo-nos pequenos e fizemo-nos grandes. Na guarita, ao entrarmos, nos disseram: não há caminho, não tem trilha, vocês não vão passar. Pois bem, passamos.

Escrevendo essas linhas, me vem à mente as belas palavras de grandes poetas, que bem se encaixam no vivenciado nesse sábado e trazem valiosas lições de vida: “Caminante, no hay camino, se hace camino al andar” – Don Antonio Machado. “No meio do caminho tinha uma pedra” – Carlos Drumond de Andrade. Foi isso. Fizemos nosso caminho, caminhando. E com as pedras dele, construímos as catedrais das nossas mais doces memórias.

Obrigado e nos vemos nas trilhas desse mundão de Deus!

Compartilhar

Deixe seu comentário