Travessia Kairós

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Vale a pena tentar escrever sobre o que estou sentindo, sobre a véspera e isso é dizer que tenho grande ansiedade, que não posso me atrasar, o cronômetro parece ir esgotando as horas a cada palavra que aqui deposito. É a véspera.

Quinta-feira, 8 de fevereiro. Dez e meia da manhã. Aí estão a data e a hora impressas na passagem de ônibus. Essas são as únicas certezas que terei para os próximos três ou quatro meses. Partirei em viagem, cruzarei a ponte e sairei mais uma vez de Florianópolis. Pegarei um ônibus até Buenos Aires e de lá partirei, junto de meu colega, cada vez mais para o Sul: aí está, essa é mais uma certeza, a ida para o Sul. Vale a pena tentar escrever sobre o que estou sentindo, sobre a véspera e isso é dizer que tenho grande ansiedade, que não posso me atrasar, o cronômetro parece ir esgotando as horas a cada palavra que aqui deposito. É a véspera. Hoje jantarei com minha família. Mais cedo, durante a tarde, dois colegas buzinaram em despedida enquanto eu pedalava na ciclovia fazendo os testes finais, os alforjes cheios de roupas sujas e almofadas, fazendo simulações não muito precisas.

Testes feitos, jantamos e brindamos, que tenhas suerte! Cruzaremos cerca de seis mil quilômetros através da Patagônia, enfrentaremos os dias quentes e as noites frescas do litoral argentino. Assim será o início. Tento imaginar que vai ser sempre assim, já entrando em uma inevitável zona de conforto da qual todos estamos reféns. Um mês depois, sem muitas precisões, encontraremos a família, essa que aqui à minha frente brinda ao sucesso da aventura, quando já próximos à Bariloche, teremos a inversão e virão dias e noites frias. Depois disso, mais alguns meses.

Vamos, aproveite para comer, porque será um sacrifício durante a estrada. Rimos dessa vontade que faz com que nos coloquemos em situações extremas, como religiosos em peregrinação, desejosos, ardorosos em busca da redenção. Já viu o café deles, dizem que o café é muito ruim, é a tentativa calorosa de me fazer rir, e me contorço fingindo preocupações lembrando que esse era um ponto ainda não resolvido. Veja lá, não estão saindo muito tarde pra enfrentarem a região patagônica. É uma pergunta e há certo silêncio. Talvez peguemos carona, alguém falou que há um trem, ou se der na telha, mudamos os planos, paramos e ficamos. É a minha resposta, numa tentativa de justificar o fato de simplesmente querermos sair e tento esboçar o discurso de que não importa se conseguiremos chegar, temos nosso Norte, mesmo que seja para o Sul, e nessa ida haverá muitas histórias, as pequenos e as maiores, detalhes que estarão imersos no café cujo gosto suportaremos, camuflados em metáforas que vamos compreendendo aos poucos, e se dará a ausência disso ou aquilo, haverá o aprendizado que nos fará valorizar somente o que tivermos no momento. Estaremos abertos às experiências. Alguém aceita um cafezinho. É uma cortesia que ninguém recusa e começamos o movimento de despedida.

O tempo é ampulheta que vai se esgotando e os preparativos revelam já ter iniciado a contagem. Estou atordoado com a saída, tudo isso me deixa mais preocupado do que o normal e já me afeta de modo considerável. Atravessar a ponte é o momento que relaxarei e significará a confirmação daquilo que vinha rondando há algumas horas, dias, meses, ou seja: a expedição antecede a partida. Senti isso quando pedalava na ciclovia, com as bagagens todas instaladas, como que tentando um pouco de antecipação. Fingia ser o viajante distante, atravessador que fui nas viagens que me trouxeram a essa que virá, igualmente em bicicleta. Ali, em meio urbano, era um viajante na própria cidade, gostei disso, olhei com mais afinco para os detalhes que sempre vi, guardando novas impressões. Afinal, viajar é estar aberto, atravessar cotidianos com outros olhares. Naquela mesa da janta, encontrei uma família que me recebia como viajante e senti o acolhimento em meio às intempéries que me atingiam lá fora. Viagem não é distância, é um estado de espírito.

Quarta-feira, 7 de fevereiro, o dia em que finalmente me perguntei pra que servia mesmo tudo isso. Foi depois da janta, os vinhos chilenos que ambientaram a noite. Será que vou precisar pedalar na neve, perguntei pra mim mesmo, sozinho, nunca pedalei na neve. Cogitei responder que não servia pra nada, rindo ebriamente, não havia função que a definisse. Não. Não: é melhor esperar, ainda é cedo pra responder. É ler um romance. Página a página, com intensidades variadas: ansiedade pelo enredo, frustração pelo acontecimento, o drama das despedidas, a alegria da superação. Sentir uma obra de arte. É uma necessidade de sacudir a nossa falsa permanência, sentirmos a metáfora da própria vida, passageiros que somos. Viver, gritei, viver!

Fora do ônibus, através do vidro, me perguntam em gestos se estou levando o casaco. Faço a expressão de assustado, fingindo um falso lapso organizacional da véspera.

Entramos em movimento.

O cronômetro se esgotara, quebrou ao cruzar a ponte. TRAVESSIA KAIRÓS é o nome que levamos. Kairós é uma forma de contar o tempo, vem dos gregos. Veio a calhar. Kairós e Chronos. Abertura, oportunidade: kairós. E lá vem, vinte e sete horas de um momento intenso, presentificação de meus músculos que procuram uma posição confortável, aqui-e-agora de meus pensamentos, tantas palavras: sabemos que encontraremos diversos kairós pelo caminho. Com situações boas e ruins, é o percurso que viveremos e do qual lembraremos.

Acordo no Rio Grande do Sul. Será que conseguirei encontrar o Caio, pergunto, devíamos ter combinado melhor, ficamos de definir o lugar com maior exatidão. Adormeço, não, não há mais certezas no caminho.

Luã Olsen,

ILHA DE STA CATARINA,

07.02.18

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:: Travessia Kairós #2

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Sobre o autor

Luã Olsen é arquiteto e urbanista. Utiliza suas aventuras para experimentos literários, quando refaz a viagem para si e para o outro. Autor de TU, YO Y LA LUNA (2014), relato de sua viagem de bicicleta de Florianópolis a Buenos Aires, e INTERIORES (2017), sobre sua primeira cicloviagem, por Santa Catarina, cinco anos antes. Em 2018 realizou a TRAVESSIA KAIRÓS, pedalando através da Patagônia argentina e chilena, escrevendo suas impressões para o site da Alta Montanha.

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