Travessia Kairós #2

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Armamos as barracas por detrás de uma pequena elevação que nos manteve em segurança: estava expressamente proibido fazer acampamento por todo o bosque.

Atravessamos a estrada. Entramos todos no bosque, muito rapidamente, dito que ninguém podia nos ver. Com dificuldade, lancei meu veículo morro acima, numa areia coberta da relva típica da floresta de pinus, ainda assim de modo que afundavam-se os pneus. Caminhamos por cerca de cem metros distantes da via principal. Ali, entre montículos que formavam uma baixada escondida da vista de quem transitava pela estrada, o senhor se virou, afirmou que deveríamos estar cansados e comentou que chegávamos a seu esconderijo e que era onde ele passava os dias em que fugia das exaustivas obrigações sociais. Em dias como esses, ficava ali, dormia ao relento. Tinha casa e um compromisso agora. Repetiu que ninguém poderia nos ver entrando na floresta. Armamos as barracas por detrás de uma pequena elevação que nos manteve em segurança: estava expressamente proibido fazer acampamento por todo o bosque.

Havia ainda a luz do fim de tarde. Aproveitamos para descansar, após instalados. Separados por algumas árvores, cada um de nós atravessou um tempo imensurável em suas leituras, deitados com meio corpo pra fora, mirando as copas das árvores. Há sete dias que nem abríamos nossos livros. Além deles, somente nossos abrigos pesados contra o frio ainda não tinham sido utilizados. Fazia calor e as roupas de inverno estavam ao fundo, ainda sem previsão de uso. Quando o dia se dispersava, uma leve brisa flanava pelas noites litorâneas. Agora, os pássaros lançavam seus últimos encantos e um recorte de céu ainda podia ser visto.

Estávamos em Cariló, região pertencente à Pinamar, na costa litorânea da província de Buenos Aires, mas estávamos muito mais longe em nossos pensamentos.

Acostumbrarse, diluirse o tornarse viento y frio sobre ruedas de bicicleta”.

 

Entrava na capital portenha: 29h dentro de um ônibus ansioso. Mi Buenos Aires querida, cantou simbolicamente um casal de jovens, provavelmente recém saídos do veraneio da ilha de Santa Catarina, de minha cidade. Chegava à deles, cinco anos depois de ter me despedido dessa rodoviária, numa viagem em que cruzara a costa uruguaia de bicicleta.

Encontrei Caio e passamos mais um dia na cidade. E quando o domingo chegou, saímos encantados ao encontro da estrada, pedaleando um ritmo sem definição, de quem tem todo um ajuste de passos pela frente, sinfonia de acontecimentos primários: subimos e subimos o imenso viaduto que cobre e atravessa nas alturas os casebres que já são pequenos e se tornam, então, diminutos. Deixávamos lá embaixo os encontros imprevisíveis de quem ainda não entrara em viagem e sim planejara rotas de fuga e passagem. Estávamos a dezenas de metros acima dos infortúnios da periferia portenha.

Duas motocicletas da polícia encostaram em nossos frágeis veículos, no se puede pedalear acá. Teríamos que bajar, tomar la próxima salida e, para isso, seríamos escoltados. Deveríamos ir, agora sim, por baixo, por trechos complicados aos amadores que ainda éramos, costeando labirintos incertos. Era bom estar com sede novamente. Na estrada estávamos isolados de possíveis problemas, é claro, mas aquela zona de betume cinzento, as duas linhas paralelas que nos envolvem e nos tranquilizam, acabam nos tornando distantes da realidade plena. Ah, a saída das grandes cidades, tão complexa e contraditória, musa devoradora desses sentimentos ainda tão frágeis e ingênuos.

La Plata e Chascomús e os campings argentinos de vizinhança festiva. Moravam aqui durante a temporada, trazendo seus sofás, suas televisões, formando montículos urbanos temporários em parcelas muito bem divididas do solo. Dias de verão e noites com temperaturas amenas. Banho quente; amplos banheiros; a água, um problema, tem o gosto de soro caseiro, uma mistura de sal com açúcar: característica dos acampamentos que se estenderiam pela costa dessa província. Água devidamente orientada em placas espalhadas pelo local e que tornavam impensável o consumo para saciar a nossa sede.

E depois veio Lezama, Dolores, General Madariaga, Pinamar, Mar Azul, Mar Chiquita, cidades acompanhadas de trechos sem acostamentos, deslocamentos noturnos, pneus furados, novos problemas com os policiais, abrigo nos bombeiros, acampamentos à beira da estrada, mergulhos, o calor e o cansaço que trazia, ainda, os pequenos conflitos entre nós.

Foram os primeiros dias.

Acostumbrarse, diluirse o tornarse. Eram as anotações feitas por um grande amigo, em carta, que li assim que cruzei a ponte de Florianópolis. No dia de chegada à Mar del Plata, sentimos o vento intenso pela primeira vez. Vinha contra e nos impedia de seguir. Mas aos poucos vamos nos acostumando. Percebemos, que nessa adaptação, atravessamos um momento de cada vez, cidade por cidade, até que nos tornemos o próprio vento e mesmo o frio, nos tornemos a viagem em si. Com nossos modos de ser e conviver, entramos em sintonia aos poucos. Não atravessaremos somente a Patagônia, como esperávamos, ingenuamente. Cruzaremos um boa aclimatação antes: acima de tudo, atravessaremos a nós mesmos.

Luã Olsen,

MAR DEL PLATA – Argentina.

21.02.18

Veja mais:

:: Travessia Kairós #3

:: Travessia Kairós#1

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Sobre o autor

Luã Olsen é arquiteto e urbanista. Utiliza suas aventuras para experimentos literários, quando refaz a viagem para si e para o outro. Autor de TU, YO Y LA LUNA (2014), relato de sua viagem de bicicleta de Florianópolis a Buenos Aires, e INTERIORES (2017), sobre sua primeira cicloviagem, por Santa Catarina, cinco anos antes. Em 2018 realizou a TRAVESSIA KAIRÓS, pedalando através da Patagônia argentina e chilena, escrevendo suas impressões para o site da Alta Montanha.

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