O Rio dos Lírios Vermelhos

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Relato sobre a travessia Ciririca-Graciosa de 29/30 de Abril e exploração de parte das encostas deste trecho da serra em 14 de Junho de 2001.
Texto de Julio Cesar Fiori.


Hoje é 1º de maio e as bandeiras vermelhas do MST são
agitadas em marchas e demonstrações de força por todo o país. Eles querem
reforma agrária e lutam pela ocupação de terras improdutivas que no conceito
brasileiro são terras ainda não exploradas economicamente, tais como as
florestas ou fazendas que ainda não devastaram toda a sua área. Por este
conceito toda a Serra do Mar é improdutiva e escapa da invasão apenas pelas
dificuldades impostas pelo relevo.

Também estou quebrando uma tradição deixando de subir o
Anhanguava neste dia, mas aproveitando o feriado ensolarado para lavar, secar e
guardar todo o equipamento usado durante a travessia de um dos últimos trechos
ainda virgem desta mesma Serra durante o último final de semana.

Passavam um pouco das seis
horas da manhã quando a Solange nos deixou às margens da BR116, na entrada do
sítio do Ernesto, tradicional rota para o Ciririca. O Elcio Douglas
Ferreira aceitou guiar-nos nesta travessia que já fez por sete vezes, sempre
com alguma surpresa. Eu, Ele, Paulo Marinho e José Pioli
desviamos da casa cortando caminho pela barreira do tanque até mergulhar mata
adentro. Ultrapassamos o morro estranhando o bom estado do chão que é
tradicionalmente horrível neste trecho, muito escorregadio e cheio de
atoleiros. Não havia marcas de passagem recente pela trilha e o mato já cobria
o chão.

Atravessamos o rio com tanta
facilidade que gerou uma pequena confusão para achar o caminho na outra margem
e muito rapidamente superamos o outro morro chegando às portas do casebre do
Sebastião enquanto o dia amanhecia. Afixado na porteira um cartaz escrito em
péssimo português anunciava a cobrança de um real por pessoa. O vadio deve ter
achado que não valia a pena levantar da cama para cobrar o pedágio ou imaginou
cobra-lo em nosso retorno.

Passamos pelos gansos e
novamente entramos na mata sem sermos incomodados. Este trecho de floresta com
pinheiros sempre é muito agradável e o frescor da manhã o torna ainda melhor.
Às oito horas chegamos nos limites do sítio do falecido João Vicente e pulamos
a cerca porque encontramos o passador fechado e uma grande picada aberta acompanhando toda sua extensão. Todo o
terreno encontra-se roçado e loteado por várias cercas de arame farpado.

Muitos casebres foram e
continuam sendo erguidos por aqui. Na porteira do sítio um novo cartaz cobrando
pedágio e ao cruzá-la a filha do finado apareceu mais que depressa para
cobrá-lo. Pegou o dinheiro e nos informou para das próximas vezes usar a
primeira entrada depois do novo posto de gasolina , evitando passar pelo
casebre do Sebastião e pagar outro pedágio, encurtando o caminho em meia hora,
podendo inclusive deixar o carro estacionado dentro o sítio por cinco reais. É
o fenômeno da globalização chegando via televisão aos mais isolados rincões do
Brasil.

Enquanto somos cercados por
uma dúzia de cachorros famintos, barulhentos e devorados por enormes
carrapatos, lembro da Bolinha nossa fiel companheira de outras épocas e das
muitas vezes que passamos por aqui rumo ao Tucum ou ao Ciririca. Não haviam
barreiras, cumprimentava-se os caboclos e na volta oferecia-se algum presente,
bolachas, sopão, macarrão ou chocolate, até roupas. Sempre com valor superior
ao R$ 1,00 que eles agora cobram.

Existiam apenas as três
casas citadas entre a BR116 e as montanhas, o restante era mata. Terra
improdutiva conforme o estatuto da reforma agrária que veio no decorrer dos
anos sendo loteada por uma legião de mal trapilhos que devastam ilegalmente a
floresta para vendê-la como lenha. Acompanhando estes acontecimentos acho
difícil para um verdadeiro ecologista aceitar qualquer ocupação de novas terras
por seres humanos sejam eles fazendeiros ou integrantes do MST.

Sinto que já é tempo de
mudar este conceito de improdutividade da terra, oferecendo benefícios aos
fazendeiros que voluntariamente formarem reservas naturais. Aperfeiçoar e
incorporar os ganhos de produtividade decorrentes da engenharia genética com os
trangênitos e afins para encolher as fronteiras agrícolas salvando o pouco que
ainda existe da obra de Deus na terra e permitindo que Ele restitua sua
natureza no que puder ser devolvido à sua guarda.

Subíamos tranqüilos o morro
do taquaral pelas margens do ribeirão Samambaia enquanto desenvolvia estes
pensamentos e novamente fomos surpreendidos por outra cerca de arame farpado
acompanhada de larga picada rasgando a floresta e cruzando desrespeitosamente o
rio e a trilha, deixando-me ainda mais indignado.

Em pouco tempo vencemos o
divisor de águas e descemos a face oposta parando para descansar e reabastecer
perto do poço das fadas no rio que nasce entre o Tucum e o Camapuã. O Elcio preparou
seu super suco de maracujá, sacamos os sanduíches das mochilas e durante vinte
minutos calmamente apreciamos a inércia do corpo.

Realimentados iniciamos a
subida pelo afluente da esquerda. Levei uma bengalinha de alumínio para não
forçar demais o tornozelo direito que vem me incomodando durante as últimas
semanas, mas depois de passado o mirante do Ciririca e iniciada a descida esta
precaução de pouco adiantou. A inclinação é muito forte atingindo seu ponto
máximo na pedra da corda e o tornozelo doía a cada passo levando-me a apoiar
meu peso mais na perna oposta.

Passamos batido pelo rio que
nasce entre o Tucum e o Cerro Verde, pelo ribeirão do laguinho e pela cachoeira
do professor. Esta rampa é interminável e monótona. Ouve-se barulho d’água por
algum tempo, depois tudo volta ao silêncio. Próximo do rio subterrâneo volta-se
a ouvir o ruído das corredeiras até ultrapassá-lo. Duas horas depois passamos
pelas grandes pedras e chegamos ao último rio, onde se cruzam as trilhas alta e
baixa.

Paramos para repor as
energias e comentar as lembranças. Foi aqui que acampei com a Juliana e o Pioli
na primeira vez que a trouxe ao Ciririca em 1997, também havíamos passado
recentemente quando da última vez chegamos do Pico do Luar com o Primata, o
Pioli, o Paulo e a Juliana num passeio maravilhoso em que até o tempo
colaborou. Poucos metros adiante a trilha sai do mato e ultrapassa uma área de
campo com visão livre para todos os lados onde nos separamos.

Fiquei para trás por razões
fisiológicas das quais logo me desvencilhei, mas deixei-me ficar um pouco
aproveitando a preguiça daquele início de tarde ensolarado até que vi o Elcio e
o Pioli escalando os contrafortes da montanha, já acima da linha das árvores.
Lentamente me coloquei a caminho, desci a última fenda, enchi o cantil com
aquela água gelada e cristalina, bebi tudo o que podia e iniciei a subida do
último talvegue aproveitando o conforto da sombra das árvores que logo
desapareceriam.

Subir o Ciririca nunca foi
coisa fácil, quando chega-se nele o cansaço já esta acumulado por horas de
caminhada. Depois de ultrapassado as árvores, por volta do meio dia com o sol a
pino, as pedras viram uma frigideira e as caratuvas fazem pouca sombra. Meu
joelho esquerdo doía mais que o tornozelo direito e não vale a pena olhar para
o cume porque a inclinação jamais permite vê-lo. Subi a encosta repetindo;
calma, calma, vamos subindo bem devagar, não tem pressa nenhuma, devagarzinho
chego lá.
Ao pisar no cume parei para contemplar aquela
paisagem magnífica e ajoelhei-me em agradecimento ante o privilégio de
novamente testemunhar aquela beleza. O Pico Paraná imponente do outro lado,
tudo banhado em luz, o verde esparramando-se por entre os vales, a cascata do
rio Cacatu despeja alva espuma sobre as pedras cor de ferrugem. Ainda emocionado continuei caminhando em
direção à segunda placa onde os companheiros já se encontravam descansando da
extenuante subida.
O Paulo e o Elcio
posicionaram-se sobre a placa enquanto o Pioli largateava deitado ao sol. Tirei
a mochila e deitei à sombra da placa. Enquanto descansávamos pudemos comprovar
o sucesso da iniciativa do Pioli em semear lírios nesta região, pois ao nosso
lado estavam três caules sadios e perfeitamente enraizados que haviam florido há
poucos dias atrás espalhando suas sementes adaptadas pelo alto da serra.
Às três e meia iniciamos a
descida da face oposta em direção ao Agudo da Cotia. O Paulo viajando na
maionese queria acampar no cume do Agudo enquanto nós, mais realistas,
preferimos uma elevação distante meia hora do cume e mais próxima da água.
Descer esta face do Ciririca faz parecer brincadeira subir a outra. Muito
parecida com a descida do Tucum pelo mesmo lado, mas muito mais extensa e
perigosa. O joelho e o tornozelo não queriam ajudar.

Em dois pontos
particularmente chatos foram instaladas umas cordas com nós para vencer o
desnível nas pedras. No primeiro a corda de nylon está toda recoberta de um
limo verde e gosmento que torna impossível o seu uso, mas no segundo a corda é
de grande valia. Toda a encosta é muito inclinada e recoberta por caratuvas e
taquaras. O solo é composto por turfa sempre encharcada e escorregadia. A vista
dos Agudos da Cotia e do Lontra são estupendas.Chega-se muito próximo dos
precipícios do Lontra e os restos do avião são facilmente identificáveis antes
de penetrar nos valos arborizados do platô. Toda uma grande área de aparência
plana, limitada por montanhas e precipícios ao sul, leste e norte e pelo
profundo vale do rio Forquilha pelo oeste separam o Ciririca do Cotia. É plana
apenas na aparência, pois é toda recortada por valas de largura variável com um
metro e meio a três de profundidade onde correm lindos e rasos regatos de águas
cristalinas por entre pedras recobertas de limo.

Continua em ” O Rio dos Lírios Vermelhos”………..parte 2

A vegetação é muito
peculiar, composta de arbustos retorcidos com os troncos cobertos por um musgo
ressequido e copadas muito duras, niveladas pelo vento na altura das bordas. O
fundo destas grotas é recoberto por folhas secas e perigosas bromélias com
altura de 1,20 metro e folhas em forma de espadas com dois gumes afiadíssimos e
cortantes feito navalhas e um esporão venenoso na ponta. São grandes ouriços
com centenas de espinhos prontos para cutucar o corpo, ferir as mãos e furar os
olhos dos incautos.
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Sobre o autor

Julio Cesar Fiori é Arquiteto e Urbanista formado pela PUC-PR em 1982 e pratica montanhismo desde 1980. Autor do livro "Caminhos Coloniais da Serra do Mar", é grande conhecedor das histórias e das montanhas do Paraná.

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