Começamos a caminhar, e só sei que a cada passo que eu dava rumo ao retorno a angústia de ir embora aumentava. O que foi interessante observar na volta é a quantidade de árvores que haviam caído pela trilha. Acho que mais de dez árvores de grande porte, que levaram pelo menos um dezena de pequenas árvores junto. Isso porque o solo da floresta realmente é muito pobre, sendo formado, em sua maior parte, por meio metro de húmus, seguido de areia e argila, o que faz com que a fixação das raízes das árvores seja superficial.
Rapidamente, percorremos os 12 km até Bebedouro Velho, onde encontramos 6 garimpeiros acampados, indo em direção a Maturacá, comprar mais rancho (comida). Eles estavam almoçando, e como não tínhamos comido nada, o cheiro da comida foi tentador. Mas, uma dose de Semancol fez com eu controlasse minhas lombrigas e não atacasse a panela. Mas ao olhar para o lado, qual não foi a minha surpresa e tristeza ao olhar para um corte de veado. Olhei ao redor: eu era o lado mais fraco e desarmado. Engoli a seco aquela angústia e fiquei quieta. Mas me coloquei a pensar: os caras estão ali por que querem e acham que um dia ficarão ricos (alguém conhece um garimpeiro rico?), eles não podem alegar que precisam caçar por sobrevivência, pois estão ali por opção!
Mas infelizmente, como pude notar no resto da expedição, a caça na Amazônia não é questão de sobrevivência, e sim opção de muitos mesmo, inclusive daqueles que vivem na cidade e tem o conforto do mundo urbano ao seu dispor. Para mim essa foi a pior e mais difícil parte de toda a caminhada. Dei um sorriso amarelo e fingi estar tudo bem e normal. Eu e a Nasaré estávamos nos sentido estranhas ali no meio e um tanto que observadas, então resolvemos ir caminhando na frente, dizendo que íamos ao banheiro (e realmente fomos, pois foi o primeiro xixi do dia).
Mais algumas horas caminhando sob o sol, com a roupa quase sequinha, adivinha quem aparece? A chuva…. de novo! Apesar do objetivo do dia ser a Cachoeira do Tucano, todos tinham em mente alcançar a Boca do Tucano naquele dia mesmo, o local aonde a caminhada começou. Um dos garimpeiros acabou vindo com a gente, a fim de pegar uma carona na voadeira até Maturacá.
Chegamos na Cachoeira do Tucano sob forte chuva, com o rio que tinha que ser atravessado ainda enchendo. Na outra margem deste rio, localiza-se o sítio de uma família yanomami (local aonde eles plantam banana, mandioca, fazem farinha) e onde estava uma pequena yanomami muito fofa, Jamile, que na ida já tinha encantado todo mundo com seu sorriso. O Rodrigo me deu alguns chocolates Bis, para que eu levasse para elas (a irmãzinha da Jamile também). Foi o suficiente para a família sair da casa, deixar a gente tirar fotos e trocar alguns sorrisos (pois as crianças não falam o português e os adultos falam muito pouco). Quando olhei para as meninas comendo o chocolate, vi que não tinham tirado o papel. Tirei o papel para elas e elas devoraram os chocolatinhos.
O sítio daquela família está localizado a pelo menos um dia andando bem rápido de Maturacá, ou a algumas horas de caminhada e voadeira da comunidade mais próxima. Parece a foto de uma moradia indígena da época do descobrimento do Brasil. Com aquele sorriso mais fofo do mundo na cabeça, seguimos em direção a Boca do Tucano, a qual foi alcançada depois de mais ou menos duas horas. Foram os últimos passos dentro da floresta. Confesso que fiquei feliz de ter chego, mas triste porque passou muito rápido e eu queria mais (snif…snif…) O último banho de igarapé foi muito bom, apesar de o rio ter enchido muito e logo na margem já não ter mais pé. Jantamos e fomos dormir.
02/02/2009 – 12º Dia
Como adiantamos um pouco a caminhada, podíamos dormir até mais tarde, pois a voadeira só chegaria lá pelas dez horas. Fiquei na rede um pouco mais, mas tive que levantar logo senão não sobraria café para mim. Uma das coisas boas desse dia foi não precisar colocar a roupa molhada da caminhada! Tudo arrumado na mochila, só restava esperar. Nove horas… dez horas… onze horas… doze horas… e a voadeira não dava nem sinal de vida. Será que tinha acontecido alguma coisa? Algum problema com o motor? Os yanomamis se revoltaram? Fomos abandonados? Puutz…não tinha mais comida!
Maturacá estava a pelo menos um dia de caminhada rápida e sem carga. Talvez construir uma jangada. Sussi. Tudo se resolve uma hora. Enquanto isso, os xitas pegaram suas linhas, algumas minhocas e foram pescar. Mas pescaram só um peixe. Comeram tudo e nem ofereceram para ninguém. Deixe. Eu nem queria mesmo…
Um pouco depois das treze horas, eis que surge do além nossa querida voadeira. Embarcamos rapidamente e seguimos viagem. Estava prevista a pernoite em Nazaré, uma comunidade yanomami. Mas o pessoal preferiu tocar direto até Yá-Mirim, e dormir por lá mesmo. Eu até queria dormir em Nazaré, mais pela cultura yanomami mesmo, mas como eles não são tão amigáveis, não insisti muito.
A viagem de volta na voadeira foi tão incrível quanto a ida. Tentava prestar atenção em todos os detalhes, a fim de gravá-los para sempre na minha memória. Só não pude ir conversando com o Osmar, pois a voadeira levava mais alguns yanomamis, E o pior é que eu estava cheia de perguntas sobre os yanomamis! Mas tudo bem, da próxima vez eu pergunto. Eu e a Nasaré fomos conversando em boa parte da viagem. Só paramos de falar quando ela dormiu um pouco. O Rodrigo e o Izaias também dormiram. Eu não consegui. Tinha que ver tudo aquilo. Eram os últimos instantes percorrendo aqueles rios, não podia perder nem um segundo.
Paramos em Nazaré, aonde embarcou uma senhora yanomami, que estava indo para SGC, pois estava com malária e precisava de tratamento médico. Seguimos viagem até Yá-Mirim, como planejado, chegando lá junto com o fim do dia. Pretendíamos dormir na margem deste rio, mas o local já estava cheio de yanomamis. Então procuramos abrigo na estrada, na casa do Kiki, que gentilmente permitiu que armássemos as redes lá. O Armindo, Osmar e os outros dois yanomamis que vieram na voadeira com a gente dormiram em uma casa próxima.
Lá perto da casa do Kiki tinham vários cachorros. Acabei fazendo “amizade” com um, e enquanto brincava com ele não pude deixar de ver o buraco enorme que ele tinha nas costas, cheio de larvas de mosca. Sem exagero, aquele buraco devia ter uns 3 cm de profundidade por uns 2 cm de diâmetro. Como já estava de noite, a hora em que bati a lanterna, as larvas se agitaram, tinha algumas dezenas de larvas lá dentro. Não tinha uma pinça para tirar aqueles bichos de lá e nos meus “Primeiros-socorros” não tinha nada para “bicheira”. Perguntei para o Beto (índio Tukano que ajudava o guia) o que poderia colocar ali. Ele sugeriu fumo com alguma coisa que não lembro. Mas eu também não tinha fumo, e se eu fosse pedir para os yanomamis sabe lá qual seria a resposta que ganharia.
O Kiki então escutou e disse que tinha Creolina e que eu poderia usá-la. Peguei o cachorrinho e passei Creolina, coitado, pois dói demais. Obviamente, ele saiu correndo. No outro dia, fui dar uma olhada, para ver se ainda tinha muitas larvas lá. Boa parte tinha morrido, mas ainda tinha algumas sobreviventes. Fui pegar a Creolina, e quando o cachorro me viu com ela na mão, saiu correndo e desapareceu. Nem se despediu!
03/02/2009 – 13º Dia
Quando acordamos, uma notícia triste nos esperava. Um dos porquinhos do Kiki tinha sido vítima de morcegos durante a noite e estava agonizando. Fiquei ajudando o Kiki a dar água com açúcar para ele, para tentar reanimar o coração, mas depois de uma meia hora agonizando, ele não resistiu e morreu. Agora, era esperar a Toyota chegar. Se ela chegasse, pois isso é sempre uma incógnita, devido às condições da estrada. E, como usamos o último arroz e feijão na janta, estávamos sem comida e ansiosos para escutar o barulho do motor.
E lá por volta das dez horas, chegou nossa carona. Subi na carroceria com saudades de tudo que havia acontecido por lá. A estrada estava um pouco pior do que na ida (por impossível que possa parecer), havia mais umas duas Toyotas estragadas no caminho, alguns empurrões em atoleiros, uma chuvinha para não perder o costume e enfim, SGC novamente! Ao chegar na cidade, a Nasaré correu comprar umas latinhas de Coca-Cola e fizemos um gostoso brinde geladinho!
A reserva no hotel estava apenas para o dia seguinte, mas por sorte conseguimos pegar as últimas vagas. Estabeleci contato com o pessoal de casa, tomei banho, coloquei umas roupas para secar e fomos almoçar lá no Seu Manoel Maria. Nossa! Comi pra caramba! Durante o resto do dia, ficamos passeando pela cidade.
04/02/2009 – 14º Dia
Acordei um pouco mais tarde, tomei um bom café da manhã e fomos para a feirinha da cidade. Lá encontramos o Armindo e o Osmar, que estavam comendo um super prato de peixe com farinha (esses yanomamis comem muito mesmo!). Vimos alguns artesanatos, imprimimos algumas fotos para que o Branco as entregasse aos xitas, para a família da Jamile, para o Kiki e para o Beto, almoçamos e passeamos pela cidade. Na verdade, a gente já conhecia a cidade inteira, pois ela não é grande, e por mais que você ande acaba caindo no mesmo lugar.
No final da tarde, fomos para a praia e caímos nas águas do Rio Negro. Poderia ser um banho de despedida, mas foi um “volto logo” mesmo. Ah é! Minha única peça de roupa limpa e seca era o vestido que estava usando. Agora era a única peça de roupa limpa, porque entrei no rio com ele. E como era feito de um tecido muito resistente, adivinhe se não rasgou? Pois é. Que mico! Fiz um nó que disfarçou bem o rasgo, só não dava para andar direito (ainda bem que era um vestido meio comprido). A sorte é que na hora em que saímos do rio até o hotel caiu a maior chuva e as ruas ficaram bem vazias.
Chegamos no hotel e deixei o vestido secando. Para minha sorte (de novo) a Nasaré é uma moça prendada e costurou o vestido para mim! Ufa! De noite fomos comer pizza no Restaurante Lanchonete Pizzaria Selva´s Drink. Eu e a Nasaré estavamos sem sono e ficamos andando na cidade por mais um tempo.
05/02/2009 – 15º Dia
O último dia em SGC! Acordei cedo para ir até o 5º Batalhão de Infantaria de Selva (BIS). A intenção era reclamar sobre o lixo descartado pelo exército e ver as onças que eles mantêm lá. Quem atendeu foi o Sargento Edemilson, e foi questionado sobre a exorbitante quantidade de lixo descartada pelos militares no decorrer da trilha e acampamentos, mas o que escutei foi apenas uma desculpa esfarrapada e desconexa: “Ah… é que a gente também dá aquela ração para civis… e daí acontece isso”, “Mas os yanomamis já formalizaram uma queixa e… é… estamos vendo isso… mas o Major está ocupado agora… Silva, acompanhe a moça até a portaria… Até logo, quando voltar a São Gabriel, você pode vir aqui ver as onças”.
Resposta típica das autoridades brasileiras. Voltando para o centro de SGC, fui na feirinha e comi um peixe assado no espeto, que estava delicioso! E fui até a praia curtir mais um pouco daquele visual maravilhoso. Voltei para almoçar e retornei a praia. Agora era arrumar a mochila e ir para o aeroporto, com destino a Manaus. Durante o vôo, as últimas olhadas na floresta com seus rios desenhados deixam um gostinho de quero mais.
O avião aterrissou em Manaus as vinte horas. Meu vôo era só às três horas da manhã, do Rodrigo as quatro, da Nasaré as treze e o Izaias estava de carro. Fomos passear pela cidade. Nada de muito interessante, a não ser o porto, de onde partem as balsas para as demais cidades. Por volta da uma hora da manhã, voltei ao aeroporto e embarquei com destino a Curitiba.
Nem vi o avião decolar. Fechei os olhos e assisti tudo o que havia acontecido nos últimos dias, com a certeza de que nada no mundo poderia ter valido mais a pena, prometendo a mim mesma que volto para lá em breve, pois talvez tenha encontrado meu lugar no mundo.