Pico da Neblina – Parte 3

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Partimos às 7:15, do acampamento montado na prainha às margens do Cauaburis e chegamos na boca do Maturaká às 8:15, lá permanecendo enquanto Arlindo leva Deisi, Flavia e os outros três yanomamis pra aldeia. Aproveito e mergulho na fresca água cor de caramelo do igarapé Maturaká cuja nascente é no pico da Neblina.


Leia a segunda parte.

Borboletas amarelas, azuis e vermelhas descansam na areia branca da praia. Enquanto esperamos o retorno do barqueiro de Maturaká, Pepe Legal, deitado na rede que esticou entre duas árvores, explica que pra caçar onça, os yanomamis matam um macaco e deitam o bicho no ombro pra atrair o felino. Alguns, mais desavisados, são mortos porque não percebem a fera se aproximando. Apenas uma espingarda indica que alguém um dia a carregou. E o guia, animado pela atenta platéia, conta, então a estória do vestido de noiva de Deisi. O noivo da guria foi a São Gabriel uns dias antes do casório buscar algumas coisas, dentre elas o tal vestido. Na noite anterior a sua volta a Maturaká, pra comemorar seus último momentos de solteirice, tomou um tragoléu dos bons e voltou pra aldeia sem a vestimenta de Deisi. Resultado: o casamento teve de ser adiado até que o tal vestido (Deisi me disse que era rosa), chegasse, finalmente, em Maturaká. Coisas de yanomamis.

Às 10 horas, o trepidar do motor da voadeira anuncia a chegada de Arlindo e Messias. Embarcamos e lá nos tocamos até a Boca do Tucano (boca significa foz aqui no Amazonas), afluente do Caiaburis, cuja nascente também se localiza no Neblina. Muitas nuvens no céu, embora não comprometam a presença solarenga do astro-rei. Da serra do Baruri, quase totalmente enevoada, pouco se vê, entretanto. Duas garças, uma branca, outra cinza-azulada brincam de pega-pega com a voadeira. Voam na frente, pousando em algum galho de árvore ou numa das inúmeras praiazinhas existentes ao longo do curso do rio. Quando a canoa se aproxima, levantam vôo, tomando a dianteira. E assim esse joguinho se prolonga por algum tempo. Em ambas as margens, dá pra perceber enormes tocas de tatu, caça muito apreciada pelos yanomamis.

Martins pescadores, exibindo plumagens dum azul elétrico, dão rasantes rentes à superfície d’água. Bandos de pequenos pássaros pretos disparam céleres duma margem a outra, em formação compacta. E pares de tucanos de esplêndida plumagem azul e vermelha voam pra lá e pra cá, naquele matraquear nervoso de quem se sente invadido em seus domínios. Refletidos no Cauaburis, gorduchas nuvens amontoadas no céu e galhos de árvores projetam imagens brancas, azuis e verdes no espelho liso da água do rio. Por entre as sinuosas curvas do Cauaburis, avistam-se, aqui e acolá, as serras que povoam esta região do noroeste do Amazonas.

Grandes troncos retorcidos de árvores formam belíssimas esculturas, remetendo àquelas colecionadas pelas mãos zelosas de Krajcberg. O rio, desde Maturaká, apresenta maior número de prainhas de areia fina e clara. Isso decorre dum fluxo menor de igarapés alimentando-o, diminuindo, assim, sua vazão. Chegamos à Boca do Tucano às 12:50, depois de percorridos 280 km rio acima. Devido ao pouco volume d’água do igarapé Tucano, somos obrigados a saltar da voadeira e caminhar uns 200 m ao longo de seu leito até o local onde há duas palhoças, sem paredes, uma com teto de palha e outra, menor, protegida com lona azul. Messias, um jovem yanomani de 22 anos, deveras faceiro, usa um brinquinho numa das orelhas e um grande relógio no pulso esquerdo. Ele será meu carregador e a quem recorrerei para saber as horas, porque a pilha do meu acabou. Não serão poucas as vezes que lascarei “As horas, meu jovem, que horas são?” Os carregadores acomodam o tralharedo numas cestas que levam às costas – os jamaxis -, tecidas com cipó titica, fibra super resistente, empregada, aliás, na maioria dos artefatos yanomamis.

Pepe, nosso guia, é paraense de Santarém. Negro, alto, magro, é super gente boa, prestativo demais. Eu o apelidei de o incansável e safado Pepe Legal. Safado porque é matreiro e femeeiro demais. Haja vista a estória que nos contou duns soníferos que dava pra ex-mulher quando queria sair pra farra. Esses homens safados, têm lá o seu charme, o seu encanto, hehehe! Os demais carregadores são Orlando, Delegado, Bosco e Auderiano, todos yanomamis. Messias é o caçula do grupo e fica todo orgulhoso quando digo pra ele, após ter assuntado a idade dos outros.

Enquanto as bagagens são arrumadas, os yanomamis comem uma carne de tatu. Peço pra prová-la. Sabe a fígado de galinha apesar ser bem gordurosa. Saímos às 14:10 da Boca do Tucano, chegando no Pau da Arara às 15:10 onde descansamos. Tomo banho no córrego porque caminhada enxarcou de suor meu corpo. Muitas helicônias embora tenham as folhas maiores do que as existentes na mata atlântica, exibindo uma florescência, porém, bem mais modesta. Durante o caminho, uns montículos de terra atraem minha atenção. Pepe explica que são feitos de cocô de minhoca. À medida que elas escavam seus túneis, engolem terra para após defecá-la, formando morrinhos semelhantes aos castelos de areia feitos, desajeitadamente, pelas crianças nas praias. Quando a terra é nova, a cor é amarela, quando endurece torna-se cinza ou preta.

Uma trilha plana, em cujo chão forrado de folhas secas, aflora muita raiz de árvore. É uma floresta tropical fechada, formada em boa parte por árvores de elevado porte e tronco fino, embora uma que outra apresente tronco largo, grosso, como a sapucaia. As árvores situam- se próximas umas das outras, motivo por que não há muita vegetação rasteira, acrescida pela pouca penetração da luz solar.

A floresta amazônica, infelizmente, sofre o ataque predatório dos biopiratas que obtém ilegalmente amostras de plantas e de animais com o objetivo de desenvolver substâncias, registrando patentes cujos lucros, nem preciso dizer, serão bilionários. E se tal acontecer, nós teremos que pagar para utilizar algo cuja matéria-prima é originária do nosso país….dá pra acreditar? Infelizmente, não tenho a sorte de avistar o macaco guariba, ouço apenas seus ruídos ecoando na mata. Nossa próxima parada é o Polar, onde um córrego de águas rasas mal permite um mergulho. O lugar assim é chamado devido à farra que os garimpeiros faziam, indo ou voltando do garimpo, enquanto reabasteciam as energias bebendo uma breja.

Levamos mais meia hora até a cachoeira do Tucano, totalizando um percurso duns 7 km. Dispostas uma frente a outra, encontram-se duas casinhotas de palha onde habitam três famílias yanomamis. Nessa época do ano, elas se mudam pra Maturaká porque as aulas das crianças já iniciaram. Cultivam nesse sítio mandioca (pra farinha), pupunha, banana, laranja e macaxeira (o nosso aipim). Nosso acampamento está do outro lado do igarapé Tucano, onde encontramos, abrigados sob uma espaçosa palhoça, garimpeiros deitados em redes. Destaca-se, entre eles, o mulato Carioca, que me chama, gentilmente, de madama. Maranhense, costuma garimpar ouro na Venezuela, pois no parque atividades de mineração estão proibidas. A viagem ao país de Chavez dura 4 dias no meio da selva.

Carioca me ensina que carapanã é o mosquito que ataca de noite e pium durante o dia. Acompanha-o, Dark, assim apelidado porque reluz de tão preto. O rapaz arde em febre e Carioca diagnostica sem piscar: “Foi o siso que ele arrancou em Maturaká”. Acho estranho e observo que extração de siso não provoca febre, deve ser malária. Carioca teima, afirmando que não é malária, não. Assim deixo quieto. Com pena, dou-lhe dois Tylenol (se mercenária fosse, poderia ter trocado o antitérmico por uma pepitinha do dourado metal, pois remédio aqui vale ouro). Quando retornamos a S. Gabi, Dark que lá se encontra, confirma que, de fato, está com malária. Até que pruma profissional do Direito, dou uma boa médica, né?

Bebedouro Novo

Saída, do acampamento na cachoeira do Tucano, às 8 horas cuja altitude é de 106 m. Passamos por um trecho queimado de mato onde antes houvera uma roça de mandioca cultivada pelos yanomamis. Eles acenderam um acero que saiu fora de controle, pegando fogo na plantação. Foi, contudo, de pouca monta o estrago.

Agora a coisa complica porque tem início um aclive já que o desnível até Bebedouro Novo, onde acamparemos, será de 764 m. Daqui pra frente, portanto teremos uma trilha que se tornará cada vez mais íngreme, caminhando pela crista duma serra cujo nome Pepe desconhece. Ely, coitado, ganhou, ontem, bolhas em ambos os calcanhares e caminha com visível dificuldade. Quando as furou não as costurou (um método de drenagem que consiste em pegar uma agulha com linha, passando-a dentro das bolhas, e deixando lá dentro o fio pra drenar o líquido). Marcelo, também, está com bolhas, devido aos coturnos militares que calça.

Sua situação, contudo, é mais confortável que a de Ely porque fez o procedimento correto de costurá-las. A trilha mantém-se coberta de folhas secas e raízes. Enormes cupinzeiros pendurados nas árvores. Pouca claridade, somente algumas résteas de sol dão pinta na mata. A vegetação densa, formada pelas frondosas copas das árvores, impede que a luz solar incida com generosidade na floresta. Uma subida com uma pegada forte, um trecho plano, uma descida e assim vamos até o Bebedouro Velho onde aportamos às 10:24.

Nos abastecemos de água, num pequeno poço que se alcança após descermos uma senda bem íngreme. Por precaução, pingo algumas gotas de cloro na garrafa. Uma fundação de cimento e algumas estacas metálicas, abandonadas num canto, são vestígios duma tentativa feita pelo exército em construir um posto nesse paradouro. Irritados, os yanomamis estrilaram motivo por que a obra não foi avante. Avista-se daqui outro ângulo da serra do Baruri com seus paredões pelados. Uma pena que a névoa que a envolve não permita uma boa foto.

Os yanomamis e Pepe usam botas sete léguas pra se proteger de botes de cobras. Aliás, os garimpeiros, igualmente, usam esse tipo de calçado como proteção ao ataque das víboras. Todos que transitam pela selva, temem demais esses bichos. Se mordidos, babaus, baterão com a cola na cerca, porque soro antiofídico só em Maturaká ou em São Gabriel. O ruído feito por certas árvores muito altas, como a peroba, lembram roncos de animais. Uma coisa impressionante de se ouvir!

Após uma hora caminhando, paramos na Boca do Gavião, porta de entrada pra serra de mesmo nome onde, segundo Pepe, houve atividades de garimpo quando a mineração ainda não era proibida por essas bandas. Agora o caminho se faz plano, sem muitos obstáculos até a Cutia, onde chegamos às 13 horas. Uma breve parada, mais necessária pros yanomamis descansarem do peso que carregam. Pepe Legal joga em três posições: é guia, carregador e cozinheiro. Considerando a limitação da comida oferecida (arroz, massa, feijão e calabresa), consegue torná-la apetitosa. Pode ser ainda que a fome seja o melhor tempero porque após as duras caminhadas, essa é a única refeição decente do dia, haja vista que o desjejum consiste de mingau de aveia, leite, café e bolacha, e o almoço, duma frugalidade franciscana, compõe-se das indefectíveis bolachas, regadas a suco. É pra inchar o estômago mesmo, hehehe.

Enquanto caminho, escuto as copas das altíssimas árvores farfalhando ao vento, embora quase não se sinta seu movimento dentro da mata, a não ser por uma esporádica brisa que agita, delicadamente, a vegetação. Incrível, a densa floresta atua como uma poderosa muralha à ação enérgica das correntes de ar. Pra agitar as entranhas desse reino vegetal, só um tufão! Barulho dum pássaro cujo ruído lembra o duma serra. Galhos partindo-se. Será uma onça me seguindo? Ai ai ai.

Depois duma subida mais áspera, largamos as mochilas e nos sentamos pra almoçar no paradouro do Macaco onde chegamos às 14 horas. Quando a gente pára, pequenos insetos, atraídos pelo odor de sal destilado pelo suor, entram nos olhos… um saco! Após o almoço, enfrentamos nova subida até o paradouro do Romualdo cujo aclive é mais empenado que o da etapa anterior. São quase 16 horas e faço uma pausa pra apreciar uma interessante formação rochosa que lembra as patas dum leão, disposta sob uma concavidade rochosa coberta de limo. Pepe Legal aponta, entre as inúmeras árvores ao longo da trilha, a paxiúba, uma palmeira de tronco fino com raízes aéreas, formando um tripé com diversas pernas. Daí a lenda de que essa árvore anda pela mata, segundo contam os yanomamis. Seu tronco cheio de espinhos é usado pra ralar a mandioca.

Às 17 horas, chegamos, enfim, ao Bebedouro Novo, numa trilha onde as subidas são mais frequentes que as descidas, entremeada aqui e ali por breves trechos planos. Somos recompensados, após a extenuante caminhada, com a visão da face sul do Pico da Neblina, de topo piramidal, e da do 31 de março, cujo cume, bem sem graça, é achatado. Fazendo jus ao nome, o Neblina encontra-se envolto por filamentos de nuvens que, não obstante, permitem seja ele razoavelmente visualizado. Perpendicular a esses dois picos, localiza-se a serra do Camelo, uma formidável estrutura rochosa cujo formato lembra o daquele animal. Exibe em seu escuro paredão sul, zonas peladas cuja tonalidade clara evidencia a cobertura de líquenes brancos. Tão lindo ele! Bem mais que o Neblina. Preferiria, agora que o conheço, subi-lo ao outro mais famoso.

Mas os encantos do Bebedouro Novo não param por aqui. O rio Cuiabixi, cuja cabeceira nasce na Venezuela, passa a 200 m do acampamento e pra lá nos dirigimos. Suas águas frias e límpidas são um convite ao banho depois da longa pernada de 9 horas sob a tórrida temperatura que enfrentáramos ao longo do dia. O rio me faz lembrar aqueles que atravessam os canions de Praia Grande, município do estado de Santa Catarina, famoso por seus impressionantes peraus. Por entre as inúmeras pedras arredondadas que adornam seu leito, eis uma cascatinha, formando deliciosa piscina de hidromassagem, onde, imersos, Marcelo e eu relaxamos, deixando jorrar o forte jato d’água em nossas mal tratadas costas.

Após a janta, já deitados em nossas redes, peço a Pepe que conte uma de suas estórias. Ele não se faz de rogado, acomoda-se melhor em sua rede e, com seu sotaque gostoso de nortista, conta o causo dum certo general que resolveu oferecer um piquenique a sua mulher e filha no topo do Neblina. Para tanto, deslocou de São Gabriel um pequeno contingente de soldados como suporte a tal festim. E Pepe, malicioso, acrescenta que a comilança tinha do bom e do melhor. Até uva, gente! Poxa!! Depois dessa, pego meu saco de dormir pois uma aragenzinha fria se faz sentir. Afinal, estamos a 870 m acima do nível do mar. Não demoro muito a pegar no sono, embalada pelo conversê dos yanomamis naquela sua estranha linguagem e pela cantoria dos sapos. E vá dizer que não é bom esse tipo de indiada!!

Continua….

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