Cheirava a verde no campo base. O corpo acordava pelas 6:30 da manhã porque queria que a mente vivesse aquele sonho. A tenda aquecia e os pássaros coloridos chilreavam e desenhavam já trilhos no céu. Dirigia-me à tenda cozinha, sorria um aprazível Namasté e bebia um café quente ao mesmo tempo que me deixava deslumbrar pela paisagem. Pouco depois, o delicioso cheiro a panquecas convidava-me a entrar na tenda mess para o pequeno-almoço. Depois de nós comiam os pássaros, que se quase se atreviam a entrar na cozinha em busca de migalhas. Eu olhava-os e eles denunciavam felicidade. Os meus favoritos? Não sei se os azulões ou os mais ariscos multicores, com um chapéu branco na cabeça, como se lhes tivessem acertado com um pouco de neve.
À minha volta, circundando a verdura fresca do vale recortado por um límpido riacho, as montanhas, gigantescos castelos de rocha sarapintados pela brancura da neve. Aqueles enormes contrafortes pareciam mexer-se, ou seriam as nuvens que escoavam pela paisagem demasiado depressa.
Aqueles enormes contrafortes não serviam de abrigo quando soavam os violentos trovões. Ainda assim, no meio dos raios, recolhida no calor do saco-cama sentia-me no meu lugar, sentia conforto, paz. Sentia-me parte daquele imenso cenário vivo.
Quando deixava o aconchego do vale, movia-me de noite. O silêncio era tão profundo que só percebia o meu respirar, o ruído da neve por baixo das minhas botas, o som do piolet a perfurar o gelo. Quando as montanhas não eram iluminadas pela lua, a opacidade da paisagem era bonita só por se deixar adivinhar. Abarcava-me a vontade de chegar àquele ponto mais alto, invadia-me a ansiedade de ver o dia surgir, de ver o sol nascer, de ver as montanhas nascer, e de me ver renascer com elas.
Cada passo partilhava-o com ele, unia-nos uma linha (in)visível. Sentia-lhe o sentir, não precisávamos de trocar palavras, nem olhares. Ali, onde nunca existiu ninguém existíamos nós. Experimentávamos o sentimento de pertencer àquela montanha, como cada troço de neve que naquele lugar deixava passar o tempo, para voltar ao céu, e deixar-se cair sobre outra montanha qualquer.
Estávamos exactamente onde queríamos estar, a viver o que sempre quisemos viver. O não poder prever, pressagiar naquele lugar que os nossos olhos viam pela primeira vez na vida de todos os seres humanos, era o que sentíamos ser o expoente da palavra EXPLORAR. Explorávamos a montanha, a paisagem e a nós próprios. E a montanha deixava-nos conhecer o seu espaço mais privado, só a nós e a mais ninguém. Revelava-nos que os seus cantos mais robustos estavam por baixo daquele manto inconsistente que se desfazia a cada passo. Ao mesmo tempo que nos alertava, punha-nos à prova, como se quisesse saber se éramos dignos de estar ali, como se quisesse saber se podia confiar-nos os seus mais íntimos segredos.
Aos poucos, ao percorrermos o seu espaço, escutávamos as narrações dos sigilos resguardados durante toda a sua longa existência. O júbilo de ter podido desfrutar de tão intensa partilha a três, eu, ele e a montanha, posso hoje transmitir-vos. Apenas o estar, é a forma mais pura da felicidade. Os segredos, esses, vão para sempre permanecer guardados em mim, por ele e por aquela montanha que senti mais casa, que a minha morada.
Daniela, 4 de Agosto de 2010