O Pico Mitra do Bispo é uma montanha pouco conhecida, menos ainda frequentada. Buscando na net ha anos só encontro um, apenas um relato de trekking até o topo da distante montanha, e isso só me apeteceu mais. A vontade cresceu desde 2009 e em 2010 quando eu, Tácio e Victor Carvalho vimos a montanha desde o topo do Pico do Garrafão perto do município de Aiuruoca. A Mitra do Bispo desponta com destaque do solo como um vulcão pontiagudo sendo facilmente identificada a dezenas de quilômetros de distância.
Cheguei a tentar marcar com o colega Felipe de Itanhandú pra fazermos um ataque, mas a agenda nunca batia. Eu e Tácio tentamos programar também por algumas vezes, mas como sempre o tempo muda, imprevistos acontecem, problemas de saúde rolam, e sempre acabamos adiando. Dessa vez melhorei e assim que o Tácio voltou da Serra Fina mandei e-mail dizendo “cara, vamos logo senão acaba não rolando nunca”. Ele já tinha programado repetir a Marins x Itaguaré com a Aline mas pra mim não daria pra encarar a travessia e depois a Mitra, minha resistência tá muito baixa, anemia profunda, não posso me cortar nem nada disso, então estou quase uma moça…
Combinamos que eu encontraria o casal em Cruzeiro na segunda-feira dia 23 de julho, a previsão prometia sol então não dava pra perder, já que as referências que tínhamos pra Mitra eram poucas, a orientação visual torna-se metade da estratégia. Bem, pra resumir, o único relato que encontramos na net sobre a Mitra do Bispo é do Ronald, montanhista da antiga que não conheço pessoalmente, mas que me passa um semblante de gente muito boa. Ele foi lá em 2008 exatamente 4 anos atrás, no mês de julho. Foi muito detalhista no relato que ajudou bastante. Fica aqui nosso agradecimento ao Ronald Colombini, mesmo que tenhamos feito uma rota diferente. Até creio que o nosso camarada figuraça Jorge Soto já foi lá, mas como são muitos relatos gastei um tempão procurando e não encontrei, mas creio que ele já foi.
Bom, depois de quatro horas e meia de ônibus cheguei em Cruzeiro e encontrei Tácio e Aline, fomos antes de mais nada almoçar pra depois procurar as estradinhas de terra pra chegar na base da montanha. O almoço foi bom e barato, depois voltamos pro carro e zarpamos rumo ao desconhecido.
Primeira vista da Mitra – Autor: Parofes
Chegar a Alagoa, município de onde fica a Mitra do Bispo, já é complicado. Se não me engano são cerca de 65kms de estrada de terra e em algumas partes, de péssimas condições, principalmente quando ela passa bordeando a Serra de Santo Agostinho onde fica o Pico de mesmo nome, mais popularmente conhecido como Pico do garrafão de 2.394 metros. Ali a coisa é feia, inclusive ano passado quando passamos lá presenciamos a força da natureza, só 3 semanas antes tinha acontecido uma série de deslisamentos de terra iguais aos que aconteceram no Rio de Janeiro, mas não causaram mortes pois foram no vale ao lado da estrada, completamente desabitado e selvagem.
Começamos na estrada por volta de 14:15h e só fomos chegar em Alagoa por volta de 17:20h, pra vocês entenderem como a cidade é meio que isolada do mundo. Felizes são eles…Chegando em Alagoa começamos a pedir informações, pergunta aqui, pergunta ali, sempre pra um pau de arara na beira da estrada, e depois de algum tempo conseguimos duas pessoas que falaram o nome de outras duas pessoas e que coincidiu: Betinho e Vivian. Bastava seguir na mesma estradinha de terra em que estávamos que chegaríamos lá depois de mais quatro quilômetros.
Nesse momento tínhamos 90% de certeza de estarmos no local certo onde o Ronald descreveu, uma subida mais forte de carro que terminava em um ponto onde uma estrada a direita subia pra outras casas. Ponto de parada pra iniciar o trekking na crista a esquerda que visivelmente seguia diretamente ao colo entre a Mitra do Bispo e o pico vizinho chamado Pedra da Campina que tem quase a mesma altitude da Mitra em si, sendo pouco menor, cerca de 50 metros verticais.
Já ao pé da montanha – Autor: Parofes
Mas, depois de escutar de duas pessoas diferentes que a trilha saía da propriedade da Vivian cujo caseiro Betinho sabia onde era, nos animou em arriscar a nova informação. Bom, chegamos na tal da propriedade e de cara fomos recebidos pelo Betinho. De meia idade e com todo aquele sotaque que eu adoro do sul de Minas, é preciso prestar muita atenção ao que ele falava porque senão você literalmente não entende nada. As vezes, juro, não entendi uma palavra, mas concordei e dei um sorriso! Ele confirmou que conhecia o caminho pra Mitra e que nos mostraria sem problema, que nos levaria lá.
Que ótimo! Na propriedade que ele fica trabalhando como caseiro, a vista da Mitra é muito próxima e muito imponente, lembra muito um vulcão cônico, se fosse nevada, lembraria um vulcão patagônico já que a altitude é similar. Perguntamos se poderíamos acampar ali já que na entrada da propriedade há um descampado bem plano de cerca de 600 metros quadrados, bem grande, mas ele insistiu que ficássemos na “casinha branca”. Insistiu tanto que concordamos. voltamos pro carro e seguimos mais cem metros na estradinha até pararmos o carro bem na frente da casinha que tinha até cerca.
De manhã, a Mitra vista desde a casinha branca – Autor: Parofes
Começamos a nos acomodar e daí mais uns dez minutos o Betinho voltou com velas pra nós, já disse mil e uma vezes, mas digo novamente, adoro o povo do sul de Minas Gerais! O calor humano é sensacional, receptividade, hospitalidade, generosidade…Até nos mínimos detalhes. Antes de irmos o Tácio entrou em contato com a Prefeitura e a resposta por e-mail foi regada a cordialidade.
Arrumamos a comida, jantamos e passamos algum tempo lá fora enquanto o Tácio fazia fotos noturnas e eu tentava fazer. Depois nos acomodamos. Tá pensando o que? A casinha tinha três quartos!
A noite foi bastante tranquila, dormi relativamente bem, no chão de cimento a coluna fica 100% reta então foi terapêutico dormir assim. A medida que foi amanhecendo a luz penetrava na casinha por todos os orifícios possíveis, e por causa disso acordei cedo, pouco antes das seis da manhã. Levantei, aliviei a bexiga, fiquei lá fora caminhando e aproveitei o alpenglow pra fotografar a luz do nascer do sol sobre uma colina próxima á casinha. Aliás, descobri que da casinha tínhamos uma visão privilegiada da Mitra bem próxima, cerca de quatro quilômetros em linha reta. Lindíssima, edificando-se como um vulcão próximo, muito próximo. Não sabíamos dessa visão pois chegamos na fazendinha a noite já.
A hora foi passando e resolvi tomar café da manhã, fiz um miojo de pizza, comi bebendo suco de acerola com laranja, assim que acabei Tácio e Aline levantaram, mais preguiçosos e cansados, afinal de contas Tácio dirige o tempo todo e além disso acabaram de descer da Marins x Itaguaré, que é uma travessia curta porém cansativa por ter trepa pedra o tempo todo, muito exercício respiratório, cardiovascular. Isso cansa.
Batemos o papo do café da manhã, e comentei com eles que eu precisava aliviar o intestino, mas que tinha medo de usar o banheiro da casinha e a descarga não funcionar, pegaria muito mal usarmos o banheiro e deixar um presente pro coitado do nosso feliz e sorridente anfitrião. Tácio me disse que estava pensando o mesmo, então fui do lado de fora cavar um buraco. Fiz meu serviço, enterrei, deixei quase imperceptível, e na hora que estava subindo as calças passou por mim uma cadelinha preta com o focinho coberto por espinhos de ouriço, muitos!
Tacio e eu arrancando espinhos do pobre cao – Autor: Parofes
Meia hora depois, o coito canino. Note o focinho da femea! – Autor: Parofes
Na hora gritei “Ahhh não! Tácio me ajuda aqui!”. Tácio veio e começamos a tentar ajudar a cadelinha, mas ela não deixava, sentia muita dor. Logo em seguida chegou um cachorro, o macho, que tinha menos espinhos no focinho, mas tinha muito mais nas patas dianteiras. Mas ele praticamente pedia ajuda, chegava perto de nós e se deitava, e a cada espinho que tirávamos um choro alto ecoava na manhã tranquila do campo. Eu nunca havia visto algo assim antes, o espinho de Ouriço é muito, muito grande. Alguns tinham em torno de 6 cms de comprimento, e eles entraram no cachorro em capacidade de 50%. A espessura é igual a de um palito de dente pros maiores, então é um ferimento que sem dúvida deve causar muita dor, agora pra entendermos o sofrimento dos bichanos, basta multiplicar isso por dúzias de furos.
Esse macho sofreu conosco, havia um espinho logo abaixo do olho dele, muito próximo, mais ou menos 1 cm abaixo da pálpebra inferior, e quando fiz força pra ele sair, pois já estava coagulado, ele saiu de uma profundidade de quase 3 cms. Se fosse no olho, teria cegado o cão. Sangrou bastante, então comecei a me cagar de sangue. Gritamos pra Aline trazer uma pinça e a câmera pra registrar, por sorte ela tinha uma pinça e isso facilitou pra tirarmos os espinhos que estavam nos lábios do macho, a fêmea sentou próxima a nós encostada em uma árvore, ficou quieta, mas não nos deixava chegar perto.
E assim o tempo foi passando, conseguimos tirar todos os espinhos nas patas, todos nas bochechas, e quase todos nos lábios, ficaram 2 ou 3 só pra conseguirmos tirar todos dele. Um nos impressionou: Quando pincei o espinho e fiz força, vimos que ele havia atravessado o lábio do coitado e estava livre do outro lado, no interior da boca, como um piercing de língua. Por uma fração de segundos vimos ele sair atravessando o lábio de lado a lado, e olhamos um pro outro e dissemos “Cacete, tu viu isso?!”.
Deduzimos que eles ficam implicando com Ouriços o tempo todo, já que a pretinha que literalmente tinha uma barba de espinhos parecia não se preocupar muito, estava bem tranquila, não chorava, e não pedia pela nossa ajuda como o macho pediu. Então deixamos ela de lado, mas tiramos 99% do que afligia o macho. A julgar pelos ferimentos, ambos tentaram morder o bichano e deu no que deu.
Depois de cerca de quarenta minutos nos preparamos e fomos embora rumo ao nosso objetivo. Mas antes de sairmos vi o casal grudado depois do coito. Mas que coisa, nem se preocupavam com os espinhos! Ela já nem ligava mesmo e ele, relaxado com praticamente tudo removido, mandou ver na esposa…rs. Encontramos o Betinho e ele nos levou até a trilha. Pra nossa surpresa, é bem visível saindo da estrada mesmo cerca de 1,5 kms antes de chegar a fazendinha. Betinho continuou conosco subindo a trilha que é bem, bem batida e erodida. Até porque a trilha meio que faz um atalho até uma outra casinha que fica entre duas cristas. Pensamos que ele só nos mostraria onde era a trilha, mas seguiu conosco pelo menos uns 2kms de trilha, até chegarmos na cota dos 1.800 metros de altitude, em uma segunda porteira, ali ele se despediu de nós e voltou, nós seguimos pela trilha batida atravessando até a segunda crista, uma que vimos na estrada que literalmente terminava na face rochosa da montanha, que já se agigantava diante de nós.
Subindo a trilha – Autor: Parofes
Até chegar na segunda crista e fazer um contorno a trilha seguiu muito bem marcada, depois ela meio que desaparece na mata mais alta composta de árvores meio secas pelo inverno e mato rasteiro, fácil de se orientar. Então fizemos o caminho óbvio subindo a crista. Logo em seguida, uns duzentos metros a frente, reencontramos a trilha que ficou bem definida novamente, em um ponto em que ela fica bem inclinada dentro da mata. Ali já estávamos a 1.950 metros, e continuamos subindo a trilha que demonstrou não ser utilizada fazia tempo, já que tínhamos que limpar o caminho de bambuzinhos e arbustos jovens que cresciam na trilha. Em um determinado tempo a trilha ficou bem inclinada, uns 30° ou 35°, então ficou mais cansativo pois escorregar era fácil, pelo menos dava pra se segurar nas árvores. Daí, quando pensávamos que a trilha viraria para a esquerda levando a crista que liga as duas montanhas, ela literalmente acabou na parede rochosa.
Mitra do Bispo e galhos secos – Autor: Parofes
Ganhando altitude, olha o Betinho ai! – Autor: Parofes
Bem proximo a parede que ja se ve – Autor: Parofes
E comeca o escala mato – Autor: Parofes
So dava pra fotografar nas partes menos adrenantes – Autor: Parofes
“E agora? Vamos tocar pra cima daqui!”. Seguimos dali mesmo tocando pra cima no escala mato, trepa pedra. No começo foi fácil, mas depois inclinou mais e estávamos praticamente escalando em rocha solando. Eu olhei pro lado adrenado e notei que só dois metros a minha direita a inclinada parede era quase vertical, uns 75°. Porra! Não podíamos errar ali, uma queda e dava pra se quebrar todo até parar na crista. Na metade do caminho cruzamos com uma cantoneira fixada na rocha, que prova que pelo menos tentaram fazer uma via de escalada ali, mas não encontramos nenhum grampo no caminho, talvez a vegetação de musgo tivesse coberto os grampos, vai saber. Progredimos sem grande dificuldade, mas bem adrenados, usando até raiz e musgo molhado pra se ancorar antes de fazer força de impulso pra subir a perna. Além de todos esses problemas a parede é cheia de caraguatás, então precisávamos evitar também os espinhos.
Esse lance sinistro durou uns 45 metros verticais, foi muito exposto e ficamos felizes em entrar em um vara mato chato logo acima, já no domo do cume da montanha. Eu já estava ofegante, cansado por causa da anemia profunda, mas não me rendi. Seguimos sempre nessa ordem, Tácio na frente, Aline atrás e eu por último. Assim que terminou o vara mato estávamos no cume que infelizmente é florestado, não há vista. Antes de procurarmos por vista e de fazer fotos descansamos e respiramos depois da subida tensa, fizemos um lanche, descobri que o meu gatorade vazou dentro da mochila e fez um estrago, além de nos deixar sem o precioso isotônico lá em cima.
No cume há um pequeno acampamento, tipo girau, que provavelmente é utilizado pra colocar lona. Cabe confortavelmente duas barracas, apertado três barracas pequenas. Não sei não, me parece mais acampamento de caçador do que de montanhista. Uma fogueira arrumada demonstrava desuso por bastante tempo. Depois de uns cinco minutos fizemos as fotos de cume, vídeo, e buscamos por vista pra fotografar, e há uma série de trilhas só pra vista mesmo por causa da vegetação no topo em si, que medimos ter exatos 2.200 metros, 50 metros maior do que a altitude nominal que se encontra na internet.
Cume da Mitra do Bispo. Tacio, Aline e Parofes.
Altitude marcada no cume da Mitra do Bispo – Autor: Parofes
Depois de uns vinte minutos no topo, nuvens começaram a se aproximar e me preocuparam, ao Tácio também, então começamos a buscar por uma outra rota pra descer, já que nenhum de nós três se sentia confortável em descer por onde subimos por ser muito exposto, e além disso, pelo fato de que durante a subida nós mesmo fragilizamos os matos mais fortes onde seguramos, e isso diminui a resistência deles pra outro uso só uma horinha depois, ou seja, não se pode confiar no mato que se usa pra escalar na subida. É bem perigoso.
Buscando uma descida alternativa – Autor: Parofes
Procuramos, Tácio que ainda tinha algum nível de conformismo e disse pra descermos pelo mesmo lugar, mesmo estando também desconfortável com a ideia de descer pela parede, vasculhou o gps, tentamos uma decida frontal, mas ficou vertical demais e voltamos, apontei pra uma crista lateral bem, bem próxima, mas apesar de ser bem sossegada, seria fogo varar 1km de mato até chegar a trilha que estávamos, nem tentamos, daí depois de perder uns quarenta minutos decidimos arriscar a descida perigosa por onde subimos. Lá fomos nós. Dessa vez Tácio na frente, eu no meio e Aline por último. Acabou que tudo rolou muito mais sossegado do que esperamos, adrenamos e sofremos por antecipação, o mato segurou bem e descemos conseguindo escorregar na bunda, mesmo que isso significava estar praticamente de pé por causa da inclinação da parede.
Chegando na trilha respiramos, ufa! Dali foi um passeio até chegarmos na fazendinha de novo. Nosso tempo total foi de 2,5 horas de subida e 1,8 horas de descida para um total de só 7kms de trilha entre ída e volta. No final chegamos à conclusão de que a Mitra do Bispo não é difícil, mas não é de graça, pelo menos não pela rota que fizemos. Aliás, não foi a mesma do relato do Ronald, que de acordo com suas palavras subiu pela crista ao lado, que leva ao colo entre a Pedra da Campina e a Mitra, onde levaram só vinte minutos até seu cume.
Lá chegando o cansaço me pegou e fiquei um pouco pra trás do Tácio e da Aline, mas estávamos felizes, finalmente culminamos uma montanha nacional praticamente esquecida pelo montanhismo, de altitude bem legal (2.200 metros) e por uma rota que não é a tida como “normal” da montanha, sem nenhum equipamento de segurança.
Tiramos uma foto com o Betinho, arrumamos tudo no carro e pegamos a estrada, dessa vez cortando caminho sem precisar voltar por Alagoa, seguindo uma estradinha indicada por ele. Nosso objetivo, a Serra do Papagaio no município de Aiuruoca.
Mas isso eu conto na segunda parte do relato, a Mitra merecia um relato próprio, sonho de pelo menos três anos meu e do Tácio.
Parofes, Paulo Roberto Felipe Schmidt (In Memorian) era nascido no Rio, mas morava em São Paulo desde 2007, Historiador por formação. Praticava montanhismo há 8 anos e sua predileção é por montanhas nacionais e montanhas de altitude pouco visitadas, remotas e de difícil acesso. A maior experiência é em montanhas de 5000 metros a 6000 metros nos andes atacameños, norte do Chile, cuja ascensão é realizada por trekking de altitude. Dentre as conquistas pessoais se destaca a primeira escalada brasileira ao vulcão Aucanquilcha de 6.176 metros e a primeira escalada brasileira em solitário do vulcão ativo San Pedro de 6.145 metros, próximo a vila de Ollague. Também se destaca a escalada do vulcão Licancabur de 5.920 metros e vulcão Sairecabur de 6000 metros. Parofes nos deixou no dia 10 de maio de 2014.