Travessia Kairós #6

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Passadas as preocupações, pude olhar ao redor, para minhas instalações e para as pessoas que faziam parte desse grupo que aumentava e diminuía enquanto ali estive.

:: Travessia Kairós #5

Soltei os freios em curvas que, lá adiante, levaram-me à Federico e sua parceira. Iniciavam essa subida tão animados que não seria grande esforço de retomada e, ainda desorientados pelo início de alguma coisa que deveria se estender por longos dias, confidenciaram que acabavam de desamarrar a corda de suas embarcações e fazia não mais que quarenta minutos que navegavam por esse caminho de ondas, salientei, hoje amigáveis. Partiram de El Bolson, cidade que me trazia grande expectativa, momentos que fizéramos alguns dias atrás, ainda na memória invadida pelas primeiras montanhas em nossas impressões, lugar sugerido por todos como o vale onde os seres buscam fazer seus sonhos. E, que passe alguns dias, sugeriram e indicaram o camping em que tinham algum cargo, algo como responsáveis, ou mesmo proprietários, ainda que não quisessem utilizar dessa palavra.

Calle Viamonte, cerca del rio y de la puente. Juán e Milena me recepcionaram. Ocupei um dos nichos específicos entre árvores de manzanas e perguntei aos anfitriões sobre como poderia calentar meu caminho dali em diante. Cerca del rio, mais pra frente, finalizava uma grande feira de roupas usadas que eram estendidas no chão de um imenso corredor. Encontrei luvas e calças mais grossas usadas por motoqueiros aventureiros com a indicação de -30°C de resistência, o que me pareceu suficiente.

Passadas as preocupações pude olhar ao redor, para minhas instalações e para as pessoas que faziam parte desse grupo que aumentava e diminuía enquanto ali estive. Meus vizinhos de carpa são argentinos que chegam daquele sul distante que era Ushuaia. Nahuel e Lucrécia. Vem haciendo dedo. Pegam carona, como todos por aqui. Charlamos y mateamos un rato. Eduardo se apresentou na cozinha central do camping. O espaço lembra um hostel, onde as barracas são quartos efêmeros, orientadas em parcelas bem definidas e muito próximas umas das outras, pois o camping em si localiza-se em um terreno convencional, e então os quartos são braços de um conjunto estruturado sobre o experimentalismo construtivo de Federico.

Um dos primeiros comentários que Eduardo me fez foi o de que eu não deveria tentar achar explicações para as coisas que eu fazia. Tem a aparência desordenada de um típico livreiro que não consegue largar a sina de escritor em tempo integral de sua vida. Lembra-me Cortázar, que passei a reencontrar, quando dizia ser um anarquista em seu processo criativo, tendo repulsa aos métodos, escrevendo em pedaços avulsos de papeis. La evolución es dolorosa, falou, lançando mais uma pitada de sal na panela de arroz, quando comentei sobre o que me atormentava ultimamente, pois que os tormentos é que precisam de conselhos.

Ceci e Mariano chegaram pela noite. Junto com Sofía e Hernan, encerraram mais um dia na feira artesanal, que ficava não muito longe da feira de usados. Quando Topo e Pedro surgiram de um passeio, foi feita a hora da janta e me convidaram. Sentei na ponta. Não gosto de sentar na ponta, mas me pareceu descabido recusar, deixo-me levar. Purê de calabazas, berenjena à milanesa e zanahoria ralada. As abóboras estavam uma preciosidade. A última, as cenouras, foram cortesia minha ao espetáculo da mesa. Estava em um lugar muito especial e familiar e não me pareceu distante pensar na riqueza das casualidades e dos encontros.

Através das miradas que lancei aos ocupantes do recinto, e conforme fomos trocando gestos e palavras, descobri que todos se conheciam há não mais de uma semana. É o lugar, ou a cidade, que tem sua força para juntar os tipos que aqui se reuniam ao redor da mesa. Eu ficaria apenas uns poucos dias. Mas depois disso, cada afeto criado seria uma despedida dura, em que se devia abraçar e, em alguns casos, verdadeiramente controlar a emoção dos olhos, pois que do encontro do outro vinha um reflexo honesto de si. Nunca mais nos veremos, é uma certeza. Cada vez mais difícil daqui em diante. Eduardo tentou me convencer a ficar até o próximo dia, quando seria cumpleaños de Topo e eu veria um verdadeiro acontecimento, una obra de arquitectura, uma grande reunião de amigos.

Resolvi não ficar para o dia seguinte, era uma forma de manter o potencial intacto. Sabia que seria divertido, como o sonho que todos sonhavam, e me faria bem. No entanto, deveria aprender a lidar com a recusa. Eram ainda os dias 36, 37 e 38. Quando estive próximo ao dia setenta e cinco, já no sul do Chile, um argentino de Bolson me falava das montanhas de sua cidade e que não me vinham, de forma alguma, na memória, tamanho o afastamento. Falei de Federico, de Ceci, Eduardo e Topo. Não conhecia; mas sabia bem do que eu estava falando.

LUÃ OLSEN

PUERTO RIO TRANQUILO – Chile

03.05.18

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Sobre o autor

Luã Olsen é arquiteto e urbanista. Utiliza suas aventuras para experimentos literários, quando refaz a viagem para si e para o outro. Autor de TU, YO Y LA LUNA (2014), relato de sua viagem de bicicleta de Florianópolis a Buenos Aires, e INTERIORES (2017), sobre sua primeira cicloviagem, por Santa Catarina, cinco anos antes. Em 2018 realizou a TRAVESSIA KAIRÓS, pedalando através da Patagônia argentina e chilena, escrevendo suas impressões para o site da Alta Montanha.

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