Travessia Kairós #5

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Quando me distanciei, acenei diversas vezes olhando para trás. Foi um afastamento firme, satisfeito, o pulso acelerado por estar mais uma vez na minha própria dependência nesse deixar-se levar pela estrada.

Veio a chuva no fim da tarde, atravessou a noite e ainda reclamava essa manhã. Vesti o uniforme impermeável que comprara no dia anterior, manto viajero para enfrentamentos selvagens. O mais barato. Colocava-o por cima das roupas de frio, e isso dava um volume ao qual ainda não estávamos acostumados. Um último café, agora sim. Última foto. Si o si, sairia logo mais. E que chuva. Façamos mais um mate, é preciso aquecer o espírito, mais uma foto. Era de se ver que estávamos um tanto impressionados com as novas condições meteorológicas. Provavelmente não nos veríamos mais nessa travessia. Caio iria na direção Norte e eu para o sul argentino. Minha família já tinha voltado ao Brasil, estivemos todos por alguns dias no afetuoso acolhimento de uma cabana com vista para as montanhas, ponto de ancoragem a nossos passeios pelos arredores do lago Nahuel Huapi e vilarejos vizinhos, descanso para os solitários meses que viriam a seguir.

E, então, o dia vinha cinza, certamente propício à solidão compartilhada no camping, leituras em uma tarde arrastada de poesia. Melancolia que exige o repouso. Não teve jeito: saí meio assim, à contragosto, embora desejoso de movimento tendo em conta que os dias em Las Grutas e aqui, em Bariloche, haviam se acumulado em boas doses de sedentarismo. Quando me distanciei, acenei diversas vezes olhando para trás. Foi um afastamento firme, satisfeito, o pulso acelerado por estar mais uma vez na minha própria dependência nesse deixar-se levar pela estrada.

Assim que dobrei a esquina e cheguei mais adiante na avenida principal, terminado o disfarce dessa falsa segurança que trazem as despedidas, parei para ver se era isso mesmo, analisando o mapa no celular, papel assumido por Caio em passagens anteriores, protegendo o visor de uma garoa petulante tendo a responsabilidade no zelo de minhas decisões. Parecia ser correta a rota de meu destino. A inauguração das roupas de chuva, esse novíssimo conjunto impermeável para motoqueiros e que me tornara um viajante de estética peculiar, emaranhado confuso que se revirava no acostamento com toda a bagagem coberta de lonas cujas pontas se soltavam em diversas direções, foi assim a estreia fadada ao drama: no retorno ao selim, a calça se prendeu e não ofereceu resistência, rasgando boa parte do regaço sintético dos membros inferiores. Iniciava-se uma partida caótica.

Agora o frio tinha passagem livre pelo vão de minhas pernas e com elásticos e cordas tentei fazer voltas apertadas como se faz nos ferimentos de guerra, mas a cada giro de minhas engrenagens o curativo descia e aos poucos a água entrava, molhando a segunda pele que mantinha a temperatura de meu corpo. Não era chuva, consistia-se de uma garoa intermitente, mas que aumentava o frio. Conclui lamurioso que não bastava apenas o desejo de sair. Comprei mais luvas em uma ferretería, emborrachadas para serviços braçais, as únicas disponíveis, e colocadas por cima das outras, uma no papel de isolante térmico e outra feita de lã, retardavam e depois atingiam ferozmente as extremidades.

Comi uma maçã e afundava-me em minhas observações quando a neblina se dispersou e abriu a vista. Quando for possível ver a montanha, terei ido: foi dessa forma, como um provérbio chinês, que lembrei de ter me despedido Caio, frase feita para quebrar todo aquele gelo. E percebi, então, que finalmente tinha saído, estava indo.

E depois veio a curva, bordeamos os lagos e revi os cenários, sorri por trechos em que havíamos passado todos aquecidos quando alugamos um auto e em minha memória não parecia assim tão frio. A montanha se recolheu mais uma vez em seus mistérios e a garoa não era mais previsão, esfriou congelando as minhas mãos e pés. Las patas, como dizem os argentinos. Estava malo. Parei em um ponto de ônibus, era hora do café. Lá no camping imaginei que Caio provavelmente estivesse fazendo o mesmo, aquecendo a sua caneca com esse café solúvel dividido de forma igualitária e imerso em seus pensamentos, sabiamente acolhido, seco, aquecido com a calefação. El perro se cagó de frío acá. Sutil consolo anotado por aquele que quis compartilhar suas dores nesse abrigo. Invejei os antigos momentos de conforto e pensei que seria melhor que nada disso. Merda, nada de arrependimentos. Por cima das luvas de borracha amarela derramei a água quente de forma a sentir amenizarem-se as dormências e fiz mais um café e abracei esse calor-resquício que ainda me sobrava na térmica. Com as mãos agora mais flexíveis, retirei as botas e as meias, apertando meus pés enrugados e brancos, encostando a caneca quente e, droga, foi alta a ardência e que faça rimar com tamanha incompetência.

Refleti muito no quilômetro que se seguiu e, contra todas minhas vontades (as psicológicas), tive que aceitar quando meu físico seguiu a primeira clareira que se fez rompendo a faixa estreita de floresta que separava o asfalto do lago e foi assim que desci a inclinação para encontrar o respiro que permitisse a abertura da barraca, grande árvore protetora, escondido por suas vegetações mais baixas o chão tão úmido, pedras envoltas em fogueiras de dias secos, talvez el perro estivera por aqui. Um fiapo de rio descia em direção ao lago, lembrança da montanha abrupta que subia atrás de mim: sentia seu respiro do lado de lá da rodovia. É dizer que o caos vencera e tentava agora me reorganizar, esquentar-me, acalmar. Tive dificuldade em trazer a bicicleta, atravessar os troncos, e não se ouviu carros cruzando a rodovia, ou seja, esse isolamento que afeta a mente, mesmo que nos tranquilize a feitura dos atos. Sob chuva, desarmei as cordas elásticas, soltei as lonas e as bagagens, esticando o tramo plano que me envolveria quando deixasse de ser mero pano, ainda sob chuva, erguendo o abrigo rapidamente, tornando-o volume, colocando todos os utensílios necessários para que eu pudesse me esquentar e não sair mais dali.

Troquei de roupa, preparei um chá. Fiz uma sopa, observei os arredores de meu corpo, espaço comprimido que me pareceu, em certa medida, confortável e acolhedor com todas as bagagens que se juntavam em aquecimento. O que era chuva inconveniente, agora era ruído constante que ouvíamos satisfeitos quando protegidos. Durante a noite, pensamentos trouxeram um rio que poderia subir se essa intensidade sonora também aumentasse, e me veio todas aquelas histórias de viajantes logrados pelo desconhecimento da natureza. Nada mais solitário do que acampar em meio ao nada em uma noite chuvosa que te impede de sonhar. Acordei diversas vezes de madrugada para conferir a vizinhança e, aqui estou, com os olhos cegos no escuro e o que se faz é som da chuva e do rio, é cão que ladra em seus limites. Visitantes poderiam surgir nesse cenário incerto, mas não, estou sozinho. Droga, quem por aqui viria em uma madrugada tão chuvosa e fria, afinal? Sou eu, dentre tantos os que se aventuram por momentos como esse, de provação patagônica inicial.

LUÃ OLSEN,

COCHRANE – Chile

16.04.18

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Sobre o autor

Luã Olsen é arquiteto e urbanista. Utiliza suas aventuras para experimentos literários, quando refaz a viagem para si e para o outro. Autor de TU, YO Y LA LUNA (2014), relato de sua viagem de bicicleta de Florianópolis a Buenos Aires, e INTERIORES (2017), sobre sua primeira cicloviagem, por Santa Catarina, cinco anos antes. Em 2018 realizou a TRAVESSIA KAIRÓS, pedalando através da Patagônia argentina e chilena, escrevendo suas impressões para o site da Alta Montanha.

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