Peço agora que você me acompanhe para além do Espinhaço, numa região fora dele, habitada não mais por cristas e montanhas sim por cavernas e veredas. O duro quartzito será trocado pelo maleável calcário, com resultados surpreendentes, de uma beleza mais frágil e sedutora, embora envolta pela mesma aspereza da grande serra.
As duas UCs situados ao longo do Rio Peruaçu pertencem a municípios próximos a Januária, a capital regional. Este nome provavelmente se refere ao fazendeiro Januário Cardoso de Almeida, filho do violento bandeirante Matias Cardoso, que você conhecerá na próxima coluna.
Depois dos paulistas que colonizaram a região, vieram baianos, mineiros e negros, numa série de conflitos pelo controle do espaço. A cidade prosperou pela criação de gado e plantio de cana de açúcar. Situada às margens do São Francisco, Januária foi também ao longo de três séculos um importante entreposto comercial.
A decadência da navegação no São Francisco afetou a cidade, que conheci ainda pequena muito tempo atrás e que reencontrei suja, pobre e estagnada. O assoreamento do São Francisco fez crescer um bosque às suas margens, que oculta o rio de seus moradores. A cidade parece viver de costas para o rio que a fez surgir e crescer.
Esta região era habitada pelos índios xacriabás, devastados pelos primeiros bandeirantes. Mas ainda habitam a região: os 10 mil descendentes ocupam uma reserva que sobrou da espoliação do enorme território que lhes tinha sido doado no período colonial.
Sem mais acesso ao rio e com terra inadequada, os xacriabás tentam reaver seu espaço, para sobreviverem e manterem sua cultura. Os suicídios e as migrações são realidades duras para este povo – que os brancos, em contrapartida, dizem ser grandes criadores de gado e indolentes moradores de uma vasta área.
Veredas do Peruaçu: O Parque Estadual Veredas do Peruaçu teve sua área original ampliada para 31.220 ha. Está quase inteiramente contido no município de Cônego Marinho, cuja sede fica a 40 km de Januária. O Parque, por sua vez, dista do vilarejo 60 km a leste. Eu o visitei a partir do asfalto para Miravânia, num acesso bastante conveniente.
O Rio Peruaçu é o último afluente mineiro do São Francisco. Hoje com 90 km de extensão (já que sua nascente foi perdida), está morrendo devido à secagem de suas águas. Inicialmente úmido, torna-se seco e depois intermitente. Submerge por baixo das cavernas da região, até aparecer de novo e mergulhar no São Francisco. Seu balneário encontrava-se totalmente seco quando o visitei. Segundo minhas conversas, só corre mesmo por 55% da sua extensão.
Foi ele que esculpiu todo o cenário das grutas, quando seu curso foi bloqueado por um maciço calcário e suas águas buscaram uma saída até a calha do São Francisco. Há um projeto para revitalizá-lo – procurando evitar os impactos negativos do assoreamento, da agropecuária, do fogo e da mineração.
A preservação do Peruaçu é fundamental para a proteção das cavernas da região. Pois o Parque fica rio acima delas. Há mais de dez anos tem sido proposta sua ampliação para 130 mil ha – até hoje, alcança apenas a margem direita do rio, onde estão seus afluentes principais.
O PEVP contém formações de veredas e de lagoas. A principal das primeiras é a Vereda do Peruaçu, com inacreditáveis 40 km de extensão, decorada por imensos buritis. Existem duas lagoas principais, a Formosa dentro e a Azul fora do parque, formadas pelas águas da chuva.
A vegetação compreende a caatinga, o cerrado e a mata ciliar. O relevo apresenta formações recobertas por arenito de até 900m de altitude, bem como regiões onduladas com vales e planícies com cotas de 650m. Mas seu visual me pareceu bastante pobre, nos 12 km em que pude observá-lo. Em apenas uma breve ocasião pude me aproximar de uma vereda e não consegui encontrar suas lagoas.
O ambiente é favorável à fauna, com animais de porte, como pacas e suçuaranas. Aves e ofídios são abundantes. É lá encontrado um tipo de cachorro vinagre (cachorro do mato semiaquático de pelo vermelho) tido por alguns como extinto.
O Parque é apenas cercado, mas não sinalizado. Não está aberto à visitação e parece desconhecido das pessoas da região. A rigor, assemelha-se a uma região devoluta e abandonada, sem acesso ou fiscalização.
Cavernas do Peruaçu: A origem do Parque Nacional Cavernas do Peruaçu foi um acordo de compensação ambiental com a empresa Fiat, que comprou áreas numa APA preexistente. O Parque foi oficializado com a área de 56.800 ha. Ocupa os municípios de Januária, Itacarambi e São João das Missões (território dos xacriabás), distando 45 km da primeira e 15 km da segunda.
O legado da Fiat foi impressionante, com as trilhas mais bem implantadas que jamais conheci no Brasil. A sinalização é exemplar, bem como o Centro de Visitantes, que conheci estranhamente vazio.
O acesso é fácil, apesar da precária estrada de 13 km (aparentemente, a única falha da Fiat), que percorre seus atrativos. Situados no vale, a 400m de altitude, são visitáveis por trilhas curtas, em circuitos de 5 a 6 km. Já a parte mais elevada ao norte, no rumo de Itacarambi, ultrapassa os 800m e estranhamente até o momento não dispõe de trilhas.
Como é comum no país, o PNCP está assentado sobre áreas não indenizadas, com ocupantes sem comprovação de propriedade, invasores agropecuários e até meia centena de aldeamentos indígenas. Acredite, há até uma serraria no seu interior.
Vou tentar explicar esta aberração. Antes do Parque, foi lá estabelecida uma APA. Ela deveria contorná-lo e não se superpor a ele. A razão é que estas duas formas de conservação têm diferentes usos – num Parque não podem ocorrer atividades de exploração, ao contrário de uma APA, onde práticas pré-existentes está na área superposta, seus donos entendem poder continuá-la.
Existem no Parque 80 sítios com pinturas rupestres, pertencentes às tradições São Francisco e Nordeste. Datadas as mais antigas de 11 mil anos, são contemporâneas às da Serra da Capivara – e mais variadas que estas. Mas as principais atrações são as 140 cavernas calcárias, inseridas numa região semiárida que compartilha os biomas cerrado e caatinga, cada qual com diversas variantes. A fauna é abundante e variada.
As águas do Peruaçu formaram inúmeras galerias, ao longo de um expressivo cânion irregular de 15 km, com desníveis de até 200 m. O rio então escavou as cavernas e esculpiu suas ricas decorações. A paisagem é notável pelos paredões desgastados, as dolinas de colapso e as cavernas colossais.
O Parque conta no momento com oito roteiros para visitação, desde as pinturas policromadas da Lapa do Caboclo, a sinuosa Gruta do Carlúcio, a linda decoração da Gruta Bonita e a grande subida da Lapa do Rezar, uma cavidade semelhante a uma nave de igreja.
Mas o grande momento do Peruaçu é a Gruta do Janelão, uma espetacular caverna com 80 m de altura. Ela é acessada por cima e possui três claraboias, sendo facilmente percorrida nos seus 1½ km abertos à visitação. O Janelão é um cenário curiosamente delicado, colorido e decorado, único no contraste entre paredes desmoronadas e intrusões de mata, entre tamanho e proximidade e entre luz e sombra.
A caverna restante, que continuaria o Janelão após sua última claraboia, é de mesmo tamanho e encontra-se fechada devido a vestígios do cachorro vinagre. Existe uma terceira galeria elevada, chamada de Minotauro, com 1½ km adicionais. Assim, seu desenvolvimento chega a quase 5 km.
O Arco do André é outro monumento gigantesco, recentemente aberto à visitação. Sua trilha é no momento a mais exigente do Parque, com travessia por blocos de pedras. Que eu saiba, a Dolina dos Macacos, última claraboia do Janelão, continua fechada devido ao risco de queda. Existem outras cavernas, a maior das quais sendo o Cascudo. É um acervo espeleológico e arqueológico de grande importância.
E isto me leva a uma observação final. O PNCP tem um desenho maravilhoso, com seu vale circundado por paredes calcárias, sua abertura central (pela qual você ingressa) opondo-se às elevadas campinas ao norte. Se outras grutas forem abertas e integradas às existentes, o vale ganhará uma nova dimensão. Poderá rivalizar tanto com o PETAR como com a Serra da Capivara.
A meu ver, o Peruaçu apresenta méritos para ser um dos melhores parques do Brasil. Mas ele foi como que doado pronto e acabado por uma empresa privada. E para o ICM Bio, instituto pouco conhecido por seu cuidado. Ele irá exigir uma gestão criativa, aliando cultura e natureza, num desafio difícil de ser superado.
No capítulo a seguir, você encontrará a formação irmã da cordilheira, tão grandiosa quanto ela: o São Francisco.