A Pedra do Lagarto e o Pico do Urubu são alguns dos inúmeros mirantes, senão os mais ilustres, que a Serra do Itapety possui em sua elegante e respeitável crista. Mas a sentinela de Mogi das Cruzes (SP) possui muito mais belvederes rochosos espalhados ao largo de sua escarpada cumieira que, menos conhecidos ou de acesso mais difícil, ainda permanecem incólumes á visitação de eventuais andarilhos. Mirantes como a Pedra do Lagartão, um enorme dorso rochoso com as mesmas feições que seu homônimo mais ilustre, porém com dimensões superlativas que justificam o “ão” em sua denominação. Este é o relato deste rolezinho que nada mais é uma extensão mais puxada dum roteiro pra lá de conhecido, mas que nos brinda com horizontes e vistas reservadas á poucos.
Década atrás tive o prazer de conhecer o Lagartão numa roubada pela crista do Itapety que partiu do Pico do Urubu. Rasgando mato e depois de muita ralação (e algum desvio de rota providencial), terminei caindo na tal Pedra do Lagartão em condições nada favoráveis. Com muita neblina, forte vento e ameaça de chuva torrencial iminente, mal tive tempo de desfrutar do lugar e fui forçado a encerrar ás pressas àquela caminhada perrengosa, utilizando como rota de fuga a tradicional picada outrora chamada de Estrada do Lambari. Desde então sempre planejei lá retornar, porém com melhor perspectiva meteorológica e por outro acesso direto (e menos problemático) ao atrativo. E lá fui eu refazer neste último domingo o último trecho daquela incursão de década atrás, porém no sentido contrário.
Com viagem mais rápida que o previsto saltei na última estação da Linha Coral da CPTM por volta das 9h50min, alocada na cota dos 710m. Dali simplesmente cruzei a rodoviária, a rotatória e uma simpática pracinha até finalmente cair na Av. Antonio de Almeida, sempre acompanhando a sinalização “Bairro Rodeio” ou “Jd Maricá”. No caminho, em meio aquele dia de céu azul, poucas nuvens e sol a pino, a paisagem logo revela a elegante silhueta da Serra do Itapety esparramando-se por toda extensão daquele quadrante, recortando o horizonte com suas abauladas escarpas de leste a oeste.
Após cruzar a ponte sobre o Rio Tietê e a rotatória da Av. Perimetral, tangencio o pacato Bairro Rodeio que parece recém levantar naquele horário. Área predominantemente residencial, me mantenho sempre pra nordeste até que o asfalto termina e dá lugar á precária “Estrada Velha do Lambari”, antiga via de conexão da cidade com o outro lado da serra. Uma vez nesta empoeirada via de chão, a exatas 10 horas, basta acompanhá-la até o final, ganhando altitude aos poucos conforme as botas pisam o chão.
O sol brilha com força e o suor já escorria farto pela testa quando minha ascensão passa a ser no agradável frescor da floresta, que me envolve num misto de mata nativa, ciliar e reflorestamento. A subida então prossegue tranquila e sem pressa naquela bela manhã, quando subitamente tropeço com uma placa indicando os limites da Reserva Botujuru, onde adentro despudoradamente agora pisando de fato numa precária e estreita vereda. E tome subidinha interminável, onde me surpreendo com a vegetação incrivelmente mais alta que o normal, num claro sinal que a trilha vem sendo menos pisada que antes. Sim, este comecinho é o mesmo pra Pedra do Lagarto, não tem erro algum.
O trecho seguinte – e com maior declividade do trajeto, chamado de “Paredão Boliviano” – além de bastante acentuado, escorregadio e com pedras roladas servindo de degraus, agora tem vegetação alta caindo de ambos os lado, obrigando a avanço com ajuda de ambas as mãos, sem grande dificuldade, mas com cuidado redobrado. Mas logo depois a vereda nivela e tangencia uma curta picada que dá acesso a uma clareira, onde além de vestígios de fogueira existe uma oportuna bica, onde é possível encher os cantis. Minha rota prossegue ainda em nível, ladeando uma enorme área de várzea, ignorando primeiro uma ramificação pela esquerda e logo na frente outra ramificação que segue reto. Aqui tomo a via da esquerda, que continua subindo o restante da serra.
Pois bem, uma vez nesta ramificação da esquerda não tem mais erro, pois dali o caminho dá seu estirão final através dum caminho bem escorregadio e coberto de limo, demandando atenção redobrada. Capim-velcro surge pra se agarrar a nossa pele assim como um ou outro tronco no caminho, obstáculos dos quais é fácil se desvencilhar ou simplesmente contornar. Até que enfim desemboco num cruzamento bem no estreito selado que tanto interliga cristas como dá acesso ao outro lado da serra. Aqui decido tomar o ramo da direita, rumo leste. A via então prossegue apenas mais um pouco pela crista, em suave ascensão, quando os primeiros degraus e aderências rochosas da Pedra do Lagarto surgem á minha frente. Pronto.
E assim, por volta das 11h15min, piso pela enésima vez nos 1090m das aderências graníticas da Pedra do Lagarto e que agora faz parte da Reserva Botujuru, onde me brindo com uma breve parada pra descanso. Apesar de pisar aqui incontáveis ocasiões, ainda me encanto com a bela panorâmica que este mirante proporciona, privilegiando basicamente o quadrante norte e voltada para o Vale Paraíba do Sul. Ali se enxerga desde vestígios da urbe de Mogi emoldurada pela mata, ao sul; as corcovas florestadas do restante da crista serrana, a oeste; e a horizontalidade de Santa Isabel e Igaratá quebrada pelas Serra de Piracaia e do Itaberaba, recortando o horizonte ao fundo, ao norte. E no meio disso tudo observo atentamente uma elegante e verdejante crista que se eleva, separada de mim por um estreito vale, que é onde se encontra a pedra que pretendo alcançar ainda naquele dia.
Depois de um breve relax e alguns goles de água retomo minha chinelada, bem mais disposto, retornando ao cruzamento do selado divisor de cristas supracitado. Ali me pirulito pela vereda que mergulha na mata pro norte, descendo por um caminho bem precário, estreito, íngreme, repleto de pedras e trechos úmidos. Mas não demora pra trilha suavizar e tornar a caminhada mais amena, embora a rota deste lado da serra seja muito mais rústica e menos visada que a que leva á Pedra do Lagarto. No trajeto olho atentamente e me deparo com um antigo forno de carvão engolido pelo mato, mocado discretamente na encosta direita.
Mas por volta da cota dos 1000m tropeço com uma evidente bifurcação. Aqui o sentido a tomar é visivelmente o ramo da direita, pro norte, mas aqui eu me dou o luxo de fuxicar o ramo da esquerda, isto é, que vai pra oeste. E assim foi, toquei inicialmente por um caminho que desce suave por aquele lado da serra, através duma vereda bem mais precária que a anterior (às vezes com mato no caminho), mas perceptível e agora sempre em nível. Este trajeto está repleto de belos rochedos de ambos os lados, enormes monólitos que eventualmente parecem nos emparedar e outros encravados nas dobras serranas á esquerda. Outra coisa que encontrei foi vestígios de acampamentos de caçador abandonados, sinal que os extrativistas ilegais viram e mexe dão as caras destes lados da serra. Parei a breve exploração quando percebi que o caminho faria um zigue-zague de modo a subir á crista novamente, uma vez que meu objetivo naquele dia era outro. Mas fica aqui a dica pra você dar continuidade a essa trilha e me contar o que descobriu.
Voltei á bifurcação e dei continuidade á descida anterior, chinelando por uma trilha bem mais pisada em meio a muita, mas muita vegetação. Pelas frestas da mata conseguia avistar o verdejante morro, bem a minha frente, que teria que subir depois daquele vale. E assim fui perdendo mais e mais altitude, quando a vereda se tornou uma enorme vala onde em determinados trechos me vi quase emparedado por altas encostas de ambos os lados. Foi aí que meus ouvidos captaram o inconfundível som de água correndo bem próximo, sinal que já estava chegando ao fundo do vale.
Dito e feito, por volta das 12h40min saltei sobre pedras de modo a transpor as águas cristalinas de um afluente do Córrego da Divisa, mais conhecido como Córrego do Lambari e que inclusive é o que empresta seu nome aquela outrora antiga estrada. Ali, na cota florestada dos 900m, me dei um breve pit-stop pra molhar o rosto e reabastecer meu cantil com o precioso líquido. Dali a vereda acompanhando vale do supracitado córrego, agora á minha direita, com perda de altitude imperceptível até que finalmente abandona a mata e desemboca num enorme descampado, na verdade um local chamado de Vale das Pedras, pouco antes das 13 horas. O lugar é um largo e vasto ombro de serrano na cota dos 850m, forrado de pasto repleto de pedras pipocando aqui e ali, justificando seu nome. A vista é muito bonita e privilegia as colinas, descampados e fazendas ao norte.
Pois bem, dali azimutei pra sudoeste e fui me enfiando na mata atrás de algum acesso naquela direção. Mas não tardam a surgir breves trilhos de boi que vou emendando ao mesmo tempo em que ganho avanço entre os arbustos do caminho, até alcançar as primeiras íngremes rampas de pedra. Uma vez nelas basta só subir onde der e logo vou ganhando altitude, aos poucos. Por via das dúvidas vou deixando totens de pedra no caminho pra me valer deles pra volta.
Sempre subindo pra sudoeste termino caindo num ombro de serra florestado, onde existem vestígios de um rústico acampamento dividindo espaço com dois enormes rochedos no centro. Desse ombro serrano, que nada mais é um dos extremos da crista, bastou tocar pra direita através dum rabicho de trilha que logo me levou ás primeiras lajotas do alto. E assim fui, alternando breves rampas de pedra com eventuais focos de mata, avançando pela crista por meio de precárias veredas existentes. Não tem erro, aqui basta seguir pelo alto sempre na direção apostada pela bússola, desviando dos obstáculos do trajeto.
No cume
Até que enfim, às 13h30min, saí do mato e pisei um lugar que imediatamente reconheci como a Pedra do Lagartão. “É aqui!”, pensei ao pisar no enorme dorso de pedra que se espichava no alto pra sudoeste, até findar num abrupto foco denso de mata. Como disse, o lugar tem as mesmas feições da Pedra do Lagarto, mas ali é tudo elevado a enésima potência pelas dimensões envolvidas. Sentado num pequeno afloramento rochoso cercado de bromélias e quase a beira de um enorme penhasco de mil metros voltado pro norte, a vista privilegia todo aquele quadrante, sendo possível avistar até os pequenos vilarejos do Jardim Vieira e Beija-Flor. Por sua vez, na direção oposta temos a Serra do Itapety guardando a ilustre pedra anteriormente visitada, elevando-se acima de mim. Lixo? Nenhum, claro.
Dono absoluto daquele enorme belvedere rochoso me brindei com um prolongado descanso com direito a lanche reforçado. Mas decidi retornar assim que reparei o céu ficar repleto de nuvens gordas. E assim, após quase meia hora naquele belo lugar coloquei as pernas pra funcionar, refazendo o mesmo caminho, porém no sentido contrário, sem problemas. Uma vez no Vale das Pedras foi só mergulhar novamente na mata, e dali retornar pela precária vereda anteriormente palmilhada. Mas ao cruzar o fundo de vale do Ribeirão Lambari não pensei duas vezes em buscar algum bom remanso, rio abaixo, para um refrescante tibum, lugar este que não foi difícil de encontrar.
Revigorado, retomei minha chinelada serra acima em ritmo moroso, porém compassado. Desta vez passei batido pela Pedra do Lagarto e desci assim toda trilha até seu início. Por incrível que possa parecer durante toda minha incursão não cruzei com ninguém no caminho, justificando provavelmente o mato crescido tomando conta do caminho. Dessa forma terminei chegando à estação Estudantes pouco depois das 16 horas, a tempo suficiente de garantir uma cerveja no mercado logo ao lado pra dali retornar pra Sampa. Da ameaça de chuva que pareceu ter, nem sinal…
Dos serrotes domésticos de Sampa, a Serra do Itapety é a mais próxima e acessível a qualquer andarilho. Com suas largas e altas encostas forradas de mata secundaria guardando a cidade de Mogi das Cruzes, o Itapety está recheado de caminhos pra todos os gostos, boa parte deles oriundos de antigas veredas de reflorestamentos desativados. Muitos deles simplesmente percorrem a esmo os contrafortes da serra enquanto outros levam a incríveis mirantes, alguns mais conhecidos como o Pico do Urubu e Pedra do Lagarto; enquanto outros, menos visados, levam a belvederes isentos de toda e qualquer visitação, como a Pedra do Lagartão, que é apenas uma extensão do role da pedra-réptil mais notória, como descrito neste relato. Não tem muito segredo. No entanto, a sentinela de Mogi das Cruzes tem mais lugares semelhantes e nada pisados, como o Mirante Beija Flor, a Pedra da Seriema, da Porteira Preta e da Cabeluda, entre outros. Sim, são caminhos menos frequentados, muito mais rústicos, alguns ainda pra serem abertos na raça, vislumbrando convidativas perspectivas de vindouras aventuras para um dia de tempo bom. E isso numa Serra do Itapety bem do ladinho da urbe, porém ainda longe dos holofotes do ecoturismo convencional.