Calado

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Não me recordo como descobri a história que narro a seguir. Ela ficou esquecida por anos no meu arquivo. Exceto pela introdução, o texto basicamente resume o belo artigo de David Arioch. Este jornalista e historiador é natural de Paranavaí e tem um longo engajamento na preservação da cultura paranaense e na luta pela causa dos animais.

Calado

Chimangos e maragatos: Devido à sua proximidade com as colônias espanholas, a história do Rio Grande do Sul teve aspectos próprios, diferentes dos do restante do Brasil. Um deles foi o governo de Júlio de Castilhos, que liderou por mais de uma década a província com mão de ferro. Contra ele se insurgiu sem sucesso a Revolução Federalista no fim do século XIX.

Nesta época, a província se dividiu entre chimangos e maragatos. Os primeiros eram conservadores e autoritários, contando com o apoio do governo central. Os segundos eram liberais e progressistas, pregando o regime republicano e a autonomia das províncias. Os maragatos usavam lenços vermelhos no pescoço e os chimangos portavam lenços brancos.

Castilhos teve morte prematura no início do século XX e foi sucedido por Borges de Medeiros, que manteve a mesma política de força. Cerca de vinte anos depois, Borges resolveu candidatar-se novamente ao governo e sua vitória fraudulenta resultou na Revolução de 1923, quando maragatos e chimangos voltaram a guerrear.

Representação de soldados chimango e maragato, facções políticas opostas no Rio Grande do Sul. O termo chimango foi usado por mais de um século na política.

Com a derrota dos maragatos, houve uma paz negociada, que reformou a constituição autoritária da província, mas permitiu a Borges concluir seu mandato. Ele foi sucedido por Getúlio Vargas. Com a Revolução de 1930, Vargas assumiu o governo do Brasil.

Paranavaí: Entre as mais jovens regiões do Paraná colonizadas a partir da penetração do café vindo de São Paulo figurou a imensa zona situada a noroeste, ao longo das bacias dos rios Ivaí e Paranapanema, nos limites do PR com o SP e MS.

Embora desde cedo o Paraná tivesse sido percorrido por espanhóis, portugueses e bandeirantes, o norte do Estado ficou esquecido durante quatro séculos. O povoamento da região de Paranavaí só teve início a partir de 1920, em terras do Estado. O único acesso então era uma estrada que, saindo de São Paulo, cruzava o curso do Paranapanema.

É nesta época que se passa a história que vou narrar a seguir. No decorrer dos anos, o povoamento mudou para o local da Fazenda Brasileira, de terras virgens e férteis que receberam grandes plantações de café. Mas a colonização foi interrompida quando as terras reverteram para o controle do Estado.

Só a partir de meados de 1940, com a chamada Colônia Paranavaí, a região voltou a crescer regularmente. Este foi o nome criado para se referir aos rios Paraná e Ivaí, que drenam esta bonita região.

Paranavaí se originou da madeira e do café. Sua origem foi a Fazenda Ivaí, depois seguida pela Fazenda Brasileira. Sua violenta colonização levou mais de 30 anos.

A Prisão de Maurício: No ano de 1894, um rapaz chamado Maurício, então com 19 anos, foi preso em sua casa em Paranaguá. Os soldados acharam uma caixa com um lenço vermelho e o rascunho de uma carta que teria sido entregue ao chefe dos maragatos. A carta continha a localização de uma fazenda que poderia abrigar os insurgentes, na sua luta contra os chimangos de Julio de Castilhos.

Apesar de Maurício dizer que a caixa não era sua, foi levado a um porão ensanguentado. Mantido com os braços suspensos por uma corda, foi agredido por dois chimangos. Lá o oficial Justo aconselhou que confessasse.

Quando Maurício negou, Justo começou a macerar as folhas amarelas de uma flor, dizendo: Meu rapaz, veja que dádiva de flor! Pode ser tão bela aos olhos como maligna ao corpo. Há de concordar comigo em breve.

Justo esfregou nas axilas e nas costas do rapaz o unguento que fizera. A dor foi horrível, seus pelos caíram, a pele queimou e Maurício desmaiou. Mas mesmo assim não confessou. Foi então levado para embarcar num navio que o levaria para ser julgado no Rio de Janeiro.

Porém o oficial da escolta confessou que, na realidade, ele estava sendo levado para a morte. E que percebera que era inocente – disse então deixarei você viver sob duas condições: suma daqui e nunca procure seus pais, ou voltarei e matarei toda sua família.

Em 1896, Calado entrou na floresta e nunca mais voltou. O norte paranaense possuía muita madeira de lei, como perobas, cedros e ipês. (Fonte – Fundação Cultural de Paranavaí).

Maurício fugiu até a floresta e furtivamente procurou os pais. Disse-lhes que devia partir e não aceitou dormir uma última noite em casa. Despediu-se dos pais e da irmã Sofia, então com dez anos. Muito tempo depois, disse que o eco da voz de sua mãe o acompanharia por toda a vida.

A Fuga de Maurício: Maurício juntou-se a um grupo de tropeiros, viajando até Sorocaba. De lá, partiu a pé até o norte paranaense. Trabalhou duramente numa fazenda na derrubada da mata, onde percebeu que se sentia bem pela primeira vez desde que fugira.

Às vezes acordava assustado e suando. Assim conta sua sobrinha-neta:  Nunca mais foi o mesmo. Tinha fortes dores de cabeça e de estômago, delírios, medo constante de morrer, agravado por uma ansiedade sem fim. Sonhava com a família todos os dias, só que decidiu nunca mais procurá-la por receio de represália.

Desprezado pelos peões com quem trabalhava, foi num dia de 1896 agredido por um deles e zombado pelos demais. Avesso à violência, Maurício não falou nada, foi até sua barraca, juntou seus pertences e desapareceu na floresta para não mais retornar.

Iniciou uma jornada sozinho, onde aprendeu a viver na mata, comendo os frutos da natureza, dormindo abrigado sob as árvores e sobrevivendo nu.

Calado: Maurício só interrompeu sua travessia na floresta em 1898, quando encontrou uma onça pintada ferida. Arrastou-a até um riacho, deitou-a na relva e estancou sua ferida. Por dez dias ele a tratou, sem que a onça jamais o ameaçasse.

Pois ele já era uma criatura da floresta, aceito pelos índios caiowá e caingangue, que o chamavam de Saru, ou seja Calado em tupi-guarani, pois ele não mais falava.

Passados alguns meses, Calado encontrou a onça numa árvore. Ela desceu e deixou que ele a agradasse. Tempos depois, cansado de peregrinar, construiu uma casa de madeira no alto de uma gameleira, onde é hoje a cidade de Paranavaí.

Numa madrugada, notou as patas de um animal contra a parede: era uma visita da onça, a quem passou a chamar de Sofia, como sua irmã. Ele conviveu com Sofia por mais quinze anos.

Por volta de 1914, Calado ouviu um tiro e encontrou Sofia e seu filho mortos. Era um grupo de quatro caçadores. Um deles cutucou sorrindo a onça e comentou como fora fácil matá-la em seu próprio ambiente.

Calado aprendeu a se vingar dos caçadores que penetravam na floresta nativa do norte paranaense. (Fonte – Ordem do Carmo).

Calado controlou sua raiva e distraiu escondido os caçadores à noite, colocando veneno de rã nos seus cantis. No dia seguinte, estavam mortos.

Calado enterrou Sofia e seu filho numa colina na floresta, num local onde os animais menores passavam o dia brincando. Apareceram outros filhos de Sofia, bem como antas, pacas, jaguatiricas, veados, lobos, bugios e aves. Ele achou que aquele manso encontro entre os animais parecia uma homenagem à sua amiga morta.

O Guardião da Floresta: Passados dez anos, Calado percebia cada vez mais pessoas abrindo picadas na mata, mas ela era grande o suficiente para protegê-lo dos colonizadores. Desde a morte de Sofia, Calado tornou-se o guardião da grande floresta nativa onde ia crescendo a urbanização de Paranavaí.

Não mais tinha os índios para ajudá-lo: os caingangues foram dizimados e os caiowá afastados para a fronteira. O jovem Calado aprendeu a ser tão ágil, forte e silencioso quanto os animais. Cabeludo e barbudo, fino e moreno, tomou a floresta como seu lar.

Quando outra onça pintada foi morta na década de 1930, Calado fez de suas garras uma luva e a embebeu no veneno de rã. De manhã, ele se ajoelhou e fez uma oração à natureza, para cobrar o sangue daqueles que haviam derramado o sangue. Ao longo dos anos, abateu mais de vinte caçadores, que matavam por ganância ou diversão.

Os corpos eram abandonados nos carreadores para que as famílias pudessem enterrá-los. Ninguém nunca desconfiou que aquelas mortes pudessem ter sido causadas por um homem, relembra sua sobrinha-neta. Mesmo à distância, Calado sempre soube qual era a intenção dos sertanistas, se eram ou não perversos.

Onça caçada em Paranavaí, numa foto da década de 1940 (Fonte: Museu Paranavaí).

Reencontro com a Irmã: Em 1937, Sofia viajou com o marido até Fazenda Brasileira para comprar uma propriedade. Enquanto este conversava com o corretor, aproximou-se de uma lagoa onde havia um homem nadando.

Ao falar com ele, reconheceu seu irmão. Mesmo com 60 anos, ele parecia mais jovem do que ela – e os olhos vivos eram os mesmos de antes. Mas, acostumado ao silêncio, Calado não conseguia falar.

Os irmãos ficaram juntos e foi só no terceiro dia que Calado começou a contar sua vida a Sofia. Ela lhe disse que fora um rapaz quem plantara as falsas provas em sua casa, pois tinha ciúmes da relação de Maurício com uma moça e queria afastá-lo. Mas ele não se abalou, o mundo e o passado já não lhe importavam. Só chorou quando soube da morte dos pais.

Sofia tentou convencer Maurício a se mudar para Curitiba, onde ela morava. Ele recusou, disse que nada mais o interessava na vida dos homens e a abraçou. Correu para a floresta onde se livrou das roupas que usava, despindo-se assim da civilização. Sofia retornou muitas vezes a Paranavaí, procurando em vão por Calado.

Calado Imortal: Nas décadas seguintes, entre 1950-60, e à medida que a região se tornava mais populosa, houve vários relatos em que Calado fora avistado. Tenho certeza de que o vi atravessando tranquilamente por trás das árvores, disse um dos pioneiros da região, referindo-se ao ano de 1976.

Um senhor chamado Amâncio Bonavero o viu correndo pelo campo em 1993, o que significa que estaria vivo e saudável com quase 120 anos. Tem gente que acredita que Calado ainda não morreu. Eu sou um desses. Não o vemos mais por que ele ainda evita o contato com as pessoas, disse ele.

Longe dos humanos e no meio da natureza, pode ser que Calado tenha se tornado eterno. Pelo menos enquanto houver floresta no norte paranaense.

Havia a coletividade, mas sem articulação social. A maior parte das pessoas vinha para cá só por interesse econômico. Não socializavam quase. Assim surgiu uma sociedade com uma colonização bruta.

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Sobre o autor

Nasci no Rio, vivo em São Paulo, mas meu lugar é em Minas. Fui casado algumas vezes e quase nunca fiquei solteiro. Meus três filhos vieram do primeiro casamento. Estudei engenharia e depois administração, e percebi que nenhuma delas seria o meu destino. Mas esta segunda carreira trouxe boa recompensa, então não a abandonei. Até que um dia, resultado do acaso e da curiosidade, encontrei na natureza a minha vocação. E, nela, de início principalmente as montanhas. Hoje, elas são acompanhadas por um grande interesse pelos ambientes naturais. Então, acho que me transformei naquela figura antiga e genérica do naturalista.

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