Alfa-Ômega Invertida 48h

5

Sabe aqueles convites que você primeiro aceita depois corre atrás? Esse foi desse tipo. Percorrer a lendária Alfa-Ômega, aproveitando para passar por alguns de seus pontos históricos e ainda fazê-lo na companhia de grandes amigos, sem pressa e curtindo, em 3 dias de tempo bom.

A proposta surgiu durante a famigerada, molhada e morosa travessia da Serra da Farinha Seca. Enquanto batíamos os dentes de frio e sonhávamos acordados com um banho quente, combinávamos os detalhes: a data seria “móvel”, para permitir a melhor janela climática possível. Faríamos a partir da segunda quinzena de julho, quando boa parte dos candidatos estaria em férias.

De volta à civilização, aquecido e alimentado, tratei de dar andamento aos estudos para a travessia. Li todos os relatos que encontrei, nos diversos sites que registram essas maluquices que tanto amamos e servem de repositórios das informações compartilhadas. Baixei também todos os tracklogs disponíveis e os organizei de forma cronológica. Assim, não só consegui identificar os pontos em que nossos predecessores tiveram
maiores dificuldades com a navegação, como também os pontos de água e os alertas quanto às perigosas gretas. Cotejei todas as informações para o caltopo, onde preparei dois conjuntos de mapas. Os menores, eu levaria na copa do chapéu. Os maiores, deixaria na mochila, para consulta nos pontos de parada. Fiz cópias adicionais para os companheiros de trilha. Aqui abro um espaço para registrar um sincero agradecimento aos que abriram essas trilhas que palmilhamos. Se o fulano pensa que anda muito, por percorrer o que ja existe, imagine fazê-lo sem todos os recursos de que se dispõe hoje, varando mato e desbravando os semi-virgens e impérvios chavascais. Tarefa de gigantes.

Planejamento – mapa no formato “grande” – parte 3 de 4.

Preparando as tralhas

Cargueira arranjada

O time para essa empreitada seria bemmm seleto. Não há porquê insistir no erro, né? Compondo o esquadrão masculino, teríamos: Douglas, Guilherme, Rafael e eu. Representando o sexo mais belo e forte: a Amanda Mascaro. Infelizmente, a data impedia a participação de alguns amigos, e tivemos que nos resignar. Equipe reduzida, mas coesa e homogênea quando a determinação, com muita cancha para superar eventuais
adversidades.

Fazendo valer o combinado, acompanhamos a evolução das massas de ar que subiam o litoral paranaense e que traziam chuvas, buscando identificar a janela de três dias para fazermos a pernada. Apesar de já estarmos avançados no inverno, a proximidade entre a serra e o mar, torna o tempo ali mais instável e de difícil previsão, de forma que os modelos climáticos divergem com razoável frequência. Com a proximidade das datas, eles tendem a convergir um pouco melhor, então com o intuito de priorizar o bom tempo, constatando que as nuvens estavam dando espaço ao sol, na quinta batemos o martelo por começar a travessia na madrugada de sábado. Teríamos o sábado com tempo espetacular e o domingo, com tempo mediano. Para aquelas plagas, esse cenário pode ser o “ótimo possível”. Isso nos obrigava a replanejar o rolê, buscando concluí-lo em apenas dois dias. Com o alto nível técnico e de condicionamento dos colegas de trilha, não havia muito dúvida quanto a viabilidade da proposta. Originalmente, planejávamos acampar a primeira noite no cume do Pelado, e a segunda noite no Boa Vista.

Com a redução do número de pernoites na trilha, optamos por manter o primeiro acampamento, fazendo o segundo dia um pouco mais extenso. Dessa forma, iniciaríamos o segundo dia bem cedo, antes do clarear e mesmo que pegássemos chuva ao longo do dia, estaríamos à caminho da civilização e de seus confortos. Também consideramos que era crítico chegar a parte estruturada ainda com luz do dia. Dessa forma a descida seria mais uma questão de “quando” do que de “se” conseguiríamos completa-la. Data definida, continuamos a acompanhar a evolução do tempo, sempre em vista de evitar repetir a má gestão de datas da Farinha Seca.

Na sexta, com a decisão final de trilharmos no dia seguinte, revisei a minha cargueira, retirando a alimentação da segunda noite. Reforcei os doces e os petiscos de trilha. Separei alguns mimos para a Amanda, que pelo conjunto de alergias e por ser vegetariana, podia ter alguma dificuldade com o compartilhar dos petiscos do grupo. Levei, como surpresa de trilha, tabletes de sementes de abóbora e gergelim, carameladas. Tomei o
cuidado de experimentar antes, assim, caso ela não apreciasse, eu comeria, rsrs. Eram leves e bem calóricos. Procurei arranjar a mochila de forma que ficasse compacta e leve. Da avaliação dos relatos, dos tracklocs e das cartas topográficas, considerei que teríamos diversos pontos de água, ainda mais por fazermos a travessia entre frentes de chuva. Dessa forma, eu andaria o dia todo com apenas 1 litro de água, repondo conforme oportuno. Aproveitaria para me hidratar mais nos pontos de água, com sucos de limão e de abacaxi. Ao final do dia, antes de acamparmos, completaria meu inventário de água, enchendo a segunda garrafa com mais 1 litro para cozinhar.

Tomei o mesmo cuidado com a alimentação, buscando levar alimentos de fácil preparo, saborosos e nutritivos. Optei por purês de batata com acompanhamentos diversos. Legumes, dois tipos diferentes de cogumelos, proteína de soja com sabor de bacon, queijos ralados. Para aquecer antes de dormir, 6 pacotes de chá de hortelã e adoçantes.

Na sexta nos encontramos com o Douglas na rodoviária do Tietê a tempo de pegar o ônibus das 19:30, com previsão de chegada em Curitiba, sábado 2:30. O Rafael seguiria direto, nos encontrando na rodoviária de Curitiba. O Guilherme e o Dindo, amigo do Gui de outras pernadas, nos esperariam lá, com o transfer combinado para nos levar ao pé da trilha (Morro do Canal) e nos resgatar do outro lado, no Macuco. A viagem seguiu
tranquila, com sonecas e uma breve parada para lanche, aproximadamente no meio do trajeto. Apesar do trânsito para a saída de SP, às 02:39 estávamos no aguardo do Rafael, enquanto o Douglas já adiantava o café da manhã. O Rafael chegou às 03:20 e pouco após as 03:30 seguimos para o início da trilha.

Dream Team na base do canal. Guilherme, Douglas, Rogério, Amanda, Rafael e Dindo.

Fizemos uma foto para registro, e iniciamos a subida do Morro do Canal às 04:46. Subimos céleres, aproveitando o luar que a tudo iluminava. Com o arrebol do amanhecer tingindo o céu de tons de laranja e vermelho, após cumear o Canal (1338 m) às 06:11, seguimos em direção ao Vigia. Fizemos uma rápida parada para apreciar o nascer do sol, e no que ia retomar a caminhada, notei que perdera uma ponteira de um dos bastões. Pedi que esperassem e toquei de volta, acelerado, em busca. Com isso, a coleção de erros cometidos por mim, só aumentava: o GPS principal insistia em não funcionar (falha de conhecimento no uso do aparelho). Não havia dado o aperto devido à trava do bastão (displicência). Agora fizera a volta por sobre meus passos acelerada, na tola ideia de que ao vir no mesmo sentido da ida, seria fácil encontrá-lo ainda que no escuro, à luz da lanterna. Com isso, claro, que não só não o encontrei como ainda perdi a direção até meus companheiros, nos diversos caminhos de rato que existem no cume. Escolhi um sentido que fazia sentido pelo que lembrava (eu era o “fecha”, portanto apenas seguia, enquanto tentava me acertar com o GPS do celular) para logo perceber que estava errado. Corrigi, buscando uma passagem mais à esquerda, para me enfiar numa grota que era bem pior do que me lembrava ao passar… claro, estava errado, de novo. O nível dessa passagem era de arrepiar, fiz a volta, me agarrando com as unhas na terra molhada, e confiando nas poucas raízes existentes. Chamei meus companheiros. Ouvi vozes, não sabia precisar se em resposta ou não. Voltei em direção às vozes e me vi novamente no cume. Fiz nova investida na direção do sol que nascia, já que há pouco estávamos caminhando em sua direção. Nova sequência de esquerdas e me vejo novamente na mesma grota que passara, ressabiado, há pouco. Escutei o Rafael me chamar e sinalizei onde estava. De fato, ele estava ainda mais à esquerda, pelo som. Combinamos de que eu voltaria ao cume e de lá seguiríamos juntos até o restante do grupo. Conhecedor dos caminhos de rato dali, em segundos estava novamente no cume, e após nos encontrarmos (e eu agradecer a gentileza de me resgatar daquele rodear sem fim) começamos a retornar em direção ao restante do grupo. Só que … no meio do caminho tinha uma grota. Aquela mesma grota que eu já visitara 2 vezes, achou por bem se posicionar em nosso caminho. Ao ver o precipício já conhecido, informei ao Rafael que ali não podia ser, de forma que voltamos mais um pouco e encontramos a passagem à esquerda que me escapara nas duas vezes anteriores. Agora o caminho batia com o que eu me lembrava e rapidamente alcançamos o outros. Quando estávamos a menos de 5 m deles, vejo a ponta do meu bastão a brotar da terra como haste de lírio-do-campo. Pedi desculpas a todos pelo tempo dispensado e agradeci a Amanda que, preocupada com minha demora, pedira ao Rafael para que fosse me buscar.


A trupe paulista, no começo da pernada (Morro do Vigia).

Com a trupe reunida, retomamos a caminhada, agora em busca do Morro do Vigia (1362 m), que alcançamos às 07:17 onde fizemos nova parada pra fotos, dividindo o cume com um pessoal que estava na travessia Canal – Torre Amarela e ao retomar a caminhada, o fizemos pelo lado errado do cume, o que nos levou a uma sequência de pequenos perdidos, descendo íngremes trechos abertos por trilheiros perdidos anteriores. Em dois desses perdidos, chegamos a encontrar fitas antigas, mas o caminho de fechava algumas dezenas de metros à frente. Retomando ao cume e descendo pelo lado certo, ficou nítida a diferença na frequência, com o caminho correto muito mais “batido” que as variantes antigas (e abandonadas com a vegetação em recuperação). Seguimos em passo forte, até uma placa indicando “Canal/Torre Amarela” que havia sido vandalizada. Triste constatação de que mesmo em meio as trilhas, o ser humano encontra tempo para destruir o trabalho do outro.

Inicio do trecho exclusivo Alfa – Ômega.

Nesse ponto, deixamos a trilha da travessia do Canal pela direita (direção nordeste) pelo colo e subimos brevemente até alcançar o primeiro cume exclusivo da travessia A-O, o Ferradura (1375 m) às 8h38. Nesse trecho eu seguia desconfortável, pois com o tempo perdido no atraso do ônibus do Rafael, mais o resultante da busca do meu bastão, acabara por responder de forma por demais assertiva à proposta de uma parada para café da manhã, do Guilherme. Assertiva? Grossa, rude mesmo. Fazendo o fecha do pelotão e com dia que havia nascido ensolarado, eu seguia esperando a oportunidade de desfazer o mal-entendido e, desanuviar a má impressão que supunha ter criado com o Guilherme e o Dindo, que talvez contassem com a pausa para lanche. Andando rápido, com o Rafael à frente, caçando a trilha, a Amanda conferindo e eu fazendo o duplo check e o fecha, fizemos uma navegação primorosa nesse trecho, logo chegando ao cume do Ferradura. Ciosos do que ainda nos aguardava de caminhada para o dia, seguimos em frente, agora em direção ao Carvalho, onde faríamos um rápido ataque aos restos do acidente aeronáutico de 1968.

Procuramos não nos distanciarmos demasiado do pelotão paranaense ao ponto de deixar de ouvir suas vozes, de tempos em tempos. Saberíamos depois que havia ocorrido uma perdida, com eles seguindo algum tempo por outra vereda, o que lhes tomara algum tempo para corrigir. Após uma subida um pouco mais forte, chegamos juntos ao cume do Carvalho (1445 m) às 10h, onde uma batida picada à direita dava acesso à encosta onde
estão os destroços. Pedi que seguissem para lá com brevidade e me dessem privacidade para cavar um banheiro. Mal sumiram na mata, sai da trilha uma dezena de metros e, premido pelo tempo e necessidade, fiz a obra. Aliviado, mais leve e com a higiene feita, toquei em seguida ao encontro dos companheiros de trilha, me orientando pelas vozes por uma miríade de passagens abertas na encosta, remanescentes dos trabalhos de busca dos acidentados e investigação das causas. Há muitos relatos de perdidos nesse trecho, justamente em função das diversas trilhas que permitem acesso a diferentes partes dos destroços e que formam uma “rede” em que o trilheiro mais afoito e com menos tarimba acaba por se enredar. Encontrada a trupe, fiz alguns registros fotográficos e, juntos retomamos às cargueiras. Nesse ataque, como eu já havia desequipado da cargueira, optei por fazer apenas com levando o óculos de sol e o celular… se ocorresse de errar a direção
de retorno, seria um problema. Felizmente, não houve dificuldade em identificar o caminho correto e em pouco tempo, estávamos novamente com as mochilas para avançar até nosso próximo ponto da pernada: o Acampamento Fantasma.

Esse seria o ponto, um colo entre o Carvalho e o Sem Nome, com uma pequena elevação à noroeste, de solo arenosos e plano e com uma boa oferta de água, em que, alguns dizem ter sido onde os sobreviventes à queda do avião teriam se dirigido para pernoite. Nesse ponto que as temperaturas baixas da serra teriam vitimado a maioria, por hipotermia. A lona e os demais materiais observados ali não permitem afiançar essa suposição. Todos os materiais que vi ali são de fabricação mais recente. Década de 80/90 talvez. Fizemos uma pausa um pouco afastados do acampamento, com direito a suco e petiscos. O Douglas atacou um dos 6 lanches que levava e o Guilherme um hamburgão de responsa.

Recolocamos as mochilas e tocamos em frente, subindo o Sem Nome (1413, 12:05), depois descendo sua encosta em direção ao colo e subindo um pequeno morro sem identificação, antes de subir se forma mais intensa até o cume do Mesa (1374 m e 14:06) . Reflexo das chuvas dos dias anteriores, todos os pontos de água estavam ativos, o que me tranquilizou quanto a estratégia de levar pouca água e andar mais leve, na maior parte
do tempo. As rajadas de vento faziam a vegetação trabalhar e, nos pontos com árvores maiores, o balanço dos troncos chegava a impressionar. Passamos por sob um grande tronco podre de uma árvore enorme (GAP 1297 m, 14:25), há muito morta, que gemia e estalava sob a força dos ventos. Decidimos ali, que bivacaríamos, se preciso fosse, mas que não acamparíamos expostos ao vento ou ao risco de queda de galhos maiores ou
mesmo de árvores inteiras, dadas a previsão de rajadas ainda mais fortes durante a madrugada.

Naquela parte do bosque da encosta, eram muitas as árvores que oscilavam com as rajadas, uma em especial chamava atenção: o solo pulsava, como se uma imensa topeira estivesse a cavar uma saída de sua toca… a explicação, ainda que menos fantasiosa, não deixava de surpreender: o solo composto por um intrincado sistema de raízes, era movido quase que 50 cm na vertical com o trabalhar da copa das árvores. Essa área em especial tinha pouco menos que 2 m quadrados, a trilha passava por sobre ela, e o efeito da oscilação tinha um “q” de surreal. Talvez, alguém romântico observasse que ali, batia indômito o coração da Serra do Marumbi. Que fique bem claro, digo alguém dotado de romantismo no observar da natureza, não era meu caso, tosco materialista. Eu me apresei a sair de perto de tal demonstração de poder da natureza. Continuamos a descer a encosta, fazendo breves desvios onde a queda de árvores obrigara a trilha a mudar de traçado.

DIAS de GLÓRIA e DIAS de LUTA. Ainda havia muito a se caminhar nesse dia

Iniciamos a longa subida para o Alvorada 4 (1416 m), cumeado às 15:45. A partir dali, avançamos sem ganhar ou perder altura substancial pela linha de crista do Alvorada 3 (1423 m, 16:15) e finalmente, o Alvorada 2 (1408 m, 16:30). O vento não amainara, antes parecia que continuaria a se intensificar, desaconselhando fortemente o acampar nos cumes expostos à sua fúria. Passado o cume do Alvorada 2, continuamos a caminhada,
em direção ao ponto de acampamento pretendido, na florestinha de encosta na base do Pelado. Atravessando primeiro o selado entre o Chapéu e Chapeuzinho, para depois costear o Espinhento e, já com as lanternas trabalhando para romper a escuridão da noite, finalmente alcançar um ponto de acampamento “ruim, mas suportável” (1267 m, 21:10) onde duas pequenas áreas permitiriam a pernoite de parte do grupo. O risco de, avançando encosta acima não encontrarmos área adequada para que os 6 pernoitassem juntos, nos
fez optar por parar no “bom” ao invés de buscar o “ótimo”, por nós desconhecido. Decisão de pernoite em grupos separados tomada, eu, Amanda e Rafael, daríamos jeito de nos acomodarmos ali e o restante do grupo, Guilherme, Douglas e Dindo seguiriam em frente até a área apontada como “abrigado bom” no registro do Guilherme.

Sem Nome, com o Mesa e a ponta dos Alvoradas. Ao fundo, Serra da Farinha Seca e a Serra do Ibitiraquirê.

Enquanto nossos companheiros seguiam encosta acima, tratamos de preparar a área de acampamento o melhor possível, removendo pedras e galhos que poderiam furar as barracas ou resultar numa noite desconfortável. Com as áreas que tínhamos disponíveis ali, eu e a Amanda optamos por um bivaque sob a copa das árvores, já que não havia nenhuma previsão de chuva. O Rafael montou o habitáculo da sua barraca, se isolando dos insetos que avoavam próximos, atraídos pela claridade das lanternas. Enquanto a Amanda arrumava as tralhas de dormir e buscava o estojo para guardar a lente de contato e o banco de baterias, coloquei o relógio para recarregar e fui preparar a janta. Dessa vez, eu levara dois bancos de bateria de 5.000 mAh cada, porém um deles, ao que parecia, estava descarregado… . Paciência, só se para de aprender, um tempo após o corpo esfriar, abrigado pela terra da sepultura, kkkk.

O Douglas desceu do ponto de acampamento superior relatando que era um lugar espetacular para bivaque, mas que não caberia (bem) todas as barracas… como já estávamos com acampamento montado, optamos por permanecer onde estávamos e combinamos de fazer a alvorada 4:00 para nos reunirmos ao pessoal do acampamento avançado às 05:00 e tocarmos em frente, na exigente subida do Pelado, até seu cimo, onde
repousa uma das asas do avião sinistrado. Ao que parece, no processo de extração dos destroços o vento tornou a remoção da asa temerária, pelo que a a operação teria sido abortada e o material abandonado ali.
Para a janta preparei duas porções de purê de batatas com brócolis e legumes e duas de purê de batatas com proteína de soja sabor bacon, acompanhados de mix de queijos ralados. Para beber, tivemos uma limonada fresca e chás de hortelã quentes. De petiscos servi dois tipos diferentes de cogumelos, reidratados na água quente, temperados com sal, pimenta e um pouquinho de manteiga. Constatado o “esquecimento” do banco de baterias e do estojo de lentes da Amanda, lidamos o melhor possível: emprestando um banco de baterias do Rafael e dividindo meu estojo de lentes com a Amanda, já que em ambos os olhos, usávamos lentes de mesmo
grau; o que permitia guardar os pares juntos. Já alimentados e trocados, estendemos os sacos de dormir e partimos para os braços de Morfeu.

2ºdia

A alvorada estava prevista para 04:00, de forma a nos permitir tomar um rápido café, arrumarmos as tralhas e alcançarmos nossos companheiros do acampamento avançado às 05:00 para seguirmos juntos, apreciando o nascer do segundo dia nas proximidades da Asa. Essa parte da aeronave está poucos metros após o cume do Pelado. De forma displicente, eu contava que acordaria com o tocar do alarme do Rafael, não programando nem celular, nem relógio para esse horário. Como Murphy bem antecipou, se algo pode dar errado, dará. Acordei algumas vezes à noite, mas sempre muito cedo… até que… acordei e conferi as horas… 04:20!! Dia “alto”, rsrs! Avisei da alvorada para a Amanda e para o próprio Rafael e, no tranco, procuramos correr para não postergar
demais o início da caminhada do segundo (e derradeiro?) dia. Fizemos um rápido desjejum, com chá quente e mingau enquanto nos enfardávamos de trilheiros, com as roupas (secas!) e arrumávamos as cargueiras. O atraso no acordar não pode ser inteiramente compensado na celeridade do arrumar de mochilas e apenas às 05:25 começamos a subir a encosta, em busca do acampamento avançado, alcançado às 06:00. O atraso no despertar, mais a menor celeridade no trecho entre nosso acampamento e o dos colegas, resultara em postergarmos o início do caminhar do segundo dia com 1h de atraso em relação ao que havíamos previsto na véspera. De forma a minorar esse atraso, combinamos de tomar a dianteira, aproveitando o tempo enquanto nossos colegas terminavam o café para galgar o cume do Pelado.

A subida até o primeiro cume do dia foi bastante exigente para os corpos ainda não aquecidos. Subíamos lentos, mas sabedores que toda montanha é superada com determinação e um sem-fim de pequenos passos. Ao longo da subida, o barulho de trovões, que torci serem apenas de arranques e paradas das composições ferroviárias que sobem e descem a serra com milhões de toneladas de carga foram se tornando mais nítidos e logo uma intensa, porém breve tempestade nos alcançou, nos levando a cogitar o abandono do trajeto pelos cumes, e tomar a Freeway, pelo risco de caminhar na crista da serra em meio a uma tempestade de raios. Ao sairmos da florestinha da encosta e avançarmos pelo capinzal observávamos o horizonte tentando prever o que nos aguardava naquele dia. Eu contava os segundos entre os relâmpagos e o trovejar e, aliviado, constatava que a tempestade estava se afastando de nos. Pelo menos naquele momento, não havia razão de segurança para a rota alternativa. O Guilherme tratou de encerrrar as considerações sobre mudarmos os planos: “Freeway é pra Nutella. Bora!” Com essas palavras de mote tocamos capim acima, brincando de estarmos tranquilos quanto ao clima e a extensão do desafio do dia. Chegamos ao cume do Pelado (1511 m) pouco antes das 08:00. Dali descemos rapidamente até a Asa, abandonada na altitude de 1493 m. Onde enquanto alguns faziam fotos eu aproveitava para tocar os óculos pelas lentes de contato.  Dessa forma, ainda que chovessem canivetes abertos, eu poderia, ao menos, tentar me esquivar, rsrs. A Amanda, não teve a paciência necessária para fazer o mesmo, erro que a serra cobraria em adicionais de sangue, suor e horas, principalmente horas na descida a partir do Ponta de Tigre, na linha vermelha, à noite.

Asa do aviao sinistrado, no cume do Pelado, com a Serra da Prata ao fundo.

Fizemos alguns registros fotográficos, inclusive uma difícil imagem da trupe completa, com a Asa por estandarte, que acabou por ser uma selfie apenas, em função do friozinho matinal temperado pelo ventar forte, que felizmente, parecia levar as nuvens para longe das nossas cabeças. O dia nascera cinzento, porém com as nuvens bem elevadas, de forma que tínhamos visão desobstruída em todas as direções e aproveitamos para apreciar as serras, muito superficialmente palmilharas anterioremente: a extensa Serra do Ibitiraquirê, a desafiadora Farinha Seca, os quilômetros de morros e cumes vencidos a partir do Canal.

Descendo o Pelado, ao fundo, Baía de Paranaguá e Serra da Prata.

Sofronite Cernua, presença constante.

Identificação do grupo, retirada após a foto. Não deixe nada além de pegadas.

Sabedores da extensão da pernada que nos aguardava, rapidamente retomamos a caminhada, descendo em direção ao vale, onde alcançamos um belo ponto de água às 9:50. Mantemos, nesse trecho, o Bandeirante à nossa direita. A partir dali, passamos a subir intensamente em direção ao cume do Ângelo (1558 m), alcançado ao meio dia. Nessa encosta, fizemos uma rapida parada para lanche, com o Guilherme disponibilizando uma macarronada, o Douglas uma sopa e o Rafael, queijo provolone. Tivemos bolachas e doces, também. Dessa forma, afastamos a possibilidade da Amanda ficar hipoglicemica, reforçando as doses de carbogel que lhe havíamos passado mais cedo. Algumas passagens mais técnicas demandaram um bom trabalho em equipe para serem superadas. A coesão do grupo tornou esse processo natural e, não me recordo de nenhum ponto em que tenhamos despendido pouco mais que breves minutos.

O cume subsequente, o Leão (1557 m), ponto culminante da travessia, mais elevado que o próprio Olimpo, não apresentou dificuldade, sendo alcançado às 12:15. Mantendo o Caraguatá à nossa esquerda, descemos ao vale entre o Leão e o Boa Vista. Procurando manter o planejado de alcançar o Olimpo ainda com luz diurna, apesar de termos iniciado o dia um pouco após o previsto, subimos céleres ao Boa Vista (1473 m), alcançado às 14:22. Nesse ponto, pela primeira vez nessa pernada, tínhamos vista livre para o nosso cume de definição: o Olimpo. A partir dali, seguiríamos por vias consolidadas, primeiro parcialmente pela linha branca e depois pela linha vermelha, passando pelo Gigante, Ponta do Tigre, antes de alcançar as estações, já na parte baixa. Fizemos uma breve parada para lanche, registros e retomada de fôlego. A Amanda aproveitou para tranquilizar a mãe quanto ao progresso da pernada pelo telefone, dado que havia ali sinal de celular (Vivo).

Ao fundo, Ibitiraquirê; e à direita, a imponência da face noroeste do Olimpo.

Tocamos em frente, descendo e subindo em direção à Pedra da Lagartixa (1468 m), um lance em que há uma corrente para auxiliar uma passagem. Novamente, fizemos um trabalho de equipe eficaz para a vencer a passagem. Particularmente, com minha cargueira bastante leve, não vi maior complexidade na superação.

Descemos em direção ao pé do Muralha (1484 m), nosso penúltimo cume antes de alcançarmos o Olimpo. Passo por passo, subimos sua encosta, alcançando o cume às 15:24. Superada a Muralha, partimos em direção do Olimpo (1540 m), margeando os paredões verticais da sua face noroeste. Apesar de estar próximo, o cume do Olimpo não se deixou conquistar sem exigir seu quinhão de persistência e suor.

Os metros finais tem curtas, mas intensas subidas, algumas das quais demandaram um pouco de técnica de escalada em rocha para serem vencidas. Nessas, o trabalho em equipe auxiliou muito a superarmos sem maior impacto no tempo, de forma que chegamos ao Olimpo às 16:45.

Coroando a pernada – Cume do Olimpo

Reportamos nossa passagem no livro de cume, fizemos uma breve parada para lanche e registros fotográficos e tocamos em direção ao Gigante. Com a Amanda andando menos desenvolta (a falta de lente de contato cobrava sua libra de carne, rsrs), pedi aos colegas que seguissem em frente, para permitir a quem quisesse atacar o Abrolhos na descida.  Percebendo o quanto a menor acuidade visual a prejudicava, mais uma vez sugeri que fizéssemos uma parada para que, com calma, ela pudesse colocar as lentes. Teimosa, bateu o pé que não precisava. Como já dizia o ditado: quem não escuta cuidado, escuta coitado. Eu e o Douglas ficaríamos, também, nos “coitados”. Fazendo pequenas paradas para retomar o fôlego, procuramos avançar o possível com a claridade do dia que findava. Alcançamos o cume do Gigante (1465 m) quase que ao pôr do sol, às 18:00 e o Ponta de Tigre (1357 m) às 18:40. Ali encontramos o Douglas que havia ficado para trás, para descer conosco. Soubemos então, que os demais companheiros do grupo, estavam próximos, abrigados da chuva intermitente, sob as grandes pedras do Vale das Lágrimas.  Confesso que foi de umedecer os olhos essa demonstração de cuidado do grupo. Ainda haveriam outras. Prepararam uma sopa quente para nós, que desceu como bálsamo
refrescante em picada de carrapato, rsrs. Aproveitei para vestir a segunda pele, a jaqueta de chuva e por cima, a camiseta de trilha, num arranjo aprendido ao enfrentarmos a hipotermia durante a travessia da Farinha Seca. Devidamente protegido do vento gelado que, aliado a chuva nos castigava, retomamos a caminhada, com o pessoal desescalando rapidamente as sucessivas ferratas e trechos mais ou menos técnicos. Combinamos que o Rafael, o Guilherme e o Dindo seguiriam na frente, aproveitando sua maior velocidade para, talvez, nos garantir um banho quente quando chegássemos. O Douglas, apesar dos meus insistentes pedidos, não aceitou nos deixar e sofreu, tanto pela hipotermia quanto pela ansiedade de querer acelerar uma caminhada e não ter como fazê-lo. Lembram-se das lentes? Aquelas? Então…

O martírio da descida

Por mais que a Amanda estivesse em boa forma física e descansada para a descida, a falta de visão lhe castigava a cada metro. Não, minto. A cada passo. Apesar da iluminação proporcionada pelas lanternas, ela basicamente tateava onde ia colocar os pés. Nas ferratas, eu descia um ou dois degraus à frente e guiava os pés dela em cada uma das passagens. “Dá esse pé… isso… agora esse… isso” foi a frase repetida milhares de vezes,
acompanhada de pequenos tapinhas na panturrilha da perna a ser movida. Nos trechos planos eu fazia uma ida até o Douglas e voltava um pedaço para aguardar que ela conseguisse tatear a passagem e progredir.

Numa dessas passagens, por sobre uma greta funda o bastante para machucar seriamente, os pés do Douglas falsearam e ele não despencou fenda adentro apenas pela mochila, que junto ao corpo, entalara na passagem e travara a queda. Com calma, mas célere, conferimos se a mochila estava firmemente presa a ele, e busquei puxa-lo pra fora, pela mochila, enquanto ele usava as pernas para para aos poucos sair daquele buraco. Passado
o susto com essa fenda, derradeiro susto desse tipo para o grupo (todos, em algum  momento, com mais ou menos risco) caímos em fendas dessas. Para uns, a cama de raízes cedeu, outros escorregaram no passo, outros ainda descobriram que a rocha não estava tão firme quanto parecia… passos arriscados, felizmente, sem maior gravidade.  Continuamos a descer, lentos, muito lentos, perdendo altitude até alcançarmos a última
ferrata, curta, mas que exigia cuidados pela transição em ângulo, encaixada numa fenda. A partir dali, os desafios passaram a ser os degraus de controle da erosão, onde o receio de uma torção ao final da caminhada tomavam toda a consciência da Amanda. Nesse momento, o que se mostrou viável foi oferecer os ombros para que descesse de forma mais controlada, apontando o foco da minha lanterna em soma à dela. Com infinitos
cuidados, fomos avançando até que às 02:00 passamos pela estação Marumbi e seguimos em frente para a estação Engenheiro Lange. Nesse momento, ao alcançarmos a linha férrea que existe entre essas duas estações, ficamos em dúvida quanto ao caminho certo, pois não lembramos de pronto dessa linha. Então após retornar um pouco ao longo dos trilhos sem identificar nada que me apontasse outro caminho, decidi que era por ali mesmo e, com uma certeza de que eu não dispunha, afiancei ao Douglas e à Amanda que certamente era por ali e seguimos, com cuidado pelas escorregadias pedras limosas desse trecho, que já haviam causado duas quedas ao Douglas.

Chegamos à estação Engenheiro Lange às 02:30 e dali apertamos o passo, pois como a estrada era menos irregular a Amanda conseguia andar melhor, e em pouco menos de 40 minutos, chegamos ao ponto de resgate (03:10), onde nossos colegas nos esperavam, dois dormindo mal na caçamba da savero (Guilherme e Dindo), outro dormitando sentado (Rafael), que pescava na cadeira ao lado do carro. Saberíamos depois, que caso não
chegássemos com o nascer do dia, ele subiriam em nossa busca. Esse tipo de companheiro vale ouro e reitero os loas que já teci em agradecimento. Rapidamente, nos ajeitamos como possível na traseira e tocamos para o café da manhã. Finalmente, a provação daquela pernada estava superada.

Perfil altimétrico da travessia e mapa com o percorrido (com falhas de registro).

Texto por: Rogério Alexandre Francisco da Silva
Compartilhar

Sobre o autor

Texto publicado pela própria redação do Portal.

5 Comentários

  1. Paulo Augusto Farina em

    Excelente relato. Realmente a AO é uma Travessia de respeito. Parabéns pela empreitada! Fraterno Abraço do Norte do Paraná!

    • Valeu!! Região muito preservada, com poucos rastros de passagem humana. Um erro de navegação ou algum imprevisto que afaste o caminhante da trilha, pode resultar, facilmente, num perdido mais sério. Lugar fantástico!

Deixe seu comentário