A Fronteira do Brasil: Alexandre de Gusmão e o Tratado de Madri

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Há muito tempo eu queria escrever sobre a definição dos limites territoriais do Brasil. Duas foram as pessoas que isoladamente contribuíram de maneira fundamental: Alexandre de Gusmão na metade do século XVIII, com o tratado de Madri, e o Barão do Rio Branco, no começo do século XX, com as negociações junto principalmente à França e à Bolívia.

A Fronteira do Brasil: Alexandre de Gusmão e o Tratado de Madri

É extraordinário que nossos limites terrestres de 16 mil km tenham sido delimitados de forma pacífica. Considere que a faixa fronteiriça brasileira (de 150 km) corresponde a 1/6 do território nacional.

Grosso modo, o desenho do Brasil já estava completo em meados do século XVIII, quase um século antes de nossa independência. Compare-se com os Estados Unidos, em que a área das treze colônias originais era de 1/9 do atual tamanho do país.

As duas nações que no século XV comandaram as navegações oceânicas foram Espanha e Portugal – os demais países coloniais como Holanda, França e Inglaterra só realmente disputaram os mares a partir do século XVII.

Então, os dois governos ibéricos celebraram na pequena cidade de Tordesilhas um acordo em que repartiriam o mundo, que sequer então conheciam completamente. As terras a leste da linha que passava a 370 léguas (algo como 1.800 km) do Arquipélago de Cabo Verde seriam portuguesas e as demais, espanholas.

Mapa atual do Meridiano de Tordesilhas. Ele atribuía o Brasil, a África e as Filipinas a Portugual. Parte da Austrália e da Groenlândia também lhe pertenceriam, mas isto não teve importância histórica.

Eu adaptei levemente o texto do Tratado que diz: E que tudo o que até aqui tenha achado e descoberto, e daqui em diante se achar e descobrir pelo rei de Portugal e por seus navios, tanto ilhas como terra firme, desde a dita linha indo pela parte do Levante, ou do Norte ou do Sul dele, contanto que não seja atravessando a dita linha, que tudo seja, e fique e pertença ao rei de Portugal e aos seus sucessores, para sempre.

Quero fazer alguns comentários. O Meridiano de Tordesilhas não era uma linha geodésica, acompanhando a curvatura do planeta (e portanto curva em planta) – era uma mera linha reta num mapa plano, ou seja, uma inocente abstração.

Sabe-se hoje que passaria no Brasil a norte em Belém, PA e a sul em Laguna, SC. Nessa situação, o país seria longo e estreito, com talvez apenas 2.6 milhões de km², ou 30% da superfície atual.

Dizia-se que não se conhecia a ilha do arquipélago onde a contagem começaria, mas hoje se afirma que foi a de Santo Antão. Que seja, mas não se conseguia traçar com precisão os meridianos, pois não se sabia o tamanho do planeta – ou seja, um grau de longitude poderia ter uma extensão maior ou menor.

E, pior, os dois países não praticavam o mesmo comprimento de légua náutica (mesmo hoje, cada texto que leio atribui uma diferente quilometragem às famosas 370 léguas).

Existe ainda uma outra questão. Como a Terra é redonda, a cada meridiano corresponde o seu prosseguimento no hemisfério oposto – que é chamado às vezes de antimeridiano.

A linha de Tordesilhas não ameaçava as preciosas terras peruanas ou mexicanas da Espanha, mas cruzava do outro lado a região das Filipinas. Note que, como o Pacífico é muito maior do que o Atlântico, relativamente pouca terra foi alcançada pela linha daquele lado.

O variado desenho do Meridiano de Tordesilhas. Não se sabia definir com certeza o valor de um grau de longitude e não se conhecia seu traçado geodésico.

Se Tordesilhas fosse deslocado a oeste, aumentando o Brasil, o antimeridiano ampliaria a porção espanhola das Filipinas – elas caberiam pelo Tratado aos portugueses, embora fossem ambicionadas pelos espanhóis. Assim, um Tordesilhas digamos que propício ao Brasil não seria necessariamente desfavorável à Espanha.

Tordesilhas talvez tenha funcionado melhor como um acordo para tentar excluir as demais nações das novas conquistas oceânicas, do que para repartir a América entre os países ibéricos.

Nas disputas fronteiriças entre Portugal e Espanha, a chamada Colônia de Sacramento teve grande importância, embora nunca tenha passado naquela época de uma mera fortificação.

Mesmo hoje, é uma cidade uruguaia bonita mas pequena, de apenas 30 mil habitantes. Construída pelos portugueses no século XVII, ficava atrevidamente em frente a Buenos Aires, ou seja, na margem esquerda ou norte do Rio da Prata.

Sua posse era onerosa para Portugal, que nunca conseguiu ligá-la por terra ao litoral do Brasil, seja a Laguna ou Rio Grande. Mas era estratégica, como ocupação de nosso limite sul – e, talvez, como possibilidade da ambicionada posse lusa do Rio da Prata.

Para a Espanha, era uma situação intolerável, pois passava por ela muito comércio e contrabando de sua colônia, inclusive a prata boliviana. E, pior, Portugal era aliado de sua inimiga Inglaterra.

A Colônia do Sacramento e os Sete Povos das Missões. Hoje Castillos Grandes e o Rio Negro pertencem ao Uruguai. A fronteira do Brasil passa pelos Rios Quaraí e Uruguai.

Uma das razões era o alto custo do transporte praticado pela Espanha via o Peru, por oposição ao uso mais prático pela costa atlântica brasileira. Buenos Aires era fortemente vigiada pela Espanha e só se tornou um porto aberto nos fins do século XVIII e capital dos argentinos apenas um século depois.

Diferentemente do Brasil, a vida política durante a independência argentina acontecia no interior, até que Buenos Aires tivesse um enorme crescimento a partir da segunda parte do século XIX.

Durante a história do Brasil, apenas o nosso limite sul foi arduamente disputado desde o período colonial. Além de Sacramento, a região dos Sete Povos das Missões era também crítica.

Situada no atual Rio Grande do Sul, continha sete povoados iniciados no século XVII onde os jesuítas espanhóis aldearam e colonizaram os índios guaranis. Era uma região estratégica, populosa e produtiva, desejada pelas duas Coroas desde a Colônia até o Império. Os Sete Povos foram uma notável utopia social e religiosa, infelizmente destruída pela política e pela guerra.

O Tratado de Madri assim determinou (com pequenas alterações): Das cidades ou vilas que Sua Majestade produz na margem oriental do rio Uruguai, os missionários partirão com os móveis e os efeitos, levando consigo os índios para povoá-los em outras terras da Espanha; e os índios também podem carregar todos os seus móveis, bens e armas, pólvora e munição que eles têm; de tal forma que as aldeias serão entregues à Coroa de Portugal, com todas as suas casas, igrejas e edifícios, e a propriedade e posse da terra

Modelo de uma Missão, com igreja, praça, colégio, oficinas e moradias. Os jesuitas criaram com as missões comunidades utópicas.

As Missões teriam de ser relocadas para a margem ocidental do Rio Uruguai. Agora, padres e índios teriam de lutar não mais contra bandeirantes saqueadores e sim contra os exércitos das nações ibéricas, unidos no cumprimento do Tratado.

A Guerra Guaranítica só poderia ter o fim de arrasar toda a notável sociedade missioneira. A expulsão dos jesuítas da América acabou por esvaziá-la. No século seguinte, o pouco que restava foi pilhado por um caudilho uruguaio. Ele levou em carretas para seu país os últimos remanescentes do esplendor das Missões.

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Sobre o autor

Nasci no Rio, vivo em São Paulo, mas meu lugar é em Minas. Fui casado algumas vezes e quase nunca fiquei solteiro. Meus três filhos vieram do primeiro casamento. Estudei engenharia e depois administração, e percebi que nenhuma delas seria o meu destino. Mas esta segunda carreira trouxe boa recompensa, então não a abandonei. Até que um dia, resultado do acaso e da curiosidade, encontrei na natureza a minha vocação. E, nela, de início principalmente as montanhas. Hoje, elas são acompanhadas por um grande interesse pelos ambientes naturais. Então, acho que me transformei naquela figura antiga e genérica do naturalista.

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