A História do Himalaísmo brasileiro, parte XVII

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Décima sétima parte do especial sobre o histórico das expedições brasileiras às maiores montanhas do mundo…

 Por Rodrigo Granzotto Peron
 O ano de 2012 foi marcado, principalmente, pelas múltiplas expedições de Niclevicz, Morgado e Weidlich na Ásia. No lado negativo, tivemos frustração verde-amarela na temporada de verão do Paquistão e a tragédia horrível ocorrida no Manaslu no outono.
 Também foi ocasião para comemorar os trinta anos da primeira expedição brasileira na Ásia, na qual Michel Bogdanovitz, Alexandre Bruno Ventre e Max Luiz Haim tentaram o Makalu juntamente com equipe de poloneses.
 Enfim, vamos aos fatos que marcaram aquele ano:
 Capítulo 79 – Annapurna 2012 (8.091m)
 Em sua incessante busca pelos catorze cumes, Cleo Weidlich decidiu fazer uma dobradinha (double-header) na temporada de primavera. O primeiro objetivo da brasileira foi o perigosíssimo Annapurna.
 Apesar de o Annapurna não ser montanha tecnicamente difícil, a sua via padrão tem uma particularidade: é a rota normal mais mortífera entre todas as montanhas de 8000 metros, com grau de periculosidade acima de 25% (no Everest, por exemplo, a periculosidade da rota normal nepalesa é inferior a 3%). Essa periculosidade decorre do fato de que vários trechos cruzam o caminho natural de escoamento das avalanches, o que faz com que os montanhistas tenham assustadores “encontros imediatos” com elas.
 Para auxiliá-la na empreitada, foi recrutado Pema Tshering Sherpa, que já havia culminado a montanha em 2010.
 Sobre o perigo da montanha, Cleo escreveu: “Centenas de vezes eu repetia o Salmo 123 quando estava atravessando as áreas mais perigosas e os Sherpas repetiam seus mantras hipnóticos em Nepali. Passamos horas quebrando gelo para remover as cordas que agora estavam presas debaixo dessa camada que as vezes parecia impenetrável. Passamos pelo acampamento 3 e colocamos nossa barraca acima. A face toda da montanha estava sobrecarregada com neve ainda não consolidada. O risco de avalanche estava elevado” (site Extremos, 2012).
 O ataque ao cume, em conjunto com outras expedições, ocorreu do dia 19 para o dia 20 de abril, e a brasileira “culminou” a montanha às dez da manhã acompanhada de Pemba Tshering Sherpa. Antes dela, entre oito e dez da manhã, também culminaram Rao Jian-Feng, Chhang Dawa Sherpa, Kami Sherpa, Pecchumbe Sherpa, Pemba Dorchi Sherpa, Yang Chun-Feng, Debasish Biswas, Basanta Kumar Singha Roy e Pemba Chhoti Sherpa.
 O “cume”, entre aspas, deve-se ao fato de que nenhum dos escaladores acima citados conseguiu comprovar indubitavelmente que fez cume. Os relatos são contraditórios entre si e não há prova fotográfica segura de qualquer um deles, o que é muito estranho considerando que são onze pessoas, com onze equipamentos para registrar a ascensão. Essas dúvidas todas fizeram com que a renomada Elizabeth Hawley – a jornalista que registra todas as escaladas no Nepal – alterasse o status da escalada da brasileira para “disputed” (disputado), ou seja, sem provas concretas de êxito.

Annapurna – O “corredor”, trecho mais perigoso da “rota alemã”. – Fonte: http://www.niclevicz.com.br/ – Autor: Waldemar Niclevicz
Waldemar no C2 do Annapurna

Capítulo 80 – Annapurna 2012 (8.091m)
 O outro brasileiro no Annapurna em 2012 foi o paranaense Waldemar Niclevicz que teve participação breve no Nepal e desistiu do intento por causa do risco elevado de avalanches.
 Narrou o brasileiro: “Logo que chegamos aos 6 mil metros de altitude, por volta das 7 horas da manhã, foi possível comprovar o tamanho absurdo da avalanche que nos havia assustado na noite anterior, ao balançar com força as nossas barracas. Pedaços de gelo, toneladas de neve, exatamente sobre o nosso caminho. E, de repente, um novo estalo, uma nova avalanche. Ficamos paralisados observando aquela força descomunal da natureza, felizmente protegidos por uma grande greta, mas os nervos novamente voltaram a ficar à flor da pele. Ao fundo observávamos o “corredor” por onde teríamos que passar, onde não teríamos nenhuma chance de escapar com vida se uma outra avalanche daquele tamanho desabasse. É muito fácil compreender porque a maioria dos alpinistas que deseja escalar todos os 14 oito mil deixa o Annapurna por último, e agora compreendo melhor as estatísticas que o apontam como o oito mil mais perigoso” (site pessoal de Niclevicz).
 Waldemar foi até o campo 3 (6600 metros) e desistiu no início de maio.

Niclevicz e o Annapurna. – Autor: Waldemar Niclevicz

Capítulo 81 – DHAULAGIRI 2012 (8.167m)
Cleo Weidlich, após o Annapurna, rumou para o difícil Dhaulagiri.
 Após uma semana de mau tempo, a escalada teve início. No final de maio (mais precisamente no dia 26) atingiu o cimo, com uso de oxigênio engarrafado, acompanhada por Pema Tshering Sherpa (especialista no Dhaula, com três cumes) e dividindo a escalada com Hirotaka Takeuchi (japonês que já culminou todos os 14 oitomil).
 É realmente uma pena que não haja prova concreta do cume no Annapurna, uma vez que se houvesse, Cleo teria se tornado a primeira mulher a fazer a dobradinha Annapurna + Dhaulagiri em uma mesma temporada. Até hoje, apenas onze pessoas realizaram essa proeza.
 Capítulo 82 – Dhaulagiri 2012 (8.167m)
 Waldemar Niclevicz também tinha permit para tentar o Dhaulagiri na temporada de primavera de 2012, mas cancelou a investida por ausência de tempo hábil para completar a escalada e pelas péssimas condições de neve nas encostas do Dhaulagiri, que apresentavam um risco inaceitável.

Dhaulagiri

Capítulo 83 – KHUITEN 2012 (4.374m)
 Até então pouco conhecido por essas terras, a Mongólia tornou-se uma opção exótica e uma possibilidade interessante de escalada para os brasileiros por obra do incansável Manoel Morgado, um dos guias de montanha mais tarimbados e qualificados que temos.
O principal atrativo da Mongólia é o Tavan Bogd, grupo montanhoso da Cadeia Altai, na tríplice fronteira China-Mongólia-Rússia, e que possui cinco picos: Khuiten (4374m), Nairamdal (4180m), Burged (4068m), Malchin (4050m) e Olgii (4040m).
 A Morgado Expedições mirou, no segundo semestre de 2012, o Tavan Bogd.
 Primeiro, Manoel culminou o Malchin (4050m) liderando grupo de onze clientes trekkers.
 Na sequência, voltou as atenções para o pico mais elevado do maciço. Narrou Morgado em seu site pessoal: “Na investida ao cume, a escalada começou com uma rampa pouco inclinada até chegar na crista que levava diretamente ao platô do cume. Aí vieram os dois maiores desafios da montanha, rampas de 80 metros de altura com inclinação de 45, 50 graus […] Depois de cinco horas de escalada, o tempo estava maravilhoso sem vento algum e o cume estava ao alcance das mãos”. Após três dias escalando, no final de julho, Manoel Morgado e Lisete Florenzano culminaram, juntamente com Sylvia Stickel, Tera Albuquerque, Irineu da Silva, Adriana Balestra e Luis Carlos Modesto.
 Em tempo: esta foi a segunda ascensão brasileira ao Khuiten, após 2011, quando fizeram cume Morgado, Lisete, Eduardo Santos Filho e José Roberto Resende.

Cume Khuiten

 Capítulo 84 – Frustração no Karakoram 2012
Duas expedições brasileiras ao Karakoram tiveram que ser abortadas por questões financeiras e por problemas com os vistos (permits) em 2012.
 Por falta de patrocínio, Waldemar Niclevicz teve que desistir da expedição na qual buscava um double-header (dobradinha) de Gasherbrum I (8.080m) e Broad Peak (8.051m), para tentar turbinar sua aspiração de culminar todos os 8000. A expedição do brasileiro era multi-nacional. No seu permit estavam Carlos Hernan Wilke, Santiago Quintero, Gia Tortladze, Olaf Rainer, Chris Descher e Mahdi Gholipour.
 Por motivo similar, infelizmente o mineiro Marcelo Motta Delvaux abdicou de sua ida ao Gasherbrum II (8.035m) [a Expedição Minas Karakoram 2012], que pretendia fosse seu primeiro 8000. Se tivesse ido, iria integrar expedição internacional liderada pelo polaco Jacek Teler, e composta, também, por Mahdi Golshannia, Shahnam Jabbari, Simone La Terra, Christian Maurel e Claude Colletta.

Cleo Weidlich – Fonte: Site pessoal de Cleo Weidlich

Capítulo 85 – Tragédia no Manaslu 2012 (8.163m)
 Expedição da Morgado Expedições, composta por Manoel Morgado, Lisete Florenzano, Gilson Francisco e Milton Marques rumou ao gigante Manaslu, no Nepal.
 O segundo semestre de 2012 ficou marcado, contudo, por uma das maiores tragédias da história do montanhismo na Ásia.
 Uma mega-avalanche que pipocou das encostas do Manaslu e obliterou o campo 3 (7200m), chegando a atingir algumas barracas também no campo 2 (6400m), ceifou a vida de onze escaladores: Ludo Challeat, Philippe Bos, Gregory Costa, Marti Roig, Remy Lecluse, Catherine Ricard, Fabrice Priez, Dominique Ouimet, Albergo Magliano e Christian Mittermeyer – franceses, alemães e italianos – além de Dawa Dorje Sherpa. Além deles, vários outros montanhistas ficaram feridos e tiveram de ser evacuados.
 A equipe da Morgado Expedições teve sorte pois a subida até o campo 3 (onde ocorreu a pior parte da tragédia) ficou postergada para o dia seguinte e assim eles evitaram ser colhidos pela avalanche.
 Após o desastre, Milton Marques e seu sherpa Dorje desistiram de prosseguir escalando.
 O líder da expedição, contudo, resolveu fazer ataque ao cume, na companhia de Paul, integrante de outra expedição.
 Sobre os momentos decisivos de sua escalada, narrou Morgado em seu site pessoal: “Saímos hj de madrugada, eu e Paul, para nossa tentativa de cume. Estávamos nos sentindo bem, depois de passar um dia extra no campo 4 para descansar. Saímos hj às 3 am. Quando cheguei à 7.500 m, percebi que estava no meu limite físico, já que pela primeira vez estou indo sem oxigênio e realmente não sabia como meu corpo iria se comportar na altitude. Achei que era mais prudente voltar. Estou agora no campo 4, esperando pelo Paul que continuou escalando.  Estou me sentindo bem fisicamente, embora muito cansado, e feliz por ter chegado até aqui. Foi uma grande escalada, numa montanha lindíssima e com bons companheiros. Claro, tive momentos muito difíceis: senti pela primeira vez o medo de ser levado por uma avalanche, senti demais os amigos que havia feito no campo base e que se foram no acidente. Para mim foi uma superação, tanto física como psicológica”.
 O brasileiro foi até 7500 metros e voltou para casa no início de outubro.
 Capítulo 86 – Makalu 2012 (8.485m)
 Cleo Weidlich, nascida no Pará e residente dos Estados Unidos, teve um 2012 bastante movimentado mas igualmente cercado de polêmicas.
 A brasileira atacou o cume do Makalu no dia 17 de outubro de 2012, na companhia de seu sirdar Pemba Tshering Sherpa. Foram surpreendidos pelo clima severo nas partes altas da montanha e viram-se obrigados a fazer um bivaque a quase 8000 metros. Ficaram trancados nessa altitude por três dias e três noites, enfrentando ventanias congelantes de até 150 km/h e temperaturas glaciais. No último dia, ficaram sem comida e gás, um verdadeiro ordálio que acarretou princípio de congelações nos pés, nas mãos e no rosto, tanto da brasileira quanto do nepali, além de sintomas do mal de altitude, tendo que ser evacuados da montanha de helicóptero. Por sorte, ambos se recuperaram das lesões.
 No retorno a Kathmandu, a brasileira sustentou ter feito cume no Makalu em 21 de outubro de 2012. Porém, o que era para ser uma conquista épica tornou-se um grande ponto de interrogação. Weidlich não apresentou provas concretas de sua conquista, o que fez com que o Makalu não seja creditado à brasileira pelo Himalayan Database.
 Assim, das três montanhas de 8000 metros que Cleo disse ter culminado em 2012, apenas o Dhaulagiri foi corroborado (pelo relato de Takeuchi). O Annapurna ganhou o status de “disputed” (sem provas conclusivas) e o Makalu “unrecognized” (não reconhecido). Nesse sentido, o conceituado cronista alemão Stefan Nestler fez constar em seu blog para a Deutsche Welle: “No outono de 2012, Weidlich alegou ter escalado o Makalu. Também nesse caso, ela não conseguiu comprovar ter feito cume. Suas alegações para Miss Hawley foram tão contraditórias que a suposta escalada dela sequer foi listada na categoria ‘disputada’”.
 Por essas razões, Cleo oficialmente continua com seis 8000: Everest, Cho Oyu, Manaslu, Kangchenjunga, Dhaulagiri e Gasherbrum I. Controvérsias à parte, é um baita currículo.

Pilar Oeste do Makalu – Fonte: elconfidencial.com

 Nota Final: Cronograma do Histórico
 Após a retomada da narrativa com este texto, os eventos relativos a 2013 sairão ainda este ano, em outro artigo; os relativos a 2014 serão lançados ano que vem.
 Texto: Rodrigo Granzotto Peron
Data de conclusão do artigo: 5-4-2016
Eventuais dúvidas ou acréscimos: alazaf at terra.com.br
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Sobre o autor

Rodrigo Granzoto Peron é o mais importante historiador do montanhismo brasileiro. Ele coleta e compila informações de expedições a grandes montanhas contribuindo para a memória do montanhismo nacional. Já colaborou para diversos meios, como Revista Desnível, Explorer's Web e outros.

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