A reconquista do Pico dos Itatins

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“Conquistado o Dedo de Deus Paulista, na Serra dos Itatins!”, anunciava um boletim especial do “Repórter Esso”, da extinta TV Tupi, na tarde de 29 de julho de 1953. Naquele dia, o tenente Rodolpho Pettená e dois amigos venciam os 1333m do ponto culminante do Vale do Ribeira (SP), o topo do Pico dos Itatins, também chamado de “Dedo de Deus Paulista”, em alusão ao seu homônimo carioca na Serra dos Órgãos. Um feitio respeitável na época, considerando as adversidades impostas pela natureza e a precariedade do equipo vigente. Contudo, uma conquista injustamente esquecida no tempo. Pra sanar esta desfeita, 63 anos depois refizemos a jornada pioneira do então jovem tenente aventureiro. E em apenas dois dias bastante intensos atingimos o alto deste maciço, que aponta seu dedo de granito pro céu no miolo da Reserva da Juréia, entre Pedro de Toledo, Miracatu e Iguape.

Desde que rodei pela primeira vez pela “Estrada do Despraiado”, coisa de alguns anos atrás, que as imponentes escarpas da Serra do Itatins já despertavam minha atenção. Tanto que lá retornei mais vezes até chegar no topo do Boa Vista, pico coroado por uma decrépita torre da Cotesp. Mas a Serra do Itatins ainda exibia outro maciço muito mais imponente que, sob formato duma agulha azulada silhuetando o firmamento, correspondia ao ponto culminante daquela respeitável escarpa que significa “nariz de pedra”, em tupi-guarani. Era o Pico do Itatins ou Dedo de Deus Paulista, como preferir. Montanha lendária, com histórias de “bolas de fogo” que saem do cume, ouro escondido em suas ravinas e folclores. Não bastasse, o pico constitui a fronteira tríplice das cidades de Pedro de Toledo, Iguape e Peruibe.

Na época, a conquista do Tenente Pettená teve certa repercussão na imprensa regional, pois o jovem militar era uma pessoa influente em todo Vale do Ribeira. Entretanto, diferente do seu homônimo carioca mais ilustre, as informações a respeito do Dedo de Deus Paulista eram escassas e as poucas existentes convergiam na famosa expedição de 1953. Depois disso foram poucas as investidas independentes ao pico, e isto se devia principalmente pelo fato do mesmo se situar na  Estação Ecológica Juréia-Itatins (E.E.J.I), repleta de restrições de acesso. Logo, era montanha “proibida”, e esta é a palavra mágica pra qualquer aventureiro.

Pelos relatos que antecedem a década de setenta, houve uma expedição paranaense e outra carioca, que por sua vez chumbou a placa que atualmente existe no topo. Entretanto, estas investidas se valeram de acessos pela face leste do pico e o trecho final dispensou uso de corda (de sisal), valendo-se apenas de bota cardada. O tempo passou, o mato fechou, deslizamentos ocorreram e estas vias logo revelaram-se inviáveis. A rota de aproximação então passou a ser outra: pela crista sudeste, vindo do Pico Boa Vista, via que me era mais familiar. Mas igualmente demandava equipo de escalada pois batia de frente com um paredão de 25m verticais. Foi o que se contatou com alguns conhecidos, mas principalmente pelo vídeo registrado na expedição do Vitor Negrete, datada de 2005. Vídeo este que foi estudado á exaustão ao lado das poucas imagens aéreas disponíveis.

Foi o que bastou pra galera se pilhar e assim planejar uma estratégia que minimizasse riscos e otimizasse cume. Juntando todo conhecimento e material em mãos, juntei-me á trupe do veterano Julio Fiori e do NNM (Nas Nuvens Montanhismo), composta pelos experientes Natan, Alisson e Juliano. Mas foram as infos do integrante novato do grupo, o Jean, as mais determinantes pra elaboração duma logística enxuta e refinada pra dois dias. O guri não apenas estivera mês antes quase no pé-da-pedra (reabrindo caminho e fitando), como também se dispôs a ser nosso suporte logístico em Miracatu. Pronto.

Mas havia um último porém.  Como já estávamos preparados como todo material (inclusive de escalada) prum final de semana, bastava agora esperar a brecha de bom tempo pra que a trip finalmente saísse do papel. Afinal, esses são os “3P´s” de qualquer expedição: planejamento, preparo e paciência. Estava confiante que no inverno surgisse esta brecha favorável, uma vez que todas as 8 ocasiões que estivera na Juréia nunca tomei chuva, e isto se dera no período de maio a agosto. Ir no verão (período de novembro a fevereiro) além de estar fora de cogitação pela influência direta que a região tem do mar, seria erro crasso de planejamento. Não era nosso caso.

Conforme previsto, a tal brecha de fato surgiu num final de semana da segunda semana de agosto, época oportuna de inverno seco. Era Dia dos Pais e tive que abrir mão de almoçar com meu velho pra encarar aquele rolê imperdível. Mas felizmente meu pai entende muito bem minhas paixões, então só desejou boa sorte e emendou: “Volta inteiro pra não deixar de vir aqui no próximo domingo, hein?”. Com sinal verde da família, saltei então do latão da Valle Sul pouco antes de chegar a Miracatu, as 21hr, na entrada do bairro de Santa Rita do Ribeira. Ali encontrei o Jean na sua residência, onde ficamos proseando até a hora que chegou a turma curitibana do Fiori, lá pelas 23hr. Apresentações feitas, na seqüência  fomos deitar pois o dia seguinte seria mais do que puxado.

Apesar da previsão meteorológica favorável, o sábado começou envolto em brumas opacas quando tomamos o asfalto da Rod. Regis Bittencourt (BR-116). Nebulosidade esta que nos acompanhou até Pedro de Toledo, onde o firmamento abriu janelas generosas de céu límpido que tendiam a se ampliar no decorrer do período. Após um rápido desjejum na minúscula Três Barras o asfalto deu lugar a uma poeirenta estrada de terra batida, que após cortar o Rio do Peixe serpenteou pra sudoeste pro fundo do Vale do Despraiado pela precária via que toma emprestado seu nome. Ainda assim, a cumeeira daquela morraria forrada de bananeiras a nossa volta ainda insistia em se cobrir de nuvens alvas, ocultando o alto dos picos almejados praquele final de semana.

O sacolejo da Kombi só terminou quando chegamos na casa da Dona Vera, as 9:30hr, onde deixamos o veiculo. Sim, diferente das ocasiões anteriores não estacionamos o veiculo na famosa “Xiboquinha do Cumpadi” e sim na residência da simpática senhora por estar mais próxima da entrada da trilha. Arrumamos as coisas de última hora e pusemo-nos a andar pela estrada de terra abaixo, muito mais “transitável” que da última vez que ali estivera devido ao tráfego constante de pesados caminhões. O peso das cargueiras logo se fez sentir, afinal, dividíamos o peso do equipo extra pra eventual escalada, o que significava metros de cordoletes, mosquetões, cadeirinhas, freios, grampos extras, pinos, martelo e outras coisas mais. Tudo isso pra garantir cume. Eu fiquei encarregado de levar os 50 metros de corda no lombo, mas felizmente só utilizamos metade disso.

Num piscar de olhos abandonamos a estrada por uma discreta entrada a esquerda da via, que se pirulitava barranco abaixo, cruzando o leito seco dum braço do Rio Despraiado. Não demorou pra cruzar também o dito cujo, só que por meio duma decrépita ponte pênsil de integridade duvidosa, uma vez que boa parte do seu piso estava bastante carcomido. De qualquer maneira ir pelo pontilhão serviu como aperitivo da aventura daquele sábado, uma vez que o rio estava relativamente baixo (no inverno, claro!) e era possível cruzá-lo saltando de pedra em pedra.

Na outra margem tropeçamos logo de cara com o que já foi outrora uma escola bem ativa, hoje engolida por voçorocas de lírios-do-brejo recém-roçados. Apesar disso, o interior ainda exibia resquícios de material escolar e algumas carteiras deterioradas. Do lado da escola nasce o rabicho da trilha que sobe o Boa Vista, ou seja, estávamos no inicio  daquela que fora a via de manutenção da torre da Cotesp. Realmente, a via estava  tomada pelo mato e o que ainda lhe conferia aspecto de estrada era o onipresente corte vertical na encosta, além dalguns vestígios da antiga pavimentação no chão. Apesar da vegetação presente, relativamente alta, era perfeitamente visível um rastro percorrendo a via por toda sua extensão. E foi esse rastro que acompanhamos até o alto. Não tem erro, até porque agora o caminho exibia marcações da fita zebrada colocada pelo Jean no mês anterior.

 

Assim começou nossa ascensão propriamente dita, com a estrada a ganhando a encosta em largos ziguezagues, e nossos ouvidos se enchendo dos ruídos da mata ou dalgum rio percorrendo algum fundo vale ao lado. Pra variar um pouco o rolê, as vezes era preciso desviar de gigantes da floresta tombados ou enormes deslizamentos de encosta. Mas nenhum dos obstáculos era pior que os malditos emaranhados de criciúmas (um cipozinho cortante) que eventualmente formava túneis de vegetação que não raramente nos obrigava a engatinhar no chão e de onde emergíamos ralados ou com a mochila enganchada. E assim sucessivamente. Mas de modo geral a pernada mantinha-se com ritmo e sem maiores percalços de dificuldade.

Conforme fomos ganhando altitude os rostos logo se encheram de suor, uns distanciavam-se dos outros e cada um obedecia seu próprio ritmo. Foram ao todo duas breves paradas no trajeto, fosse pra retomada de fôlego, bebericar água ou beliscar alguma coisa. Ou tudo isso junto. Mas o cansaço novamente era recompensado na retomada da jornada morro acima, onde o caminho exibia lentamente seus encantos, fosse nas orelhas-de-pau q ornando o arvoredo, conchinhas espalhadas pelo chão, belos exemplares de palmito ou pequenos detalhes remanescentes do antigo uso daquela via. Mas a alegria maior era ver pelas frestas que a nebulosidade matinal havia se dispersado por completo e que decerto teríamos um belo visual lá no alto.

Ao chegar na cota dos 1100m, ás 13:30hrs, percebemos que o terreno nivela de vez e não havia mais o que subir. Estávamos enfim no cume do Boa Vista, na verdade, o falso cume que serve de base pra antiga torre de telefonia da Cotesp (Cia Telefônica de SP, atual Telesp), desativada com o advento da comunicação via satélite em 1977. O lugar é plano, amplo e tomado por bambuzinhos finos, denunciando que aquilo tudo já fora um descampado belo mirante. Além da enorme torre de quase 30m de altura, o falso cume divide o espaço restante com postes tombados, um “iglu metálico” que deve ter sido a casa dos geradores, e o que sobrou dos casebres de madeira com algumas pichações dos raros freqüentadores. Lixo? Quase nenhum. Vandalismo? Apenas a algazarra promovida em alto volume por macacos nalgum fundo vale a noroeste.

Ali no alto fizemos um pit-stop maior antes de prosseguir jornada, e enqto uns descansavam ou beliscavam algo, os demais subiram a torre pra desfrutar da linda panorâmica que se tinha ao redor. A vista deslumbrante privilegia o quadrante norte, leste e oeste, sendo que da direita pra esquerda descortina os abruptos contrafortes da Serra do Itatins e a Estrada do Despraiado serpenteando o sopé da Serra do Bananal, tendo a Serra de Miracatu logo atrás! Com esforço é possível avistar tb a Ilha Comprida, Ilha do Cardoso, Barra do Ribeira, Serra da Juréia e até Iguape. Só não é possível visualizar nosso destino, o Dedo de Deus Paulista, pois este se encontra oculto atrás do duplo cume do Boa Vista.

A jornada tem continuidade pelo lado do casebre que balança-mas-não-cai, engatinha por baixo de um túnel de cipós e termina numa muretinha. Dali desvia pra direita e cruza uma embolorada caixa d’água pra dali embicar morro acima novamente, até dar na base dum enorme rochedo, que pelo jeito serve de sanitário pra antas. Do rochedo a declividade aumenta e é preciso escalaminhar a encosta se firmando na vegetação em volta. O terreno então nivela, a vegetação baixa e percebo que não há mais o que subir. Estávamos finalmente nos 1140m do cume do Pico Boa Vista, mas infelizmente o mato em volta inviabiliza qualquer vislumbre do entorno. No entanto, uma brecha na mata na direção sudeste permite o primeiro contato visual com nosso objetivo: o Dedo de Deus Paulista emergia da crista verde de forma impressionando, apontando pro alto seu dedo rochoso que reluzia ao sol daquele inicio de tarde!

Depois do segundo cocoruto do Boa Vista o rastro desce vertiginosamente em direção aos selados consecutivos da crista abaulada que corre na direção do Dedo de Deus. E tome desescalaminhada novamente, onde segura mato, agarra pedra ou se firma em tronco pra perder altitude com segurança. No primeiro vale fizemos uma breve parada e o Jean tomou a dianteira, uma vez que ele fitara recentemente o caminho. Mas no fundo o trajeto todo se resumiu a se manter sempre na “trilha” utilizada pelas antas. Sim, estes mamíferos mantém um rastro inconfundível a todo momento, principalmente quando deixam seus dejetos. A única dificuldade encontrada na rota das mesmas era eventual mato tombado, voçorocas de criciúmas ou unhas-de-gato que demandavam faconadas ou, na maioria das vezes, um simples desvio.

E assim prosseguiu nossa jornada pelas 2hrs seguintes, subindo e descendo sem a abaulada crista florestada e com mato caindo de ambos lados; ora pelo rastro das antas, ora pela encosta de modo a contornar o mato mais agreste acumulado na cumieira, ladeando assim os morros maiores. Sempre que fugíamos da rota das bichinhas bastava azimutar pra sudeste ou navegar visualmente uma vez que o tempo estava uma belezura. Fora isso a caminhada progrediu bastante e mantivemos um ritmo bem ágil até, onde a cada morrote vencido a visão do Dedo de Deus cada vez mais próximo apenas revigorava o corpo, já demonstrando sinais de cansaço.

Encerramos o expediente no amplo vale do segundo selado que antecedia a base do Dedo de Deus, pouco depois das 16hr. O lugar é marcado pelo leito seco de um corregozinho e um enorme tronco de figueira-mata-pau no meio dele. Havíamos levado bastante água, pois nossa preocupação com ela era real uma vez que naquele inverno seco não cruzamos com nenhum filete sequer. Mas o sábio veterano Fiori havia reparado que a encosta nordeste da crista era mais úmida que o resto, sinal que td essa umidade devia escorrer pralgum canto, provavelmente nas dobras serranas 50m abaixo de onde estávamos. E não é que o velho montanhista tava certo? Acompanhei o cabra e de fato achamos com fartura o precioso liquido, enchendo o cantil da galera pra não precisar ficar racionando.

O sol já se debruçava atrás da serra e a escuridão tomava conta da floresta. Mas até lá todos já haviam montando suas redes, a exceção do Jean que optou por bivacar no chão. Na seqüência e sob fachos de headlamps, a galera deu inicio ao sagrado ritual de preparação coletiva da janta, mas este que agora escreve já estava mocozado confortavelmente em sua rede, e nada me tiraria dela. Descondicionado fisicamente, o corpo reclamava do esforço feito naquele dia; ralados e cortes ardiam simultaneamente, e o joelho latejava de dor. Mas como me conheço bem bastava uma boa noite de sono pra estar zerado na manhã sgte.“Vem aqui comer com a gente, seu anti-social!”, gritou alguém do grupo. Mas depois disso simplesmente apaguei, ainda mais após engolir minha deliciosa marmita previamente preparada e ter bebericado uma cerveja especialmente levada praquela ocasião.

Aquela noite transcorreu tranqüila e lindamente iluminada pela lua cheia. E os sons da mata e do vento remexendo o arvoredo só eram interrompidos pelas lorotas em alto tom do Fiori, que insone decidiu que todo mundo também não iria dormir. Engano dele.. Antes de adormecer de vez meus pensamentos imediatamente se direcionaram á lendária expedição pioneira, e fiquei imaginando o perrengue que o tenente Pettená, Orézio Ramalho e Roberto Pettená deveriam ter passado pra chegar ali. Os relatos apontam que com poucos recursos passaram sérios apertos pra chegar no pé-da-pedra e um acidente quase tirou a vida de Orézio. Mas com o auxilio do Grupo de Escoteiros de Santos chegaram próximo de onde agora pernoitávamos. Diferente da gente, devastaram meia floresta pra montar acampamento e fizeram fogueira pra espantar “uma onça que os seguia”. Sim, o montanhismo clássico sequer sabia da etiqueta do politicamente correto de hoje, e esse é justamente seu charme.

O domingo amanheceu radiante e bastante promissor, tanto que saímos de nossas redes o mais cedo possível e já arrumando as tralhas pro ataque derradeiro. Preparamos 3 mochilas com o equipo necessário, além de levar água, blusas e lanche extra, ao mesmo tempo em que mastigávamos o desjejum bastante ansiosos. E assim, pouco depois das 7:30hr, retomámos nossa caminhada encosta acima pra cair outra vez na crista sudeste principal, sem maior problema. No topo da corcova cruzamos com uma pequena clareira com sinais de acampamento, pra depois descer ao último vale (extremamente seco) daquela cumeeira esquecida na Juréia. A constatação apenas envernizou nossa decisão de pernoite no colo anterior.

Agora começava a ascensão propriamente dita crista acima em direção ao pé-da-pedra, onde festas maiores na mata exibiam a linda face oeste do Dedo de Deus  na nossa cara, reluzindo ao sol matinal. O rastro deixado pelas antas estava incrivelmente bem conservado, uma vez que seus dejetos estavam concentrados neste trecho, mas mesmo assim fomos deixando marcações no arvoredo pra volta. Vez ou outra o mato agreste teimava em se debruçar sobre a trilha obrigando tanto o facão como nossos braços a abrir pra avançar. Mas nada assim do outro mundo, pois nossa caminhada ascendente tinha ritmo bem compassado, sem atrasos.

Aos poucos a crista se estreitou, o mato diminuiu de tamanho e a declividade apertou de vez. O que antes era uma caminhada se tornava uma íngreme escalaminhada entre arbustos e o baixo arvoredo, até que finalmente chegamos na base da rocha de granito do imponente pico. Procurando bem é possível subir, se espremendo por degraus de terra e pedra até uma estreita fenda, onde a primeira vista a idéia foi começar a escalar um paredão interno a beira dum abismo enorme. Mas não, contornando por fora uma pedra da fenda foi possível ganhar o patamar superior, agora numa linha de pequenas arvores que logo desembocou na base do paredão derradeiro. Agora que saberíamos a verdade do tal “bicho-papão” da montanha.

Sim, ali já não havia jeito. Eram 25m verticais que nos separavam do cume e que todas as expedições, inclusive a do tenente Pettená, tiveram que vencer. Isto porque era o único lugar viável e menos exposto de todo perímetro daquele cilindro rochoso. Pois bem, ai o Natan tomou a dianteira pra guiar e lá foi ele, subindo aquele desnível sem muita dificuldade feito uma lagartixa profissional, deixando três ancoragens no trajeto. Não houve necessidade de fincar grampos pois já havia dois que davam segurança necessária. Depois dele foi o Fiori, em seguida o Jean e finalmente o Juliano, uma vez que o Alisson dava apoio pra galera por baixo.

E eu me borrando todo por que era chegada a minha vez. Isto porque não sou escalador e sim caminhante, e as poucas vezes que me meti a lagartixar as coisas não terminaram bem. Bem, calcei a sapatilha, me encordei e ajustei a cadeirinha, sem esconder da galera meu medo daquilo em que estava me metendo. “Viu, se eu empacar no trajeto vou descer, beleza?”, falei pro Alisson, que pareceu ignorar meu apelo. “Ah, fio…chegar até aqui e não fazer cume é imperdoável! A gente te sobe pelo pescoço se for o caso!”, gritou o Fiori lá de cima. “Engraçadinho!”, pensei. Respirei fundo, fiz o sinal da cruz e lá fui eu.

O primeiro trecho era menos inclinado e fácil, pois bastou pisar num tufo de capim pra ganhar altura e conseguir remover a primeira costura. A seguir pisei numa pequena fenda pra dar impulso e alcançar um enorme tufo de capim no alto, mas não consegui aderência na rocha e temi despencar numa vaca. “Vou descer! Não vou conseguir! Tô caindo!”, gritei. “Vai nada, tô te segurando aqui de cima! Pode continuar que temos toda amanhã!”, gritou o Natan, lá de cima. Sem opção, consegui me ancorar na parede e me firmando na corda acessei outro patamar segurando um tufo de capim, onde parei um pouco pra descansar os braços, tensos e doloridos. Removi a segunda costura e comecei a buscar agarras no paredão pra subir mais, que felizmente encontrei; e com ajuda do cotovelo firmado numa minúscula moitinha dependurada ganhei o impulso necessário. E lá fui eu, agora um pouco mais confiante e seguro daquilo que fazia, usando mais os joelhos (que terminaram ralados!) que os pés. No trecho final removi a última costura e contornei um rochedo meio negativado sobre a canaleta (ou diedro, sei lá) até finalmente pisar na horizontalidade compacta do minúsculo platozinho que antecede o cume! Ufa!

Meus braços tremiam depois daqueles minutos que pareceram eternidade. Mas algo dentro de mim sentia enorme satisfação de ter vencido aquele paredão, que desde inicio do rolê julguei incapaz de transpor. E claro, depois daquilo o resto foi brincadeira de criança. Dali bastou apenas um curto trecho se esgueirando pelo meio de moitas enormes de capim-navalha, um ou outro lance de escala-mato fácil e pronto, emergi naquele que correspondia á falange daquele dedo rochoso, onde o resto da galera já tava todo empoleirado. Horário? Quase 11:20hr!!

O topo dos 1333m do Dedo de Deus Paulista é marcado por vegetação arbustiva baixa, porém cerrada, e dois enormes rochedos que servem de mirante. No meio disso tudo há um pouco de chão de terra, capaz de comportar confortavelmente apenas uma barraca. Num dos rochedos reluz ao sol a famosa placa de bronze chumbada pelos cariocas, homenageando a conquista pioneira com os dizeres: “Pico de Deus – Serra dos Itatins – 29 de julho de 1953 as 14hr – 1º Ten. Rodolpho Pettená, Orézio Ramalho, Roberto Pettená e Escoteiros da Ass. Pascoal Lembo  – `Pela sua Conquista”. A vista do topo privilegia todo quadrante norte da Juréia e além, com destaque pras escarpas abruptas de toda extensão da Serra do Itatins, desde o Boa Vista até a Serra do Bananal; enqto que pra apreciar a planície litorânea do setor sul é preciso se enfiar na quiçaça que forra aquele lado do cume.

Donos absolutos do topo e tendo o mundo a nossos pés, descansamos, batemos muitas fotos e mastigamos um lanche que nunca esteve tão delicioso. Uma felicidade incomparável tomou conta do nosso espírito pelo simples fato de estar ali e pelo significado que aquela montanha tinha pra toda região do Vale do Ribeira. Enquanto a brisa fresca secava o rosto suado imaginei a mesma cena se repetindo 63 anos atrás: o tenente Pettená chegando aqui com sua trupe e, com felicidade incomensurável, ligar seu radio de quase 5kg pra comunicar ao vivo á TV Tupi do seu grande feitio!

Ficamos exata meia hora desfrutando do cume, mas era preciso voltar. Tínhamos muito chão ainda até o veiculo. Na seqüência retomamos a volta pelo mesmo caminho, que naturalmente foi muito mais rápida. O bicho-papão do paredão agora era vencido facilmente com um lances facílimos de rapel e logo nos pirulitamos morro abaixo no meio da mata. Uma última olhada por sobre o ombro praquela montanha marcou nosso adeus aquele gigante de rocha, ou quem sabe um simples “até breve”. Quem sabe.

Chegamos no acampamento por volta das 13hrs, onde tivemos uma breve parada pra descanso e novo lanche, pra depois as mochilas engolirem o resto do equipamento e assim retomar a pernada derradeira. E lá fomos nós, refazendo o trajeto de volta com muito mais agilidade pela mesma “avenida” deixada na ida, agora devidamente sinalizada. No Pico Boa Vista, as 16:30hr, tivemos mais uma parada pra retomada de fôlego e molhada de goela com o que restava  nos cantis, pra então perder altitude lentamente os ziguezagues intermináveis que ladeiam sua encosta, na penumbra. Vagalumes faiscando a nossa volta tornaram a descida mais lúdica e menos enjoativa na hora que se seguiu.

Sob fachos de headlamps e lanternas finalmente desembocamos na escolinha ao pé-do-morro, cruzamos a ponte e finalmente pisamos na “Estrada do Despraiado”. Via de chão esta que parecia uma nova montanha a ser vencida devido ao cansaço, até que finalmente desabei no interior da Kombi, depois das 20hr. Antes da despedida daquela galera parceira e determinada, minha recompensa pessoal foi bebericar minha sagrada cerveja no único botequinho que encontramos aberto. Em tempo, naquela noite pernoitei na casa do Jean, pra somente na manhã sgte embarcar no primeiro latão com destino a Sampa. Viagem esta onde me ocupei de remover os malditos carrapatos espalhados pelo corpo, sob o olhar tão incrédulo quanto desesperado dos demais passageiros.

Pra finalizar gostaria de frisar que o Coronel Pettená foi um grande desbravador, mas à moda antiga, sempre ao estilo de expedição (muitas vezes com a presença de soldados, carregadores e mateiros). Alpinista, cavernólogo, explorador, turismólogo, muitas foram as atividades desse incansável vulto defensor do Vale do Ribeira, que não só conquistou o Pico Dedo de Deus Paulista como também fundou o Centro Excursionista Itatins e depois redescobriu a Caverna do Diabo, colocando a região no roteiro do turismo mundial. Faleceu no comecinho de 2007, com a merecida patente de general, a maior do Exército. Por todos estes antecedentes particularmente considero esta aventurinha no Dedo de Deus Paulista, pico lendário e proibido, não apenas como o ato de subir uma montanha. Foi repetir um feitio pioneiro associando-nos aos escaladores da velha geração, nos envolvendo na mística intrínseca que cerca a conquista duma montanha. E onde quer que ele esteja, estou certo que o bravo Coronel Pettená está orgulhoso da gente.

Leia outros relatos sobre o Dedo de Deus Paulista:

:: Julio Fiori

:: Vitamina

:: Arlindo Toso

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Sobre o autor

Jorge Soto é mochileiro, trilheiro e montanhista desde 1993. Natural de Santiago, Chile, reside atualmente em São Paulo. Designer e ilustrador por profissão, ele adora trilhar por lugares inusitados bem próximos da urbe e disponibilizar as informações á comunidade outdoor.

1 comentário

  1. Agradeço em nome da primeira equipe que atingiu o cume do pico Dedo de Deus Paulista em 29 de julho de 1953. A leitura do seu relato foi maravilhosa. A nossa conquista na época contou.com o meu irmão já falecido, o Coronel Rodolpho Pettená e outros amigos.
    Meu telefone é 19 3235 3771.

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