A SERRA DO QUIRIRI EM DOIS TEMPOS – Final

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Quando se imagina que a aventura havia terminado estando-se na porta de casa, é aí que tudo começa a dar errado.

PERRENGUE URBANO – Baseado no relato do Elcio Douglas
A bateria do celular já estava morta desde a noite anterior, então avisei o Julio, a cobrar, pelo orelhão e sem tempo para mais nada embarquei no ônibus Guaratuba – Curitiba as 18:15h, mas o cata-jeca empacou por mais de 10 minutos e fiquei sem contatar o Moisés. Começou a lambança, partimos e sosseguei deixando rolar. Horas depois desci na rodoferroviária com dois reais no bolso (justinho pro busão), sujo, cansado, fedido e feliz da vida. Do orelhão liguei de memória para a casa do Moisés, toca, toca, toca, disquei até gastar as pontas dos dedos e nada de atender. Saber também o número do celular de cabeça seria demais, estava gravado no cartão magnético do meu aparelho mortinho da silva.

Saí pela rodoviária pedindo, de porta em porta, emprestado um carregador Motorola, alguns me olhavam com desprezo, outros com desconfiança, mas a maioria nem olhava, responder então nem pensar. Enquanto perambulava feito indigente carregando uma fome de leão, cansado feito mula e fedendo mais que gambá, os neurônios entravam em colapso; "minha mãe tem cópia da chave, mas está viajando, a vizinha tem cópia da chave da casa da minha mãe, então vou até lá, mas se também saiu, foi-se a grana da passagem e não sei o telefone dela, fodeu seu idiota!!! Porque fui lembrar da chave lá no meio do mato? De quem é a culpa? Do motorista, só pode, o culpado é sempre o motorista ou o mordomo!"

No desespero sentei num banco e tentei fazer o telefone funcionar com as pilhas da lanterna, nada dá certo mesmo, frustado resolvi ir a pé para a casa do Moisés e esperar no portão, deitado na mochila, foi quando o primeiro mendigo me abordou e expliquei educadamente a minha situação. Cem metros pra frente veio o segundo que imediatamente mandei tomar no rabo. Cara que situação! Sentado debaixo do viaduto do Capanema comecei a rir de raiva, como podia ser tão burro? Que boca grande a minha? Estava um trapo, com a moral mais baixa que bunda de sapo.

Olhei as horas, faltavam 30 minutos para fechar o Shopping Estação e decidi tentar a sorte nas lojas de celulares antes de partir para o suicídio. Corri com as bolhas latejando dentro das botas e encostei a barriga num quiosque implorando ajuda. Finalmente encontrei uma alma boa e conectei o celular no carregador, mas o painel piscava por um segundo e se desligava sozinho. Que inferno, o que faltava mais me acontecer? Iria levar horas até fazer uma ligação e o shopping estava fechando, então o vendedor transferiu meu chip para o celular dele e o passou para mim enquanto fechava as vitrines. Que maravilha! Era um desses celulares tops que cortam até grama, e eu não sabia nem ligá-lo, quanto mais acessar a agenda.

Quando finalmente encontrei o número foi a caneta que não escreveu e tive que pedir uma caneta emprestada também. Pronto, meus problemas acabaram… Do orelhão disquei a cobrar para o Moisés e…e…e…a ligação caiu na caixa postal. Telefone desligado ou fora de área. Não faltava mais nada e precisava urgentemente achar um culpado pra tudo aquilo, e não podia ser eu. O maldito motorista do ônibus que não me deixou telefonar de Garuva. Já não importava mais, nada mais importava.

Será que não estava acertando ligar a cobrar do orelhão para celular, liguei pro Julio pedindo que tentasse, mas ele queria me pegar pra dormir na casa dele. Insisti apenas na ligação e nada feito, então entreguei os pontos e meia hora depois me resgataram estatelado na escadaria da velha estação ferroviária. Depois que passar por situações como está a gente dá um valor enorme para os pequenos confortos do dia-a-dia, como banheiro, água quente e roupa limpa.

Desci de banho tomado e encontrei uma pizza esperando por mim. Nossa!!! Aquilo foi demais, nem uma hora atrás estava totalmente na merda!!! Comi muita pizza, tomei muita coca, até o ponto de não caber mais. O pesadelo passou rapidamente para um passado distante que seria jogado num canto qualquer da minha memória. Então perto da 1h da madrugada o telefone toca, era o Moisés retornando pro Julio. Diante da possibilidade de dormir em casa, não resisti a proposta de me levarem até lá. Chave na mão, o Julio me deixou na porta de casa. Agora sim, meus problemas acabaram… e dois minutos depois estava em sono profundo na minha própria cama.

SEGUNDO TEMPO
Algum tempo depois, em 17 de novembro, retornamos acompanhados do Johny, Beto, Natan e da Michele em condições climáticas completamente diferentes. Choveu a semana toda e a trilha de vacas estava enlameada e coberta por poças d´água e merda. O Rio Trovoadinha com um bom meio metro de água a mais e a Michele teve muita dificuldade em atravessá-lo. A trilha completamente encharcada não demonstrava qualquer sinal de uso recente e das árvores o gotejamento constante nos ensopou em poucos minutos de caminhada. Abastecemos os cantis no riacho e prosseguimos na subida com o Johny e o Elcio se distanciando rapidamente.

Durante toda a semana encubei uma forte gripe que agora me castigava fortemente e tornava meus passos mais lentos e angustiados. Dores nas juntas e o mal estar da gripe me atrapalharam bastante durante as primeiras três horas de caminhada até os músculos esquentarem e só depois, no primeiro mirante, comecei a melhorar. Saímos da mata sob uma fina garoa que se abriu por alguns minutos, nos mostrando imensas cascatas se precipitando por todas as vertentes das montanhas ao redor. Longas e barulhentas, brancas e espumantes, jorravam no vazio e se perdiam na neblina. Por instantes ainda vimos alguns trechos da auto-estrada, depois a neblina e a chuva novamente encobriram toda a paisagem. Um pequeno lanche e mais pernada pela crista encharcada até a pedra do mocó onde para minha surpresa a inscrição do Fábio e Cris já haviam praticamente sumido. É meus caros, nada é eterno, nem a porquice dos pixadores de pedra.

Vencidos os 1200 metros da íngreme subida, finalmente chegamos aos campos e mais alguns poucos metros estávamos fora da proteção da floresta. Um vento feroz nos colheu de lado assim que despontamos no planalto, com chuva fina e fria. Muito frio, e não tardamos a reencontrar o Johny e o Elcio mocozados atrás das pedras, batendo queixo a nossa espera. O raio de visão não superava aos dez metros e o restante era todo branco, cinza e opaco.

Faltavam ainda duzentos metros verticais de campo totalmente desprotegido até a Pedra da Tartaruga e reiniciamos a caminhada com o vento uivando na pradaria e a chuva nos atingindo na face. Sem dúvida este é o clima do inferno e apenas caminhávamos para cima sem enxergar nada a frente até literalmente bater a cabeça no imenso bloco de granito do cume. Feito o contorno nos protegemos precariamente numa fresta e ninguém se atreveu a tentar escalar o maciço com aquele tempo. Vestimos os anoraks corta vento e enganamos o estomago com alguma besteira para imediatamente se por em movimento antes que os músculos se congelem e comecem as terríveis câimbras de frio.

Novamente cruzando a campina nua, rasgada pelo vento, pela chuva e no frio congelante, seguíamos pelo instinto, sem ver absolutamente nada a frente. Contornamos encostas fantasmagóricas, descemos e subimos ravinas seguindo trilhas de vacas, pisando em profundas poças d´água sempre açoitados por um vento dos demônios. Reconhecíamos algumas passagens, outras nem tanto, mas seguimos em frente mesmo assim. Na vez passada tudo era seco e quente por aqui, agora é tudo charco e a água corre por todos os lados, empoça e encharca.

O pequeno banhado virou um imenso brejo cheio de profundos poços e quando digo profundos é com mais de metro. Dá prá atolar até o pescoço numa só pisada. A trilha se perde seguidamente, então tomamos outra e quando não encontramos nenhuma nós mesmo a fazemos pelos campos encharcados. Atravessamos riachos encachoeirados e mais pradarias, outras encostas e tudo sem enxergar praticamente nada. As trilhas de vaca se cruzam e seguem em várias direções não levando a parte alguma. A esmo, sobem e descem as colinas, perdem-se na neblina, cruzamos por sobre grandes lajes de pedra e encontramos os totens para novamente nos perder na pradaria.

O Elcio toma uma direção que discordo, há um momento de dúvida. Tenho certeza do erro, nunca vi aquelas formações esquisitas emergindo da chuva e da neblina. Lembraria se já as tivesse visto, de onde estávamos pareciam cabanas. Mas também não tenho certeza, não enxergamos nem dez metros a frente e sabemos que o Morro das Antenas está muito próximo. Suspeito que estamos muito a direita e o Elcio segue sozinho para explorar a encosta abaixo, a procura da cerca de arame farpado. Ficamos enfiados num buraco a espera, comemos uns sanduíches e tiritamos de frio. A água fria da chuva escorre pelo rosto e pinga caudalosa pela ponta do nariz, estamos completamente encharcados e os músculos começam a se retesar de frio, precisamos nos movimentar e depressa.

O Elcio retorna sem encontrar nada que nos oriente, mas este cara não desiste nunca, insiste em procurar o Morro da Antena. Argumenta insistentemente que encontrando o morro fica tudo sossegado e é só seguir pela trilha de vaca até a Pedra do Urubu. Voltamos sobre nossos passos e seguimos por outras trilhas de vacas, encontramos outros totens, subimos outras colinas e nos perdemos novamente. Do Morro das Antenas nem sinal e olha que é uma montanha enorme, 1520 metros, 320 metros acima da pradaria. Duvido que estivéssemos distante mais de 500 metros da sua base e nem sinal dele. Desapareceu por encanto no denso nevoeiro, e ainda insistimos um pouco mais para nos ver mais perdidos do que nunca, não encontrávamos nem a cerca de arame farpado que cruza toda a pradaria, de oeste para leste até a beirada do abismo.

Enfim cortei a discussão argumentando o óbvio; com sorte apenas encontraríamos uma vaca no final daquela trilha de vacas, então caiu a ficha e desistimos, se estávamos irremediavelmente perdidos onde tanto eu como o Elcio tínhamos certeza de conhecer imaginem do outro lado do morro em que nunca estive e o Elcio cruzou apenas uma vez no galeto, seguindo por uma famigerada trilha de vaca com tempo excelente e visão de 360º. Para nossa saúde a melhor decisão foi mesmo voltar, aliás, já foi uma temeridade chegar até ali. Com certeza nos superamos mil vezes e para nossa surpresa em poucas horas estávamos novamente protegidos do vento pelo maciço do cume na Pedra da Tartaruga. Era quase agradável estar deitado ali na grama encharcada depois de transpor todo o inferno da campina. O vento uivava a nossa volta enquanto descansávamos de todas as agruras do dia e comentávamos a diferença dos dois mundos que conhecemos naquele mesmíssimo lugar.

Assim é o Quiriri, uma serra sem meios termos. Encostas íngremes de 1200 metros cobertas por vigorosa floresta e abismos colossais protegem um imenso planalto de campos açoitados pelo vento e riachos refrescantes onde da campina brotam cumes rochosos que se elevam para o céu. E um clima infernal.
teate

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Sobre o autor

Julio Cesar Fiori é Arquiteto e Urbanista formado pela PUC-PR em 1982 e pratica montanhismo desde 1980. Autor do livro "Caminhos Coloniais da Serra do Mar", é grande conhecedor das histórias e das montanhas do Paraná.

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