Afinal, o que é a Puna do Atacama?

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A Puna do Atacama não é a mesma coisa que o deserto do Atacama e nem que “puna” palavra Aymará que significa altura, embora esta remota, selvagem e pouco conhecida região andina tenha tudo a ver com isso. O que é a Puna do Atacama? Onde ela fica? e por que ela desperta tanto interesse aos montanhistas que gostam de desafio, exploração e exclusividade?

Como citado na introdução deste artigo, “puna” significa “altura” em aymará, língua dos indígenas da Bolívia e também a língua nativa da região andina do norte da Argentina e Chile. Quando um turista chega na Bolívia e passa mal com a altitude, é comum o boliviano falar que ele está “punado”. O significado da palavra Puna tem tudo a ver com a região da Puna de Atacama, pois lá é uma das regiões onde a média de altitude é das mais altas de toda cordilheira.
 E Atacama? Bom este nome vem mesmo da região desértica do norte do Chile, no entanto, geograficamente a Puna não é o Atacama, mas sim uma área adjacente, localizada na mesma latitude, mas que em comum tem apenas a paisagem desértica. A Puna do Atacama é a região andina elevada do Atacama que tem como característica ser um grande planalto, um “altiplano”.
 Falando em altiplano, nos lembramos da Bolívia, pois é lá que se desenvolve a região com maior extensão do chamado “altiplano andino”, uma região com relevo aplainado onde ora ou outra aparecem montanhas mais altas (geralmente vulcões) ainda que se destacam na paisagem.

Vulcões predominam na paisagem da Cordilheira Ocidental da Bolívia.

 Em curtas palavras, a “Puna do Atacama” é uma região dos Andes, localizado na mesma latitude do deserto do Atacama, entre o Chile e a Argentina que é o começo, ou o fim do altiplano andino, que tem como área nuclear mais famosa o altiplano da Bolívia. A Puna é a continuação do Altiplano Boliviano mas que não tem divisão natural com ele, sendo esta apenas uma divisão política ao meio deste vasto domínio de paisagem. A Puna do Atacama é uma região alta, seca, onde há a maior concentração de montanha de 6 mil metros dos Andes, a maioria pouquíssimo frequentada, que se mantem numa situação quase selvagem.

Puna do Atacama, arte de Julien Cachemaille.

 Este enorme planalto é resultado da orogenia andina, o choque entre a placa de Nazca e Sulamericana. Ao longo de milhares de anos de evolução, que vêm desde a época dos dinossauros até hoje, a região onde está esta porção da atual cordilheira dos Andes já foi um arco de ilhas que se colidiu com o continente e se elevou a grandes alturas. Formou-se então bacias fechadas, onde a água não tinha saída ao mar, locais que foram propícios para acumulação de sedimentos promovidos pela erosão acentuada pelo clima semi árido e também por antigas geleiras que há muito já se derreteram para criar o relevo quase plano tão característico desta região. Um contraste em relação às altas montanhas que existem aos montes por lá.
 Na região oeste da Puna (Cordilheira Ocidental), as montanhas são quase todos vulcões, como Ojos del Salado (6893 metros, segunda mais alta dos Andes), Pissis (6795m, terceira), Bonete Chico (6759m, quarta), Llullaillaco (6739m, sétima), Walther Penck (6658m, nona), Três Cruces Central (6629m décima primeira), Incahuasi (6621m décima segunda) entre outras dezenas de montanhas. Na região leste (Cordilheira Oriental), predominam montanhas que são dobras ou cavalgamentos, como o Cachi (6380m, vigésima oitava), Palermo (6150m) e outras centenas de montanhas de mais de 5 mil metros.

A Puna vista do cume do Sierra Nevada.

 A paisagem da Puna é impressionante. Por ser uma das regiões mais secas do mundo, quase sempre nos brinda com um belo céu azul que tanto contrasta com as cores do deserto. O preto das rochas vulcânicas, o vermelho das sedimentares, o amarelo dos capins, o branco dos salares, que aliás é um elemento marcante destas paragens andinas. Com as bacias fechadas, sedimentos vulcânicos e clima árido onde prevalece a evaporação ao acumulo de água. Salares existem aos montes.

O salar de Arizaro, no norte da Argentina.

 É uma região pouco, ou quase nada habitada. Cá ou lá há uma cidadezinha, que via de regra vive da mineração. As maiores “metrópoles” são San Antonio de los Cobres, em Salta e Antofagasta de la Sierra, em Catamarca, ambas na Argentina. Há outras tantas cidades fantasmas, vítimas do fim de ciclos econômicos do extrativismo que se esvaziaram ao ponto que se esgotavam as jazidas, locais como La Casualidad e outros que tiveram seu nome esquecidos com o tempo.
 O ar de “selvagem”, “inóspito” e “remoto” é o resultado do tempo. Outrora estes planaltos eram rotas de passagem do império Inca, pois ali era o tronco central do “Capac Ñan” a grande estrada que ligava o império de Norte a Sul. Os Incas não só passavam por lá, como também escalavam as montanhas mais altas da região. Vestígios destas escaladas pré colombianas estão até hoje nos cumes gelados, seja com construções em ruínas e até mesmo com restos mortais de pessoas que eram sacrificadas em rituais religiosos. O caso mais famoso é o das três crianças do Llullaillaco.

As crianças do Llullallaico. Foto da MAAM – Salta.

 Ainda assim, mesmo estando na Argentina ou Chile, os habitantes da Puna são todos descendentes dos Incas, etnicamente são muito mais parecidos com os bolivianos que os chilenos ou argentinos, nada de cultura gaúcha ou araucana.
 Mas a Puna não é só beleza paisagística e história/ arqueologia, é um prato cheio para montanhistas, principalmente aqueles que não se contentam em seguir o caminho dos outros. As montanhas de lá são muito pouco frequentadas, talvez elas fossem mais escaladas há 500 anos do que hoje. Apenas como exemplo, já cheguei, junto com Waldemar Niclevicz, a realizar a quinta ascensão absoluta de um cume com mais de 5800 metros, no belíssimo vulcão Peinado, em 2013. Há montanhas de 6 mil metros ali que foram apenas escaladas recentemente, como o Condor, que com 6414 metros foi escalado pela primeira vez apenas em 2003. Outros 6 mil foram escalados ainda mais tarde, como os vulcões Colorados e Vallecitos, com 6080 e 6168 metros de altitude.

Vulcão Peinado.

 Existe um certo preconceito sobre estas montanhas, de que elas são “fáceis” e “secas”. No, entanto eu discordo. As dificuldades começam pela logística, longas aproximações em 4×4, falta de informação e o clima muito frio. Aliás o clima é extremo e a paisagem seca pode rapidamente mudar, trocando o marrom do deserto para o branco da tundra, o que é perigoso. Neste ano mesmo, um montanhista faleceu congelado durante uma tormenta. Estas montanhas merecem respeito.
 Por todos estes motivos, fui 5 vezes escalar nesta região nos últimos 2 anos e realizei diversas ascensões, Ojos del Salado duas vezes, Incahuasi, Antofalla, Três Cruces Sul, Central, Vicuñas, Llullaillaco, Socompa, Cachi, Quewar, Acay e outros. De acordo com Rodrigo Granzotto Perón, que faz um belo trabalho de registrar escaladas em grandes montanhas, diversas delas foram inéditas no Brasil. O que não é tão difícil acontecer, pois pouquíssimos brasileiros sequer sabem que existem estas montanhas.
 Esta é a Puna do Atacama, uma região linda e traiçoeira. Ignorada por montanhistas que nunca escalaram lá, mas que merece ser mais conhecida e suas montanhas respeitadas.
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Sobre o autor

Pedro Hauck natural de Itatiba-SP, desde 2007 vive em Curitiba-PR onde se tornou um ilustre conhecido. É formado em Geografia pela Unesp Rio Claro, possui mestrado em Geografia Física pela UFPR. Atualmente é sócio da Loja AltaMontanha, uma das mais conhecidas lojas especializadas em montanhismo no Brasil. É sócio da Soul Outdoor, agência especializada em ascensão em montanhas, trekking e cursos na área de montanhismo. Ele também é guia de montanha profissional e instrutor de escalada pela AGUIPERJ, única associação de guias de escalada profissional do Brasil. Ao longo de mais de 25 anos dedicados ao montanhismo, já escalou mais 140 montanhas com mais de 4 mil metros, destas, mais da metade com 6 mil metros e um 8 mil do Himalaia. Siga ele no Instagram @pehauck

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