Na história das civilizações podemos observar em todos os continentes a importância que este elemento fisiográfico teve para a evolução cultural dos povos, seja pelas limitações que ela impõe ou, pelo contrário, aos favorecimentos que este ambiente cria para as atividades econômicas do homem. A partir deste pensamento afirma-se que as montanhas são ambientes de natureza completamente antagônicas, capazes de limitar a vida e ao mesmo tempo “presentá-la” com abundância de recursos.
Somente este argumento já justifica a importância de se estudar as montanhas, não sendo à toa que a Organização das Nações Unidas chegou a declarar o ano de 2002 o ano internacional delas.
Quando se estudam montanhas, o primeiro pensamento que se deve ter em mente é a energia. A origem das montanhas é resultado de um desprendimento de energia, seja nas forças orogenéticas que movimentam as placas tectônicas, causam choques e soerguem o relevo, ou pela ação extrusiva de um vulcão que emerge para a superfície o material novo do manto terrestre.
A violenta energia que faz emergir as montanhas contrapõe ao frágil equilíbrio deste ambiente, que e naturalmente perturbado pelas forças destrutivas que nunca param de agir, nivelando a topografia, destruindo as vertentes e transportando material que é depositado nas depressões circunvizinhas, que após sofrer a ação de outras forças internas pode vir a soerguer e formar novamente montanhas. Assim, a Terra vai evoluindo pela ação enérgica e desequilibrada dela própria.
Dentro os inúmeros fatores de remodelamento do relevo, o gelo desempenha o papel principal desta atividade, pois ele é quem mais tem energia para destruir as rochas e transportá-las para regiões mais rebaixadas. Sendo assim, ele se comporta como o agente de intemperismo mais competente para a destruição e reconfiguração das paisagens montanhosas. Se não bastasse, o frágil equilíbrio deste ambiente é ainda alterado pelas ações do homem que no objetivo de transformar este hostil ambiente em seu favorecimento, é muitas vezes castigado por suas próprias ações e tem assistido muitos desastres sem nada poder fazer. Por isso o gelo nas montanhas é o objeto de estudo desta breve revisão.
Neve e gelo
Neve é a precipitação em forma sólida que é originada do congelamento da água fria ao lado de pequenos materiais em suspensão, especialmente minerais de argila. Uma vez formados, cristais de neve estão sujeitos à continuas mudanças. Eles podem crescer pela condensação, diminuir pela evaporação ou fusão, podem ser fragmentados e recombinados em numerosas formas.
Flocos de neve são geralmente pequenos e simples quando são formados no ar frio de elevadas altitudes, mas eles se tornam maiores e mais complexos quando se formam ou quando precipitam para elevações menores onde as temperaturas são maiores e há mais umidade. Desta forma, a neve dos cumes das montanhas é diferente da encontrada em médias vertentes.
A maioria dos flocos de neve seguem um padrão hexagonal, entretanto suas formas individuais exibem infinitas variedades. As principais formas de cristais de neve são geralmente agrupadas em dez tipos principais, porém, é quase impossível encontrar 2 flocos com formatos iguais.
Estes são apenas aplicados à neve que está em precipitação. Uma vez que ela atinge o solo, os flocos de neve rapidamente perdem sua forma original e são comprimidos, sofrendo metamorfismo.
A neve, entretanto, exibe uma contínua mudança durante sua formação, precipitação e acumulação no solo, antes que, eventualmente derreta e retorne ao oceano. Ao cair, a neve possui a densidade de 0,01, ou seja, um litro pesa apenas 10 gramas, graças ao entrelaçamento dos cristais que mantêm um grande espaço vazio preenchido com ar. Contudo, durante a acumulação, o peso das camadas superiores faz com que o espaço vazio entre os cristaizinhos diminua cada vez mais, aumentando assim sua densidade. A neve quando permanece acumulada por alguns anos, recebe o nome de firn, e tem sua densidade aumentada para 0,6.
O degelo parcial durante o dia e recristalização que ocorre a noite, transformam os cristais em grânulos mais arredondados, maiores e mais compactos. Após alguns anos, a neve vai se transformando em gelo, chegando a ter uma densidade de mais de 0,917. No entanto, é bom ressaltar que existem inúmeros tipos de gelo, exatamente de acordo com estes estágios de desenvolvimento. Nós que vivemos em um país tropical, não temos base para comparações, entretanto, os povos que vivem em grandes latitudes como os esquimós, tem mais de 20 denominações para gelo.
Glaciares e fisiografia relacionada
Quando a neve vai se tornando mais dura e mais densa, o espaço com ar entre as partículas são diminuídos e fechados. Quando este estágio é alcançado, é considerado então um gelo glacial.
Os glaciares existem onde há acumulação de neve durante o inverno e o derretimento do verão não é capaz de fundir esta massa de gelo. Desta forma, sua distribuição no globo se limita a regiões polares ou montanhas com altitude suficiente para que haja frio na maior parte do ano.
Existem inúmeras maneiras de classificar um glaciar. A mais simples é de acordo com a topografia, isso considerando apenas as geleiras de montanhas, que são as levadas em consideração aqui.
Em uma porção altimétrica mais elevada, a acumulação de neve nas encostas das montanhas forma os glaciares de penhasco, que são pequenos corpos de gelo equilibrados sobre a vertente em trechos de declividade positiva. Este tipo de geleira não assume um grande volume e nem muita profundidade, pois sua acumulação, muitas vezes, resulta em desequilíbrio e avalanches. Um exemplo para este tipo de geleira e o glaciar superior da face sul do Aconcágua (acima).
Em grandes altitudes, em locais menos acidentados, formam-se os chamados circos glaciares. São geleiras de maior dimensão, muito gretadas e limitadas pelas vertentes mais elevadas e uma geleira de vale nas altitudes menores. Situa-se em grandes anfiteatros, muitas vezes evoluídos por sua própria ação. Uma das montanhas que mais tem geleiras deste tipo e o monte Tronador na divisa do Chile com a Argentina, que apresenta seis glaciares.
Por fim, os circos glaciares alimentam as geleiras de vale, que aproveitam a topografia dos vales para se desenvolverem sobre eles. Podem atingir grandes dimensões, chegando a ter cinco mil quilômetros quadrados, como por exemplo, o glaciar Aletsch na Suíça.
Desde a acumulação de uma partícula de gelo, seu soterramento e por fim, seu derretimento na porção basal, pode decorrer uma centena a milhares de anos, de acordo com seu balanço de massa. Após a formação, a manutenção das geleiras depende do equilíbrio entre a acumulação de neve e sua perda por ablação.
O balanço pode ser positivo, negativo ou neutro. No primeiro caso, a acumulação supera a perda, levando ao crescimento e ampliação das geleiras. No segundo, a perda é maior, e as geleiras diminuem de tamanho, podendo ate desaparecer. As geleiras mantêm uma massa constante quando o balanço é zero.
Além da neve acumulada, outros materiais podem contribuir para o aumento da massa das geleiras: granizo, geadas, avalanches de neve, rocha, ou gelo, e chuva. Do outro lado, o termo ablação envolve a perda de massa das geleiras por derretimento, fragmentação e sublimação do gelo. A distribuição da acumulação e ablação varia ao longo das geleiras, sendo estas condicionadas pela topografia e divididas pelo ponto de equilíbrio.
A zona de acumulação das geleiras situa-se nas suas partes mais elevadas e a ablação predomina nas regiões mais baixas. A adição do gelo na zona de acumulação é compensada pela sua diminuição na zona de ablação.
Em determinadas épocas do ano, o balanço de massa tende para a acumulação no inverno e ablação no verão. O material depositado nas maiores altitudes, por efeito da gravidade, vai se deslocando para as regiões mais baixas. A declividade do solo e a massa de gelo, são os fatores principais que influenciam na velocidade de uma geleira.
No glaciar Alestsch, a velocidade atinge 3 metros por dia, no Tirol tem se registrado 12 metros, no Himalaia, varia entre 2 e 5 metros e as mais velozes são encontrados nas geleiras da Groenlândia, cujas montanhas, localizadas nas bordas da grande ilha, possuem em seus vales grandes geleiras que recebem a pressão da enorme massa de gelo existente sobre a ilha.
Graças à rigidez do gelo, e à irregularidade do seu movimento, formam-se diversos tipos de rupturas, sendo muitas vezes enormes fendas com grandes torres de gelo. A velocidade é menor nas margens do que no centro, e menor na região superficial pela maior rigidez do gelo (em decorrência à baixa temperatura).
Esta diferença de velocidade determina a formação de fendas transversais à direção da geleira, por outro lado, se o vale da geleira se tornar mais largo, o gelo tenderá a espalhar-se pelos lados, e, como é rígido, quebra-se em fendas paralelas ao comprimento da geleira, formando as temidas gretas.
Um caso interessante é o da formação de cascatas de gelo, que se formam quando há um acidente topográfico no fundo da geleira, que faca que seja aumentada a velocidade do gelo, que se torna todo partido no local. E logo adiante solda-se de novo, continuando como se nada tivesse acontecido, gracas a recomposição que se processa com a recristalização. Esta cascata de gelo, chamada pelos alemães de Eis Fall, são muito famosas em certas montanhas, como a cascata de gelo do Khumbu no monte Everest, e representam um grande perigo para os escaladores. O tamanho das fendas pode ser variado de acordo com a profundidade do glaciar, podendo atingir muitas vezes mais de 100 metros de profundidade.
Numa geleira dos Alpes, numa certa ocasião, foram vitimados alguns alpinistas que caíram num destes traiçoeiros abismos. Seus corpos, em pedaços, foram encontrados apenas 41 anos mais tarde, no término da geleira, que se situava muitos quilômetros abaixo do local do acidente. Esta triste situação exemplifica bem o movimento de massa de uma geleira. As gretas ficam ainda mais perigosas depois de uma nevasca, pois muitas vezes elas ficam ocultas pela neve recém caída. Este fato faz com que muitas vezes os alpinistas também contribuam com o aumento de massa das geleiras.
O movimento de uma geleira faz que seja erodido todo o material rochoso e edáfico que exista em seu contato, tanto na sua posição basal, lateral ou frontal. A primeira feição que ocorre com o movimento de uma geleira e o seu afastamento da vertente rochosa em sua parte superior, formando fendas entre o gelo e a rocha chamadas de bergschrund. Os bergschrund ficam mais evidentes na época de pouca acumulação, nos verões.
O deslizamento do gelo vai destruindo todas as rochas que estão em contato com ele, ao mesmo tempo que este material desagregado vai sendo transportado. Por possuir uma alta energia, o gelo tem a maior capacidade de transporte natural, conseguindo transportar ate matacões do tamanho de um carro ou maiores. A este material rochoso transportado dá-se o nome de Morainas, que são classificadas de acordo com sua posição na geleira.
As morenas podem ser basais, que localizam-se no substrato de uma geleira, laterais, que situam-se ao lado em contato com as vertentes, ou frontais, que ficam na extremidade mais baixa no termino da geleira. Morenas são o material sedimentar de tamanhos mais variados, podendo ter proporções de matacões, como já citados, até argila. Na conformação de uma morena há não apenas a influência de gelo, mas também de outros elementos relacionados que vão originar feições típicas de ambientes glaciais e periglaciais.
As geleiras sofrem constantemente fusão e a água liberada escorre na base do gelo, por “dutos” subsuperficiais. Em algumas montanhas que somos obrigados a acampar sobre geleiras, ouvimos o barulho de água que se movimenta com grande velocidade e energia abaixo de nós.
A sedimentação glacial pode ocorrer sobre condições terrestres ou lacustres. Quando esta última condição ocorrer, origina-se, depois de milhares de anos, o famoso varvito. Esta rocha apresenta uma estratificação com nítida diferença entre as camadas, que são originadas em duas condições térmicas distintas, quando superfície do lago está congelado e quando não está. Neste último período, todas as rochas que ficam congeladas na superfície do lago durante o frio, caem no degelo e formam os famosos “seixos caídos”. Esta rocha é muito comum em certos locais da bacia do Paraná, conformando a formação de rochas sedimentares do grupo Tubarão, datados do período carbonífero, de mais de 200 milhões de anos que atestam que esta parte continental do continente, que ainda nem era a América do Sul, já esteve numa porção latitudinal muito maior que atualmente e que a petrologia brasileira tem influência de atividades geológicas do gelo.
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Em ambientes terrestres, o depósito formado diretamente pelas geleiras chama-se till. Trata-se de sedimento inconsolidado, não selecionado, constituído por matriz argilosa/siltosa/arenosa, contendo fragmentos rochosos caoticamente dispersos, de tamanho variado, desde granulo ate matacão. Denomina-se de tilito o equivalente litificado do till. A dificuldade em se reconhecer os verdadeiros tilitos de outra rocha de aspecto similar, porém de origem diversa, como é o caso de conglomerados de matriz não selecionada gerado pelo fluxo gravitacional de mistura de detritos e lama, utiliza-se o termo não genético de diamictito.
A feição dos processos de erosão glacial resulta na formação de uma grande variedade de feições tipicas, nos diferentes substratos sobre os quais as geleiras se deslocam. Embora a maior parte das feições erosivas descritas na literatura ocorra em substratos consolidados (rocha dura), ele também pode ocorrer sobre sedimentos inconsolidados.
Em uma microescala, são comuns algumas feições, dentre elas, as mais comuns são as estrias glaciais. Na literatura especifica, estas estrias podem ser positivas: salientes, ou negativas: sulcos. As estrias são formadas quando as geleiras deslizam sobre diferentes substratos arrastando detritos protuberantes na sua base sobre o assoalho rochoso, podendo ser estes materiais aqueles que são incorporados subglacialmente ou aqueles adicionados a montante e englobados pelo gelo.
Uma pressão efetiva normal do gelo sobre o substrato e necessária para produzir abrasão. Estrias glaciais são feições descontinuas, embora possam individualmente alcançar comprimentos de ate vários metros. As interrupções são provavelmente devidas a perda de contato do objeto abrasivo com o assoalho.
Tendo em vista sua origem, as estrias orientam-se paralelamente para a direção do fluxo do gelo. Embora sejam indicadores dessa direção, nem sempre permitem a interpretação do sentido do movimento. não e incomum encontrarem conjuntos de estrias entrecruzando-se sobre o mesmo substrato, indicando mudanças na direção do movimento do gelo apos um período de recuo ou simplesmente uma mudança na direção da movimentação da geleira.
Em uma macroescala, uma das feições de relevo originadas sob ação glacial mais marcantes são os chamados vales em “U”. Estes são grandes vales, muito profundos com vertentes côncavas e fundos planos. São originados pela meteorização das vertentes por ação do gelo, que com muita energia destrói e transporta as rochas circunvizinhas por ação mecânica. Em ambientes tropicais quentes úmidos, como no Brasil, os vales assumem, por ação do intemperismo químico, formas de “V”.
Além das formas originadas pela ação abrasiva de gelo, as paisagens glaciais caracterizam-se pela ocorrência de formas de erosão produzidas pela água de degelo. Uma destas formas são os já citados canais subglaciais de água, sendo eles visíveis na zona de ablação das geleiras. Estes canais, possuem muita energia, que é perdida ao emergir para a superfície. A perda de energia faz que seja depositado todo o tipo de material anteriormente transportado, sedimentando os objetos maiores na montante e os de frações menores até muito mais a jusante, formando os leques de detritos e planícies de lavagem respectivamente.
No recuo de uma geleira, a fisiografia da paisagem fica totalmente transformada pelos processos morfogenéticos glaciais. Observa-se em ambientes anteriormente ocupados por geleiras, como nas proximidades dos grandes lagos americanos, enormes deformações amorreadas que são antigas morenas frontais, já bastante intemperizadas pelo clima atual.
Em vales de altas montanhas, com nos Andes, Alpes, Himalaia, observa-se também evidências de períodos glaciais recentes que proporcionou ambientes favoráveis para o avanço do gelo até altitudes mais baixas. Uma destas formas são os eskers, grandes alinhamentos de cascalhos e seixos que foram transportados por antigos dutos subglaciais de água do degelo que tinham energia suficiente para transportar tais sedimentos. Em locais em que destes dutos encontravam obstruções, formou-se os chamados drumlim, enormes diques de rocha transportada que acumulou-se em um determinado local devido a barragem da água subglacial.
No locais onde a água de degelo chegava em lagos, formou-se os chamados kames, que são leques de detritos caídos para o fundo lacustre. Os lagos são muito comuns em bases de geleiras, pois as morenas muitas vezes acabam por represar a água de degelo. Em morenas é comum também encontrar pequenos lagos que são oriundos do derretimento de um bloco de gelo mais sólido, que assim como as rochas, são transportados pelo glaciar. Estes blocos resistem por mais tempo e enquanto ele dura, são depositados inúmeros detritos ao seu redor, ao derreter, sua própria água forma o lago comprimido na concavidade das rochas que anteriormente “abraçavam” o gelo que tardou a fundir, formando os kettles.
Exemplo de desagregação por congelamento de água. Efeito de Crack.
Estes ambientes mesmo sendo originais em locais de terminação de geleira, são ainda condicionados pela baixa temperatura que ainda persiste em tal ambiente. A temperatura é responsável pelo permafrost das rochas e sedimentos, ou seja, pelo permanente congelamento destes materiais. O permafrost é também um importante agente morfogenético. No calor, a água adentra as fendas das rochas. Quando a água congela no período frio, a rocha simplesmente parte no meio pela expansão do gelo, fazendo o chamado efeito de “crack”.
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