O calcário não será mais do que uma lembrança, nesse mundo de arenito em que se inserem as reservas deste artigo. São grandes áreas, em extensões planas, atravessadas por uma crista aguda, por cênicas veredas, por rios caudalosos e por um vasto cânion.
São três as unidades de conservação do sertão, todas situadas na mesma região.
Serra das Araras: Há cerca de quatro décadas, um projeto de assentamento atraiu gaúchos para terras remotas no noroeste mineiro, antes colonizadas por vaqueiros e bandeirantes. Eles fundaram então a Vila dos Gaúchos, que teve o nome mudado para Chapada Gaúcha. Logo a seguir, denúncias de desmatamentos ilegais na Serra das Araras fomentaram um movimento de preservação, para lá criar um Parque Estadual.
O Parque Estadual da Serra das Araras foi fundado oficialmente com 11.140 ha (na realidade, 15.000 ha), numa região atravessada por serras e chapadas. Seu nome decorre por ser local de reprodução de araras vermelhas e canindé. Mas sua vegetação rica em frutos serve de refúgio para muitas outras aves.
A PESA tem um visual radical, com paredões fraturados em arenito avermelhado nas bordas das chapadas. Apresenta veredas, cerrados e matas ciliares. Esse ambiente hospitaleiro e variado acolhe uma fauna expressiva, com animais de médio porte, pequenos mamíferos e muitos pássaros. O clima tropical e úmido permite grandes variações de temperatura entre as estações.
É um Parque ainda sem estrutura adequada e praticamente sem visitação. Você pode chegar até lá por longos caminhos em terra, seja por Januária (135 km) ou por São Francisco (120 km). Verifique seu combustível e desista de seu celular.
Como parti de Januária, atravessei a gigantesca APA de Pandeiros, da qual falarei depois da atual série. Integrada com a APA do Cochá-Gibão, alcança inacreditáveis 700 mil ha de um interminável cerrado árido e degradado. O Pandeiros é um afluente do São Francisco e o Cochá e o Gibão, do Carinhanha. Aqui felizmente os rios são caudalosos, apesar de terem hoje menos volume do que no passado.
O Parque fica próximo ao vilarejo de Serra das Araras, um pequeno distrito 45 km antes da sede do município, sempre por terra. Ele não é cercado e seus limites são invadidos por posseiros, que criam gado, extraem madeira e causam incêndios no seu interior.
É possível percorrer algumas trilhas, com extensão de até 5 km, que permitem subir na serra, avistar paisagens do alto, atravessar algumas veredas e entrar no rio. A serra é frontal e próxima ao vilarejo. Este é um território do arenito, não mais do calcário – este terminou em Pandeiros às margens do Rio Pardo, um afluente do São Francisco.
A subida da serra é por uma aresta estreita e desagregável, que pode ser escalada por aqueles com familiaridade com montanhas, mas que me pareceu criminosa para o público em geral e para a integridade da serra. É uma ascensão de quase 250 m, que chega ao platô a 855m de altitude, onde há uma simpática capelinha com uma cruz.
Para mim, todo cume deveria ter um cruzeiro como este. É muito bonito contemplar lá de cima os altos chapadões numa direção e a longa vereda do Rio Catarina logo à frente – um afluente seu, o Arara Vermelha, forma uma delicada cachoeira a 15 km da vila. Em resumo, um Parque interessante, que poderia ser melhor explorado.
Reserva do Acari: O Acari é um pequeno tributário do São Francisco, com menos de 100 km. À sua volta foi estabelecida uma RDS com 60.000 ha. Resultou de uma agressão à natureza quando uma empresa reflorestadora adquiriu toda a gleba da reserva e começou a retirada do cerrado com uso de correntes. Isto gerou um movimento de preservação -entretanto, não acarretou a retirada dos atuais fazendeiros de gado.
Existem seis dezenas de veredas neste local privilegiado. A região é plana, a talvez 600m de altitude. Nele percorri apenas 18 km em dois dias e não pude chegar à foz do Acari. Ele é cortado pelos elegantes buritis, que se associam nas veredas a outras vegetações de gramíneas, arbustos e árvores.
As raízes do buriti, diferentemente das outras palmeiras, não são verticais e sim rasas e esponjosas, retendo a água à sua volta, mesmo na estação seca. Além disso, ele tem a qualidade de acolher outras vegetações à sua volta. Suas fibras resistentes têm uso variado, como coberturas, móveis e remos, e seu fruto é comestível. Não surpreende que seja chamado de árvore da vida.
Existem quilombolas enfiados no cânion do Rio Pardo, que abriga alguns inacessíveis criadouros de araras. Por aqui passará a Caminhada do Sertão, percurso de 170 km realizado todo inverno em homenagem a Guimarães Rosa. Ela começa em Sagarana e termina em Chapada Gaúcha.
Pois este cânion contém as comunidades de Buracos e Buraquinhos, banhadas pelo ainda jovem e raso Rio Pardo. Você pode caminhar 7 km entre elas, cruzando a vau várias vezes o rio. É uma região surpreendente, com paredes abruptas de arenito e um cerrado vigoroso à sua volta.
Buracos está a 18 km de Chapada Gaúcha e Buraquinhos, a 15 km de Barro Vermelho – isso daria ao cânion a extensão de 40 km, o que o faria o maior do país. Na realidade, ele é interrompido no seu meio por cerca de 10 km, quando se transforma num vale. Seu desenho irregular decorreu dos abatimentos provocados pelos afluentes, ao escavarem suas passagens.
Mostra-se uma formação muito bonita quando avistada de cima, recoberta por muita vegetação, com paredes definidas, mas irregulares. É uma garganta espaçosa, com ½ km nos trechos mais estreitos. O desnível entre crista e fundo deve ser próximo de 150m.
Existe a intenção de integrar a serra às veredas, criando então um único parque com 75 mil ha. Para tal, será necessário indenizar os ocupantes da serra e desalojar a meia dúzia de grileiros das veredas. Se puder ser bem estruturado, será uma reserva primorosa.
Grande Sertão Veredas: Este Parque foi criado para preservar a paisagem dos gerais, longos campos recobertos pela vegetação do cerrado, antes que se transformassem em culturas de soja – que você encontrará em enormes fazendas ao longo dos chapadões.
Ocupa a chapada divisora de águas entre o São Francisco e o Tocantins, contendo a bacia do Rio Carinhanha. Este rio nasce em Minas, percorre longamente a divisa com a Bahia e deságua no São Francisco 450 km depois da nascente. É um curso magnífico, circundado por serras e várzeas, dotado de corredeiras de águas limpas e piscosas.
O PNGSV está no noroeste de Minas, próximo à Bahia, abrangendo quatro municípios, o principal sendo Chapada Gaúcha, localizada num chapadão a 900m. A cidade é relativamente recente e ainda tem um certo aspecto de fronteira. Depois de expandido, conta com 230.850 ha, num desenho arredondado, num território de vilas pobres e pequenas.
O único acesso asfaltado é por Arinos, a 90 km de distância. Mas você pode chegar por São Francisco (135 km) ou Januária (180 km), visitando no caminho a Serra das Araras. Vindo pelo norte, é mais direto passar por Montalvânia (175 km). A única distância pequena são os 3 km que separam a sede do PNGSV da vila.
O solo é arenoso e o clima é semiúmido, permitindo árvores moderadamente altas. São vegetações típicas do cerrado, ocorrendo ainda a formação de carrascos, uma forma de caatinga arbustiva e lenhosa, bem como de veredas de buritis e de matas ciliares.
Os animais são bastante variados, incluindo espécies ameaçadas, como o cervo do pantanal, a suçuarana, o tamanduá bandeira e o jacaré coroa. O relevo é plano ou suavemente ondulado, na altitude de talvez 750m. Você pode avistar toda esta região pela torre de observação do Parque.
Você já sabe que uma reserva tão grande como esta não será cercada, sinalizada ou indenizada. E que será invadida por posseiros, pastoreada por bovinos, sujeita à caça ilegal e ameaçada pelo fogo. Não está aberta à visitação, mas pode ser percorrida mediante licença prévia e uso de guia.
Contém meia centena de veredas muito bonitas na bacia do Rio Preto, das quais conheci a Extrema, a Onça, a Capim de Cheiro e a Santa Rita. Foi muito bacana enxergar estas últimas do alto do Morro Três Irmãos (850m), numa agradável caminhada de 12 km. O Parque também possui cachoeiras, como a do Mato Grande e do Gavião.
Mas apenas o lado mineiro é visitável, com Plano de Manejo aprovado. O Parque prossegue na Bahia, na margem oposta do Carinhanha. Este território, que não parece ter sido ainda mapeado em detalhe, contém 2/3 da área total e uma sucessão de veredas ao longo do Rio Itaguari.
Nos capítulos seguintes desta série, você voltará a encontrar o Espinhaço em duas reservas muito interessantes, a primeira numa região com uma história e uma natureza peculiares, e a segunda, com uma campina e uma serra maravilhosas.