Não há como considerar o Espinhaço sem o São Francisco. Ele é como uma versão líquida da serra, à qual corre exatamente paralelo. É só quando ela acaba que ele pode enfim se curvar ao encontro do mar. Muito tempo atrás, tive um sonho de descê-lo nas embarcações chamadas de gaiolas. Ele nunca se realizou, mas pelo menos naveguei por dias nele de traineira. Eu o conheci no ano de sua grande cheia – voltei agora para revê-lo castigado pela seca. Então, aproveito o Espinhaço para rememorar o São Francisco, a meu ver o mais abrangente de nossos rios.
O rio verte ainda jovem de forma espetacular da Casca D’Anta, a cachoeira na Serra da Canastra. Suas nascentes acontecem numa pequena bacia côncava que logo as reúne lá em cima. O São Francisco já nasce pronto: ele forma rapidamente um riacho, uma corredeira, um lago pulsante e uma corrente que logo se precipita na queda.
Serão 2.860 km até que ele encontre o mar no litoral alagoano (ver mapa). Ele ruma para o norte a partir de Minas, onde no início é um curso encachoeirado. Faz depois uma grande curva na Bahia, onde o fim da cordilheira lhe permitirá enfim buscar as terras baixas do litoral. E corre dentro de um cânion ao se aproximar do mar. Nem sempre foi assim, mas ao chegar na foz o São Francisco é, de fato, um Velho Chico cansado.
O São Francisco atravessa regiões com diferentes condições naturais, desde a mata atlântica até o cerrado e a caatinga. Nas suas extremidades encontra muita chuva, mas ao longo da Bahia atravessa um trecho semiárido. Minas contribui com o dobro do fluxo em proporção à área de sua bacia e a Bahia, proporcionalmente com a metade. Os aluviões, os arenitos e os calcários, que ocupam boa parte da bacia, funcionam como esponjas que retêm e liberam as águas nos meses de seca. O rio é navegável no trecho médio (Pirapora a Juazeiro) e no baixo (perto da foz).
Ele foi, durante séculos, nosso rio mais importante. Tradicional território dos índios xacriabás, foi de início percorrido a partir da foz pelos colonizadores do Nordeste. Um século depois, era alcançado no seu trecho alto de Minas pelos bandeirantes. Durante o período da mineração, converteu-se no Rio dos Currais, provendo de tropa e carne os garimpos de ouro. No século seguinte, era navegado para trocar as mercadorias entre o sul e o norte, integrando nossa nação. No século passado, acolheu as usinas que geraram toda a energia do Nordeste. E, no atual, passou a doar sua água para a irrigação da seca região que atravessa.
Hoje, ele é um rio que morre. Se você visitar sua foz, notará um estranho farol no mar aberto. Antes, ele assinalava a barra do rio, mas com o recuo de suas águas, ele apenas sinaliza o passado. No início do sec. XIX, dez milhas mar a fora as águas ainda eram doces. Hoje, dez milhas rio a dentro, você ainda encontrará águas salobras, tal a força do mar.
Há quase dois séculos fala-se em transpor as águas do São Francisco. O atual projeto de transposição desviará suas águas para dois canais gigantescos, de 700 km (ver mapa). O objetivo será irrigar regiões áridas nos Estados nordestinos, algumas sequer com cursos perenes. Entretanto, apenas 5% do território árido será alcançado. E a água será retirada das regiões onde a demanda humana e animal é maior, para abastecer os latifúndios e a agroindústria. Um projeto polêmico que pode acabar de exaurir esse rio já exangue.
Existem muitas reservas às margens do São Francisco, que você conhecerá na próxima coluna. Elas integram o sistema de áreas protegidas do Jaíba. Este foi um grande projeto de irrigação, com o objetivo de produzir frutas e legumes nas terras áridas do norte mineiro, a partir das águas do São Francisco e seu afluente Verde Grande.
Iniciado na década de 70, o Projeto ocupa hoje menos de 20% da área pretendida de 100 mil ha. A esperada justiça social produziu inicialmente miseráveis ao invés de alimentos. Só se viabilizou quando lotes acima dos 5 ha iniciais foram ofertados, permitindo produção em maior escala. Hoje os 32 mil habitantes de Jaíba sugerem uma realidade consolidada, embora modesta.
Existe um grande e único canal em Jaíba que drena a corrente do São Francisco. É penoso visitá-lo (pelo menos na seca), pois as águas parecem paradas de tão rasas, como se sua imobilidade pudesse protegê-las desta usurpação.
Veja na próxima coluna as reservas marginais, criadas como compensação ambiental ao longo do São Francisco. Se você vive na metade sul do país, nelas conhecerá um novo bioma.