Amazônia Incompleta

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Vou começar contando a você uma história exemplar. Era uma vez um jovem americano talentoso chamado Robert Carneiro. Deve ter sido bom aluno, pois seu pai, que desejava que ele fosse advogado, organizou após a formatura uma viagem de volta ao mundo num navio.

Chegando ao Brasil, Robert visitou os kuikuro, um povo do Centro-Oeste brasileiro, residente no Parque Indígena do Xingu. Eles ficaram conhecidos por terem construído num passado remoto, a partir de 1½ milênios atrás, maravilhosos conjuntos urbanos circulares, integrados por estradas, trincheiras e canais. E isso mudou a vida de Robert Carneiro, como eu acho que teria mudado a minha.

Recriação da aldeia

Carneiro se especializou em antropologia, a partir de uma tese sobre esses mesmos kuikuro. Ensinou em diversas universidades americanas e foi curador do Museu Americano de História Natural. Foi um antropólogo que aliou a prática de campo à pesquisa teórica, dotado de um estilo precioso e uma argumentação envolvente. Morreu idoso em 2020.

E qual foi sua contribuição? Bem, foi uma ideia luminosamente simples, porém sob o nome complicado de circunscrição ambiental e social. Carneiro começou pela primeira: a circunscrição geográfica acontece quando uma área agrícola povoada é cercada por zonas estéreis ou inacessíveis, como montanhas, desertos e mares.

À medida que a população cresce, novas técnicas permitem melhores rendimentos agrícolas, até que o limite é alcançado. Acontece então a circunscrição social, criada pela pressão populacional, que demanda mais alimento. Para que o modelo funcione, são necessárias essas duas circunscrições ou limitações.

O que acontece então? Surge a guerra pela posse da terra escassa. Os vencidos não conseguem migrar devido às limitações geográficas e são abatidos ou se tornam servos e escravos. Para tal, forma-se ao longo do tempo uma organização coercitiva e centralizada, capaz de impor a ordem, coletar o imposto, organizar a produção e operar a burocracia.

Vale em Cuzco

Este é o Estado, a entidade política que exerce o governo. Ele se distingue da mera chefia grupal ou clãnica por ser impessoal e extenso. Na realidade, ele evolui a partir de chefias tribais sucessivamente conquistadas e reunidas em unidades políticas cada vez maiores. O Estado é uma evolução, antes de ser um propósito.

Vou citar o belo texto de Carneiro: Podemos dizer que o ambiente ótimo para a emergência precoce do Estado seria uma ilha ou um vale que fosse (1) suficientemente fechado para impedir que a população migrasse e que a crescente pressão populacional fosse aliviada, (2) suficientemente pequeno para permitir uma unificação relativamente rápida e fácil, porém (3) suficientemente grande para que, uma vez politicamente unificado, o regime criado fosse grande e complexo o bastante para constituir um Estado.

As primeiras civilizações

Esses foram os Estados originários, a partir dos quais surgiram os demais de origem secundária, por reação ou contato com os primeiros. E quais foram estes? Segundo Carneiro, principalmente os vales do Nilo, da Mesopotâmia, do Indo e do Rio Amarelo, junto com as regiões colonizadas pelos Maias e os Incas na América. Em todos eles, os acidentes geográficos criaram áreas circunscritas, onde a guerra forjou o Estado.

Mas o que acontece onde não há escassez ou quando o território é aberto? Certamente as guerras continuam acontecendo, mas por razões como vingança, prestígio ou religião. Na agricultura de subsistência, há pouco uso para escravos e, nas savanas abertas ou florestas planas, há poucas possibilidades de aprisionamento. Simplesmente não é possível e mesmo necessário o surgimento do Estado. A centralização é difusa a nível de aldeias ou tribos.

E foi isto o que ocorreu na Amazônia Central, região da confluência de grandes rios como o Solimões, o Negro, o Madeira e o próprio Amazonas. Mesmo que os terrenos de várzea fossem mais férteis, havia terra suficiente, e sujeita a um gradiente de fertilidade, para impedir a centralização necessária à formação de um Estado.

Lá não surgiram mais do que aldeias grandiosas, no dizer de Carneiro. Esta ausência de centralização política deixou a impressão de que na Amazônia apenas existiu uma cultura periférica, de importância limitada. Mas aos poucos essa opinião está sendo mudada.

O manejo agroflorestal

Essa foi a chamada Cultura da Floresta Tropical, que abrangia as terras baixas da Amazônia, ocupadas por sociedades tribais de baixo nomadismo, com ausência de Estado. Vista como primitiva, foi definida muito mais pela ausência que pela presença de marcadores culturais – tais como arquitetura monumental e refinamentos na metalurgia, no dizer de Eduardo Neves.

Essa cultura incorporava o cultivo de tubérculos (em especial, a mandioca), a técnica da navegação ribeirinha, o uso de redes para dormir, a descentralização política e a ausência de templos. Como aliás incorpora até hoje, numa prática maravilhosa, ignorada ou desprezada pela maioria dos brasileiros.

Porém surgiu uma teoria inovadora que, ao contrário, enalteceu a Amazônia Central, sugerindo terem surgido lá as adaptações e inovações agrícolas e ribeirinhas que favoreceram a duradoura ocupação indígena daquele espaço.

Os arqueólogos norte-americanos Robert Carneiro (1927-2020) e Donald Lathrap (1927-1990). Desenvolveram modelos criativos sobre o surgimento do Estado e sobre a Cultura Tropical.

Este foi o Modelo Cardíaco do antropólogo americano Donald Lathrap. O centro mais antigo da agricultura sedentária teria surgido em época remota, há quase dois milênios, nas férteis áreas das várzeas inundadas da Amazônia Central. O aumento populacional teria causado um contínuo êxodo centrífugo, colonizando rio acima as bacias do Negro, do Solimões e do Madeira e, rio abaixo, do Amazonas. Os rios funcionaram como as veias do modelo.

Lathrap diz que todos os sistemas agrícolas do Novo Mundo teriam derivado dessa ancestral cultura da mandioca centrada nas várzeas da Amazônia. Os cultivos chamados de quintal foram se tornando mais complexos, ao incorporarem várias outras plantas alimentícias, medicinais e construtivas. E avançando pelos vales fluviais, subindo pelas terras firmes e atingindo os planaltos.

O início do plantio de mandioca teria marcado o começo da revolução neolítica das Américas. Lathrap também afirma que a Amazônia Central teria produzido as primeiras cerâmicas policromadas e propiciado a separação linguística entre os troncos tupi e aruak. Devo comentar que suas conclusões são hoje discutíveis, até mesmo por não ter podido escavar em nosso território – ou você pensa que a ciência não é política?

O clima úmido e a ausência de pedra e metal tornaram escassos os vestígios da antiga ocupação humana na Amazônia. Os testemunhos mais comuns são as cerâmicas, que chegam a remontar a 4 milênios atrás, das quais existem várias e belas tradições, como de Marajó e Santarém. Existe certa evidência de que a Amazônia Central foi mesmo o antigo centro difusor dessa atividade, como Lathrap supôs. Quando foram encontradas paredes rochosas, como em Monte Alegre (PA), foi possível datar as pinturas rupestres em mais de 10 milênios.

Eduardo Neves comenta que a Amazônia é enxergada sob o signo da incompletude. Esta é a ideia de que algo sempre faltou à Amazônia e seus povos: a agricultura, o Estado, a história, as cidades, a escrita, a ordem e o progresso. Habitada por povos considerados dissolutos e degenerados apenas capazes de absorver as inovações, não de criá-las. E, pior, as grandes cidades amazônicas descobertas pela arqueologia recente não deixaram traços, por terem sido feitas de materiais frágeis como a palha, a terra e a madeira – existiram talvez, mas não importam.

Como ele diz, essa avaliação negativa é certamente influenciada pela inconstância dos registros históricos na Amazônia. Seus povos fizeram artefatos de pedra lascada e depois pararam de produzi-los, inventaram a cerâmica e depois deixaram de fabricá-la, criaram solos férteis, como a terra preta, mas não tiraram deles todo seu sustento, domesticaram plantas, mas em muitos casos não quiseram ser agricultores, vislumbraram a possibilidade do Estado, mas dela fugiram sempre que puderam.

Distribuição dos maiores centros populacionais ao longo dos rios amazônicos.

As povos amazônicos foram desprezados por andarem nus, mas qual é a necessidade de cobrir o corpo sob o calor tropical? O europeu cuja roupa o protegeu dos insetos e venenos não percebeu serem os indígenas imunes a eles pela adaptação ao meio. Como ignorou que não resistiriam às doenças como sarampo e varíola, para as quais não tinham defesa.

Se as línguas indígenas são extremamente ricas e variadas, seus falantes são desacreditados por não terem criado a escrita – mas qual sua necessidade junto a pequenas populações que se comunicam facilmente pela tradição oral? São também depreciados por não terem desenvolvido a metalurgia, mas onde estavam as rochas senão sob o profundo leito da terra.

Acusados de escassez, os povos amazônicos viveram ao contrário sob o signo da abundância.

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Sobre o autor

Nasci no Rio, vivo em São Paulo, mas meu lugar é em Minas. Fui casado algumas vezes e quase nunca fiquei solteiro. Meus três filhos vieram do primeiro casamento. Estudei engenharia e depois administração, e percebi que nenhuma delas seria o meu destino. Mas esta segunda carreira trouxe boa recompensa, então não a abandonei. Até que um dia, resultado do acaso e da curiosidade, encontrei na natureza a minha vocação. E, nela, de início principalmente as montanhas. Hoje, elas são acompanhadas por um grande interesse pelos ambientes naturais. Então, acho que me transformei naquela figura antiga e genérica do naturalista.

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