Para aqueles que pensam que “as chepeletas nascem nas paredes”, ficam a saber que as chepeletas (neste caso, os pernes) também MORREM nas paredes. Algumas morrem de morte natural e velhice – aquelas de aço zincado, que se distinguem perfeitamente a olho nu. Aquelas que “descascam” com a ferrugem acumulada e às quais ninguém ousa confiar o corpinho.
Sobre o Autor
Éramos os primeiros seres humanos a pisar aquele pedaço estreito do planeta. Abraçámo-nos. A celebração ficaria para depois. Naquele momento, estávamos vazios de emoções. Apesar do cansaço, o instinto mantinha-nos atentos, tensos. Apenas queríamos descer o quanto antes. Esperavam-nos ainda muitos rapeis, até alcançar a segurança do colo Alam.
Com previsão de bom tempo para os dias seguintes, a vontade de ficar no campo base não era muita. Ainda assim, para favorecer uma aclimatação by the book, forçamo-nos a passar por ali dois dias antes da nossa primeira incursão aos fundilhos do vale. A curiosidade espicaçava-nos o espírito, já que as nossas passeatas nos tinham levado a espreitar o que haveria por ali, ou seja…já tínhamos avistado o terço superior do Kapura.
Ao contrário do que nos é normal, desta arrumámos tudo um pouco à pressa e no último fim-de-semana antes da partida.
Com o cérebro inundado de insegurança por alguns acontecimentos recentes no Paquistão, na última semana antes do dia em que estava marcado o voo para Islamabad, 15 de Agosto, decidimos ir!
Os seguintes relatos, topos e fotos, reportam aos dias 2 e 3 de Fevereiro, antes das últimas nevadas e geladas, quando a serra ainda tinha pouca neve. No presente momento, as condições das vias apresentadas, estarão muito diferentes do que as que encontrámos durante as ascensões.
Algumas pedras mais periclitantes foram atiradas ao vazio e um par de horas depois aterrei na varanda intermédia, na parte alta da parede, que permite escapar (ou aceder) comodamente. Uma oportuna criação da Natureza.
Já o Inverno tinha entrado na Primavera e ainda não tinha chegado a ansiada encomenda especial. Após os últimos dias de actividades de neve na Serra da Estrela, ainda esperávamos um fim-de-semana alargado extra para fechar a época. Esse fim-de-semana surgiu dos dias 13 a 16 de Abril, quando vimos uma aberta de bom tempo nos Pirinéus. Já há algum tempo que tínhamos uma linha em vista nos Gabietos, um 3000 lá para as proximidades de Ordesa.
– Olha, o teu projecto está em condições!
A mais de mil quilómetros de distância conseguia sentir a excitação na voz do Miguel Grillo ao telefone. Nem sequer era necessário dizer-me o nome, para eu adivinhar a que projecto se referia. Estávamos em pleno inverno de 2002, e eu estava plantado em Benasque, no coração dos Pirinéus. O Miguel, o João (Animado) e o Hélder Massano encontravam-se na Serra da Estrela. Naqueles dias, tinham-se formado quase todas as cascatas habituais, incluindo a rara e emblemática Cascata do Inferno. Mesmo à direita desta ultima ex-libris, existe um tecto pronunciado desde o qual se ergue de quando em quando, uma fantástica cascata de gelo inacessível, a quase 30 metros da base da parede. Esta inacessibilidade, esta aparente impossibilidade, foram talvez os verdadeiros motivos que despertaram a minha imaginação, que atraíram os meus sonhos de aventura. Aquele tecto provocador de granito, um tecto que cortava inexoravelmente o acesso à bela linha de gelo imaculado, representava um desafio irresistível.
Suponho que cada qual terá a sua noção de grande dia de escalada. Provavelmente, para cada indivíduo, essa noção também dependerá das circunstâncias de cada momento. Por vezes, será a realização do maior número de vias e terminar o dia com os antebraços inchados de dor. Noutras situações, será o encadeamento de determinado projecto há muito almejado.
Em Setembro passado a Daniela e eu, descobrimos uma nova parede na Serra da Estrela…ou então, não descobrimos nada!