Coca, a folha sagrada dos Incas

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Tentar desmistificar um mal entendido que acompanha uma planta tão saudável parece ser tarefa difícil para os governos andinos, mal entendido este que foi imposto por anos de repressão e preconceito. Para entender melhor o assunto, tentei resumir em poucas linhas o que vem a ser esta famosa plantinha companheira de montanhistas e caminhantes que se aventuram pelas altas montanhas da America do Sul.


A coca, do quíchua kuka, é uma planta narcótica da família das Erythroxylesd, nativa da Bolívia e do Peru (Erythoxylon coca). Ao arbusto conhecido por este nome, os peruanos chamam “ipatú”, podendo atingir de 1 a 3 metros de altura. Uma casca esbranquiçada cobre toda a sua haste. As flores são pequenas e amarelas e o fruto vermelho, oblongo e carnoso. Existe ainda a espécie Erytroxylum novogranatensis que contém um menor teor de cocaína. Essa variedade da planta é hoje refinada e comercializada, legalmente diluída em refrigerantes, principalmente a Coca-Cola.

Em estado selvagem abunda nos Andes até dois mil metros de altura. Os incas exaltavam excessivamente este arbusto e utilizavam-lhe a folha como moeda. Na antiga Colômbia, os sacerdotes do Sol mastigavam e queimavam folhas de coca em honra a divindades.

Os peruanos e bolivianos mascam as folhas, depois do que, dizem, podem resistir não só a maiores fadigas e ao sono, como também aos jejuns prolongados. Entre os habitantes do vale Calchaqui, na Argentina, achava-se muito arraigado o costume de “coquear”, isto é, mascar folhas de coca.
Os peões não empreendiam trabalho algum sem fazer previamente seu acullico, que é o mesmo que por na boca uma certa quantidade de folhas de coca, as quais misturam llicta (massa feita de batatas fervidas).

Mineiro boliviano em trabalho mascando coca

A coca já cumpriu e ainda cumpre, um grande papel em todas as práticas religiosas e supersticiosas dos povos andinos. Por exemplo, quando estão para empreender uma viagem ou um negócio, recorrem à coca do seguinte modo: molham com saliva a folha inteira e a pegam à ponta do nariz; logo dão um sopro forte e olham para o lado que caiu, se para a direita, é sorte, se para esquerda é sinal de desgraça. Raras vezes empreendem algo, se a coca lhe anunciou má sorte.

Antes de empreender qualquer negócio, oferecem coca a Pachamama, a Mãe dos cerros (Nevados). Quando vão à caça, o caçador faz um buraco no chão, à beira do mato, onde todos depositam uma oferenda de coca, invocando a Pachamama para que lhes seja propícia a caça. Em viagens pelas montanhas notam-se nas vertentes certos montinhos de pedra em que se encontram folhas de coca, que se sabe, foram ali atiradas pelos viajantes. A estes certos montinhos chamam “Apachetas” e raro é o viajante que lá passa e não tire da boca a folha que mascava, para depositá-la na Apacheta.

Esta cerimônia que tem por fim propiciar-se uma feliz viagem, encontrava-se também entre o povo guarani do Paraguai. Ali, se tinham cristianizados, formavam-se sempre ao pé de uma cruz montinhos que orlavam os caminhos e debaixo dos quais havia um enterrado.

Para os indígenas Aymaras e Quechuas, a folha da coca é sagrada, como a hóstia dos cristãos. É utilizada em cerimônias sociais e rituais.

Uma lenda diz que o fundador do império inca, Manco Cápac, filho do sol, desceu um dia do céu e se dirigiu ao lago do Titicaca para ensinar aos homens a cultivar as terras, e oferecendo-lhes a planta divina, cujas as folhas, mascadas, faziam recuperar as forças perdidas pela altitude e trabalho duro do dia-a-dia.

Durante o Tahuantinsuyo (as quatro regiões do império inca: altiplano, selva, costa e chaco), seguiu-se com está prática, mas nessa época a folha de Coca estava restrita ao uso dos nobres, chamemos de Incas, seus familiares e curacas, quem acreditava que a Coca era um presente dos deuses. Com a expansão do império incaico, a utilização da folha de Coca propagou-se as terras conquistadas tendo papel inclusive de moeda entre os povos.

Chá de coca industrializado

Varias lendas foram adaptadas para a época da conquista e passou a atribuir o consumo ilegal da planta ao conquistador europeu. Sempre a divindade sol presenteando o ser humano com a folha sagrada que concede dons divinos. Entre todas as lendas que pesquisei, a historia de Khana Chuyma é a mais ilustrativa para referenciar o período da conquista do povo inca.

Historia conta que o sacerdote iluminado chamado Khana Chuyma, que vivia em uma ilha no lago Titicaca, era o guardião do tesouro do Deus Sol. Ao ver que os conquistadores espanhóis iam dominá-lo, o sacerdote jogou o tesouro no lago para evitar que fosse roubado. Capturado pelos espanhóis, Khana Chuyma resistiu às cruéis torturas sem dizer uma única palavra sobre a localização do tesouro, e foi finalmente libertado para então morrer.

Naquela mesma noite, em grande agonia, o sacerdote foi visitado pelo Deus Sol que lhe disse: “Meu filho, você merece ser recompensado pelo seu enorme sacrifício. Faça qualquer pedido e eu irei realizá-lo.”

“Oh meu querido Deus”, o sacerdote respondeu, “o que poderia pedir em tempos de dor e derrota como esse, se não a vitória de meu povo e a expulsão dos invasores?”.
O Deus Sol respondeu: “O que você me pede é impossível. Não tenho poderes contra o inimigo. O deus deles me venceu e agora devo fugir e me esconder entre os mistérios do tempo. Porém, antes de deixá-lo, gostaria de conceder-lhe algo sobre o qual tenho poderes.”

Khana Chuyma respondeu pedindo por algo que os ajudasse a suportar a escravidão e a vida dura que os esperava – algo que não era ouro. O Deus Sol lhe mostrou a planta de coca e disse: “Diga a seu povo para cultivar essa planta com carinho e colher suas folhas. Após secas, as folhas devem ser mascadas para que seu suco alivie seu sofrimento. Quando se sentirem exaustos de seu destino essa planta lhes dará nova vitalidade. Em suas jornadas através de terras altas, a coca irá aliviar sua fome e frio, tornando a viagem mais tolerável. Nas minas onde serão forçados a trabalhar, o terror e a escuridão dos túneis será insuportável sem a ajuda desta planta”.

“Quando quiserem olhar para o futuro, uma mão cheia de folhas jogadas ao vento revelarão os mistérios do destino, mas enquanto essa planta significará força, saúde e vida para seu povo, ela será maldição para os estrangeiros. Quando eles tentarem explorar suas virtudes, a coca irá destruí-los. O que para seu povo servirá de “alimento”, para os invasores criará conflitos”.

Mesmo tendo um grande poder ilustrativo, o texto está totalmente deturpado e não condiz com os estudos modernos. A suposta maldição empregada na lenda não vai acontecer durante a conquista do império Inca. Ou seja, as datas e registros para a transformação da Coca em cocaína são discordantes. Podemos tomar como data inicial da conquista a empreitada de Francisco Pizarro que decidiu executar o imperador Inca Atahualpa no dia 29 de agosto de 1533, sendo assim 300 anos de diferença entre a queda do império Inca e descoberta da cocaína.

Alcalóide cocaína só foi isolado das folhas de coca por Niemann em 1860, que lhe deu o nome. No entanto há boas razões para supor que foi antes Friedrich Gaedcke que a isolou pela primeira vez em 1856.

O seu uso espalhou-se gradualmente. Após visitas à America do Sul de cientistas italianos que levaram amostras da planta para o seu país, o químico Angelo Mariani desenvolveu, em 1863 o vinho Mariani, uma infusão alcoólica de folhas de coca (mais poderosa devido ao poder extrativo do etanol que as infusões de água ou chás usadas antes). O vinho Mariani era muito apreciado pelo Papa Leão XIII, que inclusivamente premiou Mariani com uma medalha honorífica.

A Coca Cola seria inventada em parte como tentativa de competição dos comerciantes americanos com o vinho Mariani importado da Itália. A Coca-Cola continuaria desde a sua invenção até 1929 a incluír cocaína nos seus ingredientes, e os seus efeitos foram sem dúvida determinantes do poder atractivo inicial da bebida.

A cocaína tornou-se popular entre as classes altas no fim do século XIX. Entre consumidores famosos do vinho Mariani contavam-se Ulysses Grant, o Papa Leão XIII, que até apareceu na publicidade do produto e Frédéric Bartholdi (francês, criador da Estátua da liberdade), que comentou que se o vinho tivesse sido inventado mais cedo teria feito a estátua mais alta (um sintoma de excesso de autoconfiança típico).

A cocaína foi nessa altura popularizada como tratamento para a toxicodepêndencia de morfina. Em Viena, Sigmund Freud, o médico criador da psicanálise experimentou-a em pacientes, fascinado pelos seus efeitos psicotrópicos. Publicou inclusivamente um livro Über Coca sobre as suas experiências. Contudo acabou por se desiludir com a dependência a que foram reduzidos vários dos seus amigos. Foi ele que a forneceu ao oftalmologista Carl Köller, que em 1884 a usou pela primeira vez enquanto anestésico local, aplicando gotas com cocaína nos olhos de pacientes antes de serem operados.

A popularidade da cocaína ganha terreno: Em 1885 a companhia americana Park Davis vendia livremente cocaína em cigarros, pó ou liquido injectável sob o lema de “substituir a comida; tornar os covardes corajosos, os silenciosos eloqüentes e os sofredores insensiveis à dor”. O fictional Sherlock Holmes (personagem de Arthur Conan Doyle) chega mesmo a injectar “cocaine” nas veias numa das histórias! Em 1909 Ernest Shackleton leva cocaína para a sua viagem à Antartica, assim como o Capitão Robert Scott.

A folha de coca contém 0,5% de um produto anestesiante chamado cocaína. A partir do século XIX, os cientistas conseguiram retirar a cocaína da coca. Em um primeiro momento, ela foi utilizada por suas propriedades anestésicas. Mas, a partir de 1914, a cocaína foi definida como “droga perigosa” e proibida. Nos anos 60, após a guerra do Vietnam ressurgiu como uma droga popular. A demanda cresceu e a “máfia da droga” entrou em cena.

A folha de coca, estigmatizada por ser a matéria-prima da cocaína, se transformou em um ingrediente saudável na produção de pães, sorvetes, bombons e balas, além de sabonetes e pasta de dentes.
Vários estabelecimentos da cidade peruana de Cuzco passaram a usá-la com o objetivo de demonstrar que a planta sagrada dos povos andinos, além de combater o mal-estar causado por grandes altitudes e de ser utilizada nos antigos rituais pré-colombianos, é comestível e tem usos cosméticos e medicinais que contribuem para uma vida saudável.

Infusão de Coca

Ciente de que a coca é “um assunto muito sensível”, o especialista e proprietário da “Coca Shop”, Christo Deneumostier, disse que “o problema não é a coca, mas uso que se faz dela”, em alusão ao excedente do cultivo que vai parar nas mãos do narcotráfico.

Deneumostier assegura que uma das soluções para o problema seria industrializar e comercializar a planta, aproveitando suas propriedades para a fabricação de produtos de qualidade, saudáveis e gostosos.

A folha de coca conta com 14 alcalóides, mas apenas um deles – o que serve para a fabricação da cocaína – foi popularizado no exterior via mercado negro.

Os 13 restantes possuem proteínas, vitaminas, carboidratos, gorduras, fibras, calorias, cálcio, fósforo e ferro, entre outros componentes básicos para uma dieta equilibrada, segundo vários estudos científicos, entre os quais um elaborado pela Universidade de Harvard em 1975.

O pesquisador Fernando Cabises descobriu, segundo a revista Opción Ecológica, que a coca forma células musculares, previne úlcera e gastrite, é analgésica, afina o sangue, evita o mal estar causado pela altitude, melhora o funcionamento do fígado e da vesícula, é diurética, acelera a digestão, regula a melanina da pele e evita cáries.

A “Coca Shop” nasceu em 2004 em Cuzco por uma iniciativa de Deneumostier e da italiana Emma Cucchi, fundadora da Associação Kuychiwasi (Casa do Arco Iris).

Em seu primeiro ano de vida, a “Coca Shop” aumentou sua receita em 75% e, segundo seu proprietário, a chave para o sucesso está no fato de que seus empregados, entre eles alguns deficientes físicos, recebem formação a respeito do cultivo, da produção de derivados e da comercialização, e na opção de reinvestir todo o lucro.

O resultado é uma vitrine de comestíveis tendo como base a folha de coca, como chocolate, sorvetes e grãos.

Mas esse não é o único exemplo de fabricação de produtos a base de folha de coca em Cuzco. A “Casa Ecológica” oferece também pães, bolos, sabonetes e pasta de dentes, elaborados pela pesquisadora Maria Escobedo.

A proprietária, Rina Gutiérrez, disse que os sabonetes têm propriedades esfoliantes, e que a pasta de dentes previne cáries.

Os turistas são os principais clientes das lojas localizadas no centro histórico de Cuzco, já que os produtos ajudam a preparar o organismo para as longas caminhadas e excursões pelo vale sagrado dos incas e pelas montanhas andinas. O caráter “exótico” dos produtos também ajuda. Nas ruas de Cuzco pode se comprar um saquinho de folhas de coca por algumas moedas. Em toda a cordilheira dos Andes, os povos mascam a folha seja para melhorar a saúde ou por mero costume.

Mas, segundo Gutiérrez, a comercialização da folha de coca vai além da venda de produtos inovadores, trata-se também “de preservar as antigas culturas andinas e suas formas de vida”.
No entanto, a tarefa dos ecologistas, cientistas e analistas defensores da coca ainda não foi concluída, já que a ONU mantém a planta em sua lista de produtos nocivos.

Quando estou no teto dos mais de 3000MT sempre tenho comigo folha para mascar e outra porção para fazer chá. Nos moradores dos trópicos sofremos muito com o mal da altitude e a folha de coca é um santo remédio para as dores de cabeça e enjôo causados pelas grandes elevações dos Andes.
É preciso entender que folha de coca não quer dizer droga, diferenciar o uso medicinal da Erythoxylon coca do comercio marginal se faz necessário.

O preconceito quanto à imagem da folha é grande para os leigos. Quem nunca usou o chá ou mascou as folhas ainda insiste em dizer que nunca faria isso porque seria como usar droga. Infelizmente se embriagar em uma garrafa de whisky de procedência duvidosa é mais glamoroso e menos preconceituoso do que mascar as humildes folinhas verdes dos Andes. A grande diferença é que um vai te dar uma grande dor de cabeça e a outra pode acabar com ela.

Força sempre e boas escaladas!
Atila Barros

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Sobre o autor

Atila Barros nasceu no Rio de Janeiro, e vive em Minas Gerais, cidade que adotou como sua casa. Escalador (Montanhista) há 12 anos, é apaixonado pelo esporte outdoor. Ele mantem o portal Rocha e Gelo (www.montanha.bio.br)

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