Corpos de escaladores mortos no Cerro Caraz são resgatados

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Os montanhistas que estão acostumados a frequentar regiões mais remotas ou de difícil acesso sabem o quanto um resgate pode ser dramático e perigoso. Por isso, é comum que quando há vítimas fatais elas permaneçam no local. Como foi o caso dos escaladores brasileiros Fabrício Amaral e Leandro Ianotta, que não puderam ser retirados da montanha devido ao risco que ofereciam aos resgatistas e foram sepultados no Fitz Roy em janeiro deste ano.

O ano de 2019 está sendo marcado por grandes perdas no montanhismo Sul Americano, nesse mês outros dois conhecidos escaladores, Ian Shwer e Juan Pablo Cano, morreram enquanto escalavam o Cerro Caraz no Peru.

Porém, desta vez uma equipe de voluntários se mobilizou para resgatar os corpos dos andinistas. Entre eles estavam os escaladores espanhóis Irmãos Pou, conhecidos no meio pelas grandes escaladas, inclusive na América do Sul. E foram eles que narraram como foi feito o resgate.

Descensão por meio de rapel.

Confira a tradução do relato na integra:

“Embora no nível esportivo, esta expedição no Peru está sendo a mais bem sucedida, os eventos dos últimos dias, com a morte no Nevado Caraz de Ian e Juanpi da Argentina, com posterior resgate, perturbou o equilíbrio emocional no nível pessoal de uma maneira clara.

Ian Shwer

Todos sabem da nossa relação especial com a América do Sul, e mais especificamente com a Argentina, país em que realizamos muitas atividades e o qual já visitamos em oito ocasiões.

Por um acaso da vida, não havíamos conhecido Ian e Juanpi até esta ocasião, em que tivemos o prazer de conviver com eles  por quinze dias em uma bonita casa no bairro de Huaracino de Marian.

 

Juan Pablo Cano conhecido como Juanpi

Agora observando com a perspectiva que uma tragédia dessa magnitude nos dá, estamos felizes em ter podido compartilhar com essas  pessoas especiais, estes últimos dias.

Foram bons dias, com boas conversas, compartilhando comidas, mates, alongamentos e flexões, com pessoas de  diferentes nacionalidades Sul-americanas, que fizeram a nossa bela casa de Marian  uma verdadeira “Copa América”.

Cronologia dos fatos

Terça-feira, dia 9 pela  manhã, Ian e Juanpi partiram para o seu objetivo. Nós sabemos com certeza, porque estávamos tomando café da manhã fora da cabana e desejamos boa sorte, e os convidávamos para comer alguns muffins. Nós fomos escalar na manhã seguinte e não retornamos até sábado, dia 13, ao meio-dia.

Voltamos muito felizes com nossa última abertura, que relataremos em outra oportunidade. Ficamos muito surpresos de que não houvesse ninguém na casa. Como o tempo tinha sido muito bom, quase todo mundo havia saído para a montanha.

Logo encontramos a dona da casa que estava preocupada porque os outros argentinos Matias Korten, Diego Cofone e Angie Di Prinzio, e os chilenos Nacho Vazquez, James Baragwanath, Sebas Pelletti e Valeria Vargas “tinham saído correndo, quase sem me despedir no dia anterior”.

Nós não demos muita importância até às 18:00 horas, quando recebemos um email da nossa amiga Luciana Juárez, da agência “AndeanKingdom“, falando que temia  que Ian e Juanpi tivessem sofrido um acidente fatal no Nevado Caraz de 6.025 m.

Rapidamente entendemos  que nossos colegas da casa tinham saído correndo na sexta-feira, pois  estavam preocupados com o atraso de  seus dois amigos estavam sofrendo ao voltar da montanha.

Por volta das 20:00 descemos para cumprimentar as pessoas do “Andean Kingdom” e descobrimos que uma equipe de resgate estava sendo organizada. A verdade é que estávamos fisicamente esgotados depois de ter feito nossas atividades por quatro dias acima de 5.000 metros.

Porém, ali havia muitas pessoas na mesma situação que nós, e não havia muitas dúvidas sobre o que tínhamos que fazer: “Tentar ajudar nossos colegas que necessitavam”.

Assim, às 3:00 da manhã de domingo, partimos para a Lagoa Parón, a 3 horas de Huaraz. Reunimos cerca de 40 pessoas: 7 policiais da Unidad de Alta Montaña, Tom representante da Casa de Guías como responsável pelo resgate e 34 outros voluntários de diferentes países, entre os quais nós estávamos. 

Nos dividimos em dois grupos diferentes: o primeiro ascendeu à base da montanha pela via normal, enquanto o outro subiu desde a lagoa. A ideia era que quando os primeiros descessem com as macas, eles encontrassem os segundos que haviam equipado a linha de descida a partir de baixo.

O resgate foi difícil fisicamente e emocionalmente.

Quando o primeiro grupo de resgate chegou no domingo, de madrugada, até os montanhistas falecidos, os nossos colegas de casa, que haviam chegado no dia anterior, já haviam removido os corpos para fora do glaciar (Imaginem o trabalho físico e emocional que eles tiveram).

Enquanto este primeiro grupo composto pela Unidad de Alta Montaña da polícia, Casa de Guias e alguns voluntários, colocaram os montanhistas em macas e começaram a baixá-los. O outro grupo entrou a partir de baixo, procurando por uma passagem entre as rochas que desce para encontrar o primeiro grupo. Nós tivemos que montar dois rapéis de até 100 metros.

O encontro entre os grupos aconteceu alguns metros acima da linha de rapel. Então, quando chegamos a essa área que envolvia muita dificuldade técnica, o número de pessoas era muito grande, com o qual esta parte foi realizada com todas as garantias.

Deste ponto descemos até a lagoa Parón, onde as macas foram colocadas em um barco, e elas foram levadas para o abrigo onde o juiz da guarda aguardava.

Onde foi o helicóptero?

Não vamos negar que um helicóptero estava faltando. É difícil entender que em toda a Cordillera Blanca, não havia  um único helicóptero disponível para os profissionais realizarem esses resgates. Se assim fosse, o risco para os profissionais e voluntários que participaram da operação seriam minimizados.

Como o Peru pode ser autorizado a vender turismo de montanha, sem ter meios para realizar um resgate em condições? Alguém acredita que esse grande detalhe não afeta o turismo? Os tempos mudaram e, mesmo em países pobres como o Nepal, os helicópteros voam a 8.000 m. Por que não no Peru?

Conclusões

A primeira é que os montanhistas argentinos eram pessoas conhecidas, fortes e experientes, estavam realizando uma atividade de grande importância.

A segunda é que, na nossa opinião, o resgate foi brilhante e  foi realizado de maneira muito profissional, começando pelos companheiros de Ian e Juanpi, que foram os primeiros a ir em socorro dos montanhistas, mesmo correndo o risco de suas vidas (A área onde os corpos foram encontrados estava muito exposta a queda de materiais).

Desde “Andean Kingdom”, Luciana Juárez à frente da operação, mal dormiu nos últimos dias, assumindo a organização da primeira operação e a chegada de parentes depois, acabou por administrar grande parte dos procedimentos burocráticos, uma vez recuperados os corpos.

A Policía de Alta Montaña que realizou um trabalho muito rigoroso e profissional, bem acima do que é meramente exigido.

A Casa de Guías, através do chefe do resgate Tom, que voluntariamente dirigiu toda a operação de maneira impecável.

Os 35 voluntários entre os quais nós estavamos ,e que não respiramos até que vimos o resgate ser concretizado.

É verdade que riscos foram tomados (como em todos os resgates) e que os montanhistas já haviam morrido, mas não é menos verdade que a maioria de nós que estávamos lá, sabia o quanto era importante recuperar os corpos.

Quando você está há muito tempo nisso e perdeu muitos amigos (esses últimos anos estão sendo especialmente difíceis para nós), sabe que a família precisa recuperar os corpos e fechar um círculo. Porque, do contrário, pode ser uma ferida que nunca se fecha.

Houve muita emoção e muita tensão acumulada durante as mais de 24 horas que duraram toda a operação (os meninos começaram no dia anterior) porque mais de 70% dos voluntários conheciam os falecidos e todos sabiam da importância de recuperar seus corpos. “Eu diria que todos trabalhavam como se os meninos estivessem vivos”.

É uma história muito triste sem um final feliz, mas é uma história de vida. Uma história de amor.

A terceira conclusão que queremos enfatizar é que a montanha, e seu povo, deram um grande exemplo de amor e solidariedade. O ser humano nos momentos limite, é capaz do melhor e do pior e, mais uma vez, o mundo da montanha deu o melhor.

Nossas sinceras condolências à família e amigos por uma perda tão grande, estamos com você.

Nós não queremos para terminar este texto sem agradecer a cada uma das pessoas envolvidas nesta história e sua coragem e atitude perante a vida: espero que não nos esqueçamos de ninguém, porque vocês são grandes!

Diego Cofone, Sebastian Pelletti, James Baragwanath, Ignacio Vazquez, Matias Korten, Valeria Vargas, Angelina DiPrinzio, Augusto (CH), Felipe Randis, Beto Pinto, Diego Arcos, Agustin Furth, Max (Mex), Gonzalo Caturelli, Matias Sergo, Emilio Abudi, Matías Lara, Pablo Tapia, Nicolas Secul, Emilio Aburto, Chopo Diaz, Soledad Diaz, Catherine Unein, Bernardo Gasman, Raimundo Olivos, Martin Oliger, Bernardo Concha, Meg Tounly, Miluska Liz, Manuel Ponce, Iker Pou, Eneko Pou, Mark Toralles, Tom Roger, David, Gonzalo Talo, Luciana Juarez, Cesar Chusky Pajuelo, Paula Haimovich, mais os componentes da Patrulha de Resgate do Peru.

Obrigado também a Pablo Tapia, que com todos os seus dados nos ajudou a fazer essa história.”

Fonte: Revista Desnível

 

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Sobre o autor

Maruza Silvério é jornalista formada na PUCPR de Curitiba. Apaixonada pela natureza, principalmente pela fauna e pelas montanhas. Montanhista e escaladora desde 2013, fez do morro do Anhangava seu principal local de constantes treinos e contato intenso com a natureza. Acumula experiências como o curso básico de escalada e curso de auto resgate e técnicas verticais, além de estar em constante aperfeiçoamento. Gosta principalmente de escaladas tradicionais e grandes paredes. Mantém o montanhismo e a escalada como processo terapêutico para a vida e sonha em continuar escalando pelo Brasil e mundo a fora até ficar velhinha.

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