Seguindo os conselhos do meu amigo, acordamos cedo no dia 2 de janeiro de 2014 e fomos em direção ao Sairecabur. Atentos ao GPS fomos ganhando altura no meio das ladeiras vulcânicas, num ponto em que só com a marcha reduzida era possível continuar, não pelas condições da estrada que eram boas, mas sim pela altitude que fazia que o carro perdesse consideravelmente a potência do motor. Mesmo assim, fiquei estarrecido com o bom estado da estrada e pelo fato de conseguirmos chegar tão alto dirigindo, 5550 metros, apenas 500 a menos que o topo. Apesar de chegar tão alto, a altitude cobrou seu preço a meus companheiros e apenas eu consegui fazer cume. Dali, pude observar o próximo desafio desta etapa de aclimatação, o famoso Licancabur e também fazer uma homenagem ao Parofes.
Em dois dias já estávamos atravessando a fronteira com a Bolívia e negociando a ascensão ao Licancabur. Como ali é um parque Nacional, era obrigatório a contratação de um guia local e quem nos levou foi o Serafim. No Sud Lipez, como se chama aquela vasta região alta e seca na Bolívia, há poucas e distantes aglomerações humanas todas com menos de 1000 habitantes. No entanto, em qualquer lugar há gente, a despeito da sensação de estar num lugar selvagem. Uma coisa curiosa é que diferentemente da maioria da população indígena da Bolívia que é da etnia Aymará, nosso guia Serafim era quéchua, descendente diretamente dos Incas. Com uma experiência de ter escalado o Licancabur umas 500 vezes ele nos afirmou que antes do Luca, apenas outro garoto de 15 anos havia feito cume na montanha. Então possivelmente ele foi o montanhista mais jovem a escalar o Licancabur, depois dos Incas, é claro…
Escalamos com tempo ruim, com muito frio e formação de sincelo. Faltou ar nos pulmões no Luiz e ele não fez cume, mas comemorou a subida do Luca. Na descida acabei me afastando dos parceiros e chegando antes na base, onde pude observar com maior detalhe as ruínas incaicas que existem ali. Eram restos de paredes de casas organizadas em volta de um tipo de “praça” onde certamente os animais eram carregados com cargas. Mais distante haviam outras casas que serviam de moradia ou pernoite aos viajantes. Como em muitas fazendas de índios existentes na Bolívia, que é o país mais indígena da América do Sul, havia o local onde os animais ficavam confinados, certamente Lhamas que servem como animais de carga e também de abate.
Ao longo do Capac Ñan há diversas estruturas de logística que deviam servir os viajantes e que também eram entrepostos fiscais, os chamados Tambos. Pela proximidade do Paso formado entre o Licancabur e o Juriques e a laguna Verde, aquela estrutura se assemelhava a um Tambo, mas ao mesmo tempo, por estar na base da montanha, também poderia ser uma espécie de “acampamento” para cerimoniais incaicos.
Sabe-se que os Incas realizavam cerimoniais chamados de “Capacocha”, e o mesmo envolvia o sacrifício de crianças, daí o Luca ter sido o mais jovem “não” Inca a fazer cume no Licancabur. Estes sacrifícios são interpretados como uma das estratégias para o governo Inca integrar o vasto império. De acordo com documentação histórica, a cerimonia Capacocha era realizada em celebração para diversos eventos chave, como a morte de um imperador, o nascimento de um integrante da família real ou em grandes vitórias ou batalhas militares além de eventos relativos ao calendário incaico. Também servia para fazer parar eventos da natureza, como terremotos, erupções vulcânicas ou epidemias. As pessoas a serem sacrificadas eram sempre crianças, por conta de sua pureza e perfeição, suas vidas eram doadas a Pachamama.
Evidentemente que, para preparar o terreno para realizar as Capacochas, aplainando o cume, formando as plataformas e também auxiliar os sacerdotes, militares e crianças a subir até o topo, era necessário ter estrutura e uma equipe de montanhistas que montassem e gerenciassem esta estrutura e a logística. Esta foi uma das conclusões que as discussões com o Waldemar Niclevicz renderam. Para que os eventos realizados nas montanhas dessem certo, existiam profissionais em subir montanhas por trás. Pessoas dedicadas, experientes e preparadas para tal oficio e que dispunham do privilégio de apenas escalar, pois montanhismo é assim. Tem que estar praticando para praticar bem.
Deixamos a Bolívia e o Chile para trás para ingressar de vez na Puna argentina no caminho definitivo ao Llullaillaco. Após um dia inteiro de viagem desde a fronteira com o Chile, onde pernoitamos, chegamos no final da tarde em Tolar Grande, um pitoresco vilarejo a quase 4 mil metros de altitude, onde fomos informados que precisaríamos de uma permissão do Museu Arqueológico de Alta Montanha para escalar. Como Salta fica a 400 quilômetros dali e não sabíamos de tal autorização, fomos tentar resolver a burocracia diretamente com o cacique local e após algumas horas estávamos liberados por Pachamama e pela polícia para tentar o cume.
Nos dirigimos com pressa para a estrada na tentativa de ganhar o tempo perdido, mas a única coisa que ganhamos foi mais um pneu furado e o dia perdido. Depois de tantos problemas com pneus, decidimos voltar a Tolar Grande e consertar nosso estepe. Desta forma, só fomos chegar no Llullaillaco no dia seguinte.
São 160 quilômetros de caminhos em 4×4 para ir de Tolar Grande até o acampamento base do Llullaillaco, que vencemos em 4 horas, uma boa média, já que chegar na montanha é um dos maiores desafios. Fizemos o caminho pela chamada “corniza” de Caipe, que é uma escarpa que sobe em zig zags que geralmente está impedida por deslizamentos. Esta é uma região com natureza muito agressiva. As coisas mudam rapidamente e é preciso ter perícia no que faz e muito combustível extra, pois isso não pode faltar. É bom também levar dois estepes…
Chegando na base próximo à hora do almoço, não tivemos muita opção senão montar a barraca e cozinhar. No entanto ao invés de tirar uma soneca depois da refeição, decidimos fazer uma caminhada de reconhecimento, onde pudemos observar o caminho até os acampamentos altos. Diferente de outras montanhas mais frequentadas, no Llullaillaco não existe trilha ou qualquer caminho que mostre por onde ir. É uma montanha selvagem então é necessário ter experiência para descobrir a melhor rota e chegar ao objetivo.
Ao término desta pernada, percebi outra dificuldade da montanha. Por volta das 4 horas nuvens negras se formaram no horizonte, o vento começou a soprar forte e não demorou para vir neve com violência. Raios iluminam o horizonte e o campo de eletricidade estática que se produz faz que um simples toque num zíper ou algo metálico dê choque. E essa história de que raio não cai duas vezes no mesmo lugar, é balela, vide o “Niño del Rayo”.
Fomos dormir ouvindo o barulho da neve sapecando na lona da barraca e acordamos com o som do silencio. Ao abrir a porta da nossa casa de nylon a surpresa: A paisagem árida da Puna havia se transformado numa paisagem polar, tudo estava branco! O imprevisto nos fez levar mais tempo para desmontar a barraca e arrumar as mochilas, razão pela qual acabamos saindo depois das 11 da manhã, quando fazia bastante calor. A neve, no entanto ajudou na caminhada, pois andar em cima do cascalho é mais difícil do que sobre ela e isso ajudou a progressão, mas por outro lado, nos expôs às tempestades elétricas da tarde.
Caminhando sobre aquela almofada branca e gelada me perguntei como os incas faziam para andar na neve. Meses mais tarde, conheci aquilo que os incas chamavam de Orco Kawkachun (orco = montanha; kawkachun= calçado rustico), que eram suas botas de escalada. Com 8 camadas de lã de Alpaca, certamente era usada diretamente sobre o pé descalço. As únicas amostras de Orco Kawkachun foram achadas nas vertentes do Llullaillaco e estão no Museu Arqueológico de Alta Montanha de Salta.
Em apenas duas horas e meia chegamos a um local onde supostamente é feito um acampamento intermediário, mas devido à nosso bom ritmo e horário de dia, decidimos prosseguir até um local mais alto e mais próximo do cume. Pouco tempo depois de tomar esta decisão, passamos pelas primeiras ruínas incaicas da montanha, que consistia num refúgio de pedras sem teto, onde deixamos guardado nossas botas de trekking e calçamos nossas modernas botas de gelo. Dali em diante, como eu estava melhor que meus parceiros, fui andando num ritmo mais forte abrindo o caminho no meio da neve.
Cheguei cedo no acampamento alto, a 5900 metros de altitude, a tempo de montar a barraca e ainda derreter neve com a luz do sol. Meus parceiros vieram logo mais, na hora certa para começar a ferver água e fazer um delicioso rango liofilizado e beber bastante suco em pó.
Apesar de terem nascido e crescido em locais altos, os incas não eram imunes aos efeitos da altitude. Estar bem hidratado é fundamental para poder se aclimatar a grandes alturas. Hoje podemos fazer água derretendo neve e gelo, mas como os incas faziam isso antes? Será que eles traziam a água debaixo tendo cuidado para que ela não congelasse? Como seria possível fazer fogo num local com tanto vento e derreter neve? É muito comum achar madeira levada pelos escaladores incas, mas nunca achei qualquer pedaço de madeira queimada. Será que isso era indício que eles faziam fogo num buraco dentro das construções muradas e depois tampavam os mesmos? Isso para mim é ainda um mistério.
Passei uma noite muito mal dormida. Tentei levantar diversas vezes para ir ao cume, mas nem eu, nem meus parceiros nos sentíamos bem. Sem conseguir dormir, levantei mais tarde com os primeiros raios de sol. Preocupado, sabia que o tempo bom seria passageiro, uma vez que por nosso prognóstico de tempo, os próximos dias seriam de neves intensas. Acabei acordando a todos e não contive minha vontade de ir para o cume, mesmo já sendo 7 da manhã.
Obtive o aval de meus parceiros, que decidiram não ir para o topo e rumei sozinho pelas ladeiras do vulcão, ganhando altura rapidamente entre a neve e as rochas congeladas abaixo do tapete branco. No entanto foi apenas o sol aumentar sua intensidade que a neve começou a ficar mole e passei a afundar nela até o joelho. Para piorar, em muitos locais ela já estava derretida e deixava em amostra as rochas soltas do substrato, formando aquilo que o montanhista argentino chama de “acarreo” que são pilhas de seixos soltos em que damos um passo para frente e voltamos dois para trás.
Somada a dificuldade dos acarreos com a altitude, meu ritmo foi ficando lento e a ascensão pesada. No entanto, por volta das 11:40 parei para respirar e ao meu lado havia uma pequena construção de pedras com uma abertura tipo de uma “porta” e dentro grandes caibros de madeira encostados. A “descoberta”, no entanto serviu apenas para me animar em seguir adiante, pois a prioridade passou a ser o cume e não mais a curiosidade.
Para minha sorte dali por diante a subida foi ficando mais fácil. Ascendi serpenteando uma vertente com bom substrato e ao chegar ao alto, numa ombreira aplainada avistei entre as rochas vulcânicas, o cercado de duas casinhas de pedra. Ao lado destas construções, quinze anos antes, foi escavada uma plataforma aplainada aonde de dentro dela foram achadas as três crianças em uma profundidade de 1,5 metros. A temperatura sempre abaixo de zero, a baixíssima umidade do ar, a impossibilidade do desenvolvimento de bactérias e outros micro-organismos desencadearam uma condição perfeita para a preservação e mumificação natural dos corpos das crianças do Llullaillaco.
Isótopos estáveis de carbono retirados do cabelo da “Doncelita” dão pistas de como foram seus últimos anos de vida. Com os dados colhidos, os pesquisadores puderam afirmar que ela tinha uma dieta baseada em vegetais e tubérculos, como batata, o que sugere que sua origem social seja campesina. Um ano antes de morrer, no entanto, a Doncelita mudou sua dieta, pois verificou-se uma presença maior de milho, considerado como um alimento da elite, além de proteína animal, provavelmente charque de Lhama, o que sugere que as crianças eram selecionadas para o Capacocha, passando por um período de engorda antes de serem sacrificadas. Se isto for verdade, significa que as elas sabiam que iam morrer um bom tempo antes. Não se sabe como ocorreu o ritual, mas sabe-se que antes do sacrifício as crianças foram embebedadas com Chicha e mascaram muita folha de coca, para aliviar os efeitos de altitude e anestesiá-los antes da morte. A pesquisa demonstrou que as crianças já vinham sendo alcoolizadas 6 meses antes.
Junto delas foram encontrados um pouco mais de 150 objetos que consistia em seu enxoval funerário, objetos como estatuetas de ouro e prata, conchas marinhas provenientes da costa do Equador, recipientes de cerâmica finamente decorados, bolsas de lã com alimentos (amendoim, batatas, carne seca, milho, farinha e outros não muito conhecidos por nós), plumas coloridas, folhas de coca, vasos de madeira, pentes, colares, pedaços de tecidos finos e outros objetos finamente elaborados que motivaram a segunda leva de escaladas por estas montanhas: Roubar tesouros e profanar tumbas.
Sem fazer muito esforço, realizo uma escalaminhada de segundo grau e em poucos degraus, venço o último tramo da torre de rocha vulcânica para chegar ao ponto mais alto do Llullaillaco, onde há diversas fendas naturais formadas pelo esfriamento da lava que deu origem à rocha, as diaclases, onde os jovens González e Harseim encontraram o pedaço de couro ressequido em 1952. Dali tenho uma vista privilegiada de tantas outras montanhas também ascendidas pelos Incas, como o Antofalla, Socompa, Aracar, Salin, Pular, Vulcão Vallecitos, Colorado, Sierra Nevada, Nevado Cachi e outras montanhas que hoje são desconhecidas até mesmo entre o meio de montanhistas, mas que são gigantes da Puna por ultrapassarem os 6 mil metros. Todas talvez fossem mais escaladas há 500 anos atrás do que hoje.
Por todo aquele vasto território que eu observava e que aos meus olhos pareciam desérticos e inóspitos, há mais de 500 anos era um local frequentado por viajantes, militares, sacerdotes e montanhistas profissionais que descobriam caminhos entre salares e picos gelados, preparavam o caminho e conduziam um cerimonial no topo das mais altas montanhas.
Uma vez no cume, aproveitei-me da chance de estar num local sagrado por este povo misterioso e pedi a Pachamama que ajudasse meu amigo Parofes que era envenenado por seu próprio sangue no hospital. Infelizmente não fui atendido e ele faleceu em Maio. Os sacrifícios também não surtiram efeitos para os próprios Incas. Brigas internas, escravidão e o alto custo da corte, combinado com o aparecimento dos deuses provenientes dos mares levou o império à sua destruição e tudo o que sabemos do montanhismo que eles praticavam é através de pesquisas arqueológicas.
Os descobrimentos no Llullaillaco, no entanto, nos prova que a história contada até então estava errada e que mais de 250 antes dos europeus começarem com o montanhismo, subir montanhas muito mais altas nos Andes já era algo muito mais corriqueiro e desenvolvido, ao ponto de haver pessoas especializadas na sociedade que desempenhavam esta função profissionalmente, caso contrário não seria possível existir todas esta estrutura em montanhas como o Llullaillaco e outras tantas no antigo Tawantisuyo
Assista ao vídeo da ascensão ao Llullaillaco
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