Face Oeste do Huayna Potosi

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Nem me recordo mais quando vi esta grandiosa face do Huayna Potosi, mas para as pessoas que já tiveram a oportunidade de irem para a região do Condoriri, esta parte da montanha pode ser vista do lado direito.


O Huayna Potosi certamente está entre as montanhas mais populares de toda a Bolívia, o que pode ser explicado pelo acesso muito rápido e fácil, e por estar acima da mágica barreira dos 6000m.

Todos os anos diversos escaladores (e turistas também) chegam ao seu cume pelo rota normal, atingindo os 6088m. Dois anos atrás tive a oportunidade de chegar ao cume sul pela maravilhosa Ruta de Los Franceses, um D- com cerca de 360m de parede. Pois bem… estou na Bolívia a pouco mais de 15 dias e tive a oportunidade de conhecer o Ivan Vallejo (a 7ª. Pessoa no mundo a escalar todas as montanhas com mais de 8000m e sem oxigênio suplementar), a Carla, o Joshua e o Esteban.

Essa turminha de equatorianos são muito fortes, tendo escalado a face sul do Aconcágua em janeiro deste ano (e inclusive o Joshua, com 21 anos, escalou pela 2ª.vez esta difícil rota).

Eles entraram na semana passada na rota menos difícil (ou mais fácil) da face oeste do Huayna Potosi. Tive a oportunidade de ver algumas fotos dos trechos mais complexos e ver alguns pequenos filminhos.

Esse foi um dos fatores determinantes para que eu procurasse um parceiro disposto a entrar na parede comigo. A rota escolhida foi a Ruta Americana (ou Ruta del Lion), conquistada em 1970. A graduação inicial proposta era de um D-, mas com as mudanças climáticas praticamente não há mais neve na parede, apenas gelo muito duro e rocha exposta.

Segundo a Carla e o Joshua (que fizeram a rota na semana retrasada) eles graduariam a rota com um TD bem honesto. Enfim… saímos eu, o Cecílio e um carregador até o ponto mais alto da estrada que vai para Maria Lloco (lloco lloco). De lá, com cargueiras nas costas, seguimos por um terreno relativamente fácil , por umas 2 horas, seguindo o aqueduto até a proximidade do lago glaciar e o campo gretado. Passamos o resto do dia estudando a rota óbvia que segue praticamente em linha reta até o cume.

Fizemos um jantar e fomos dormir. Acordamos as 02:00h da madrugada e saímos por volta das 03:00h. Creio que por volta das 04:30 acabávamos o glaciar e chegamos efetivamente na base vertical da parede. Por estar voltada para o lado oeste, esta parede é muito fria, recebendo a luz do sol apenas entre as 12:30h e as 17:00h.

Paradoxalmente não sentíamos frio nem qualquer desconforto. Rapidamente progredíamos na parede, sendo que por volta das 10:30h chegamos diretamente abaixo do grande glaciar suspenso que pode ser visto na parede, contornamos ele pela esquerda e após uns 100m de gelo duro e vertical conseguimos acessar o platô superior deste glaciar. Continuamos indo pela direita para atingir a canaleta que nos levaria ao cume. Esse trecho em especial se mostrou bem complexo, com gelo fino e duro como vidro, onde muitas vezes os parafusos sequer entravam sem sua totalidade, ficando apenas uns 5 ou 6 cm até atingirem a rocha atrás do gelo. Contornamos com dificuldade um conjunto de séracs (blocos de gelo suspenso) e logo após passarmos este trecho, alguns pequenos blocos de gelo do tamanho de geladeiras caíram ao nosso lado.

 Logo acima destes séracs nos deparamos com um novo glaciar suspenso, que embora fosse nitidamente menor que o grande glaciar que deixávamos para trás, apresentava um grau de dificuldade ainda maior. Demoramos quase 2 horas para conseguir transpor este trecho, a luz do dia estava indo embora e ainda nos faltava uns 380m de parede. Escurece. O frio começa a mostrar sua presença. Por volta das 19:30h, faltando uns 300m de parede, nos damos conta que talvez só conseguiríamos sair da parede por volta das 00:00h. Nossa comida já havia acabado, e dos 2 litros e meio de líquidos que levávamos cada um, os cerca de 300ml restantes estão congelados. Para agilizar a “fuga” da parede, decidimos ir para a direita e sair no pequeno vale entre o cume norte e o cume sul, entretanto, derivamos mais do que o necessário e nos metemos dentro de um novo conjunto de séracs, instáveis, com vários penitentes, cornijas e em um ambiente muito instável, que não levou a lugar nenhum a não ser abaixo do último glaciar suspenso.

A luz da headlamp apenas ilumina breves trechos e facilmente nos perdemos entre os grandes blocos. Um verdadeiro caminho de rato. Na tentativa de sair deste labirinto realizamos uma breve sequência de rapel para encontrar a canaleta que nos levaria ao final da parede. São quase 03:30h da madrugada e me dou conta que os meus pés estão realmente gelados (as mãos também, mas estas continuavam funcionais).

Frio de cerca de 25 graus negativos e muita desidratação. Uma combinação realmente perigosa. Chamamos durante a noite algum tipo de auxílio, ao menos para eventualmente ter alguém nos esperando no final da parede com alguma coisa para comermos e bebermos. Por volta das 04:00h vemos a pálida luz de umas duas headlamps no final da canaleta.

Era a chave que nos faltava para termos a certeza que estávamos no caminho correto. Cerca de 200m nos separam do colo entre os cumes. Realizamos uns 110m de rapel em diagonal, abandonando alguns parafusos de gelo na parede e recomeçamos a escalar. Depois ficamos sabendo que havíamos saído da ruta americana e entrado no rota eslovaca…

Enfim, enquanto isso, na parte superior, montaram um sistema de ancoragem e duas pessoas rapelaram pelo último trecho nos encontrando a cerca de 100m do final da canaleta. Foi extremamente gratificante poder beber um chá quente que nossos amigos levaram. Esse encontro com um pouco de calor se deu por volta das 06:00h. Meus pés estão com congelamentos e não quero me arriscar a piorar a situação. Subo pelas cordas fixadas nos últimos 100m. Cada passo é muito dolorido. Ficamos sabendo que montaram toda uma estrutura e logística para nos receberem no final da parede. Ninguém sabia como realmente estávamos e até uma maca para altitude estava no final da parede. Revemos amigos e bebemos mais coisas quentes.

Como sempre, diversos boatos, o mais bizarro de todos seria o de que o Cecílio teria congelado ambas as pernas do joelho pra baixo… apesar de terem montado toda uma logística na parede mais acima, tanto eu quanto o Cecílio saímos sozinhos, ou melhor, para preservar os meus pés acabei jumareando os cerca de 100m finais. Saímos muito cansados e desidratados. Cerca de 35 horas na parede. Quase 1000m de parede. A

Quando cheguei no acampamento alto (Campo Roca, a cerca de 5150m) a Dra. Edna Freitas faz um rápido checkup, me dá um analgésico mais forte e se mostra intrigada com os pés e recomenda veementemente que eu procure um especialista em congelamentos assim que chegar em La Paz. Vamos direto para o médico indicado, eles iniciam um processo de reaquecimento das mãos e dos pés, e de medicamentos (25000u de B12, Pentoxifilina e um outro conjunto de B6 e B12). Fico no hospital durante umas 2 horas fazendo estas coisas e por volta das 23:30h finalmente chegamos ao nosso hotel.

É isso… uma grandiosa parede, que se mostrou bem mais difícil do que eu realmente esperava. Um D+ em vários trechos e em sua maior parte um TD. Escrevo este relato enquanto me recupero dos congelamentos, que ainda que superficiais, são muito doloridos.

Abraços a todos e excelentes escaladas !

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Sobre o autor

Davi Marski (In Memorian) Era guia de montanha e escalador em rocha e alta montanha (principalmente nos Andes) desde 1990. Além de guia de expedições comerciais, ele ministrava cursos de escalada em rocha. Segundo ele mesmo "sou apenas mais um cara que ama sentir o vento frio que desce das montanhas". Davi levava uma vida simples no interior de São Paulo e esforçava-se por poder estar e viver nas montanhas. Davi nos deixou no dia 19 de Novembro de 2014.

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