Esta coluna se baseou grandemente no relato A Marcha para o Oeste de Orlando e Cláudio Villas Boas, que narra as peripécias da Expedição Roncador-Xingu. Foi então que os três irmãos conheceram o interior do país e os indígenas que o habitavam.
Indigenistas (Segunda Parte)
O índio só sobrevive em sua própria cultura.
Irmãos Villas Boas
A prática norte-americana de ocupação dos espaços interiores do país foi muito admirada no Brasil. Porém, ao invés de ser espontaneamente conduzida por pioneiros privados, foi fomentada pelo Governo Vargas, através do programa Marcha para o Oeste. Ela foi implementada pela Expedição Roncador-Xingu, que deveria partir das margens do Araguaia, percorrer o rumo da Serra do Roncador no Mato Grosso, chegar aos formadores do Xingu e finalmente alcançar o Tapajós já no Pará.
Caberia à Expedição abrir caminhos, instalar campos de pouso, construir pontes, pacificar os indígenas. O grande sertão do Brasil Central (…) até poucos anos era a região menos conhecida de todo o continente americano, contam os irmãos Villas Boas, que chefiaram a Expedição. Durante as décadas de 1940-50, foram abertos 1.500 km de picadas na mata ou no cerrado, abertos cerca de vinte campos de pouso e criadas as bases para o surgimento de mais de 40 cidades.
Os irmãos Orlando, Cláudio e Leonardo Villas Boas, filhos de um advogado e cafeicultor, eram empregados em São Paulo, quando se entusiasmaram com a Expedição Roncador-Xingu. Como pessoas instruídas não eram aceitas para compô-la, simularam ser sertanejos analfabetos para que fossem admitidos. À medida que a expedição avançava, foram revelando suas qualidades de liderança e trabalho, chegando então à sua chefia.
É bonita a forma como Orlando e Cláudio descrevem o nascimento do grande Rio Xingu: Alcançamos a foz do Ronuro. Sua água escura divide o Xingu em dois rios – a água barrenta do Kuluene e a água escura do Ronuro. Pouco antes da barra com o Kuluene, o Ronuro recebe o Batovi. A junção dos três rios forma a praia do Morená, área lendária dos xinguanos. Deste ponto em diante, as três águas reunidas que correm para o norte tomam o nome de Xingu.
Assim como a obra de Rondon, a dos Villas Boas foi uma façanha feita de perseverança, coragem e imaginação. Passaram 40 anos no Alto Xingu. Eram inicialmente favoráveis ao desenvolvimento, mas ao longo do tempo seu interesse pelos índios foi aumentando. Durante dezenas de anos, foram descobrindo, abordando e pacificando as muitas etnias encontradas naquele mundo enorme.
Eles contam que as epidemias e as grandes guerras foram dizimando as tribos. Um dia, tiveram a ousada iniciativa de fazer duas tribos rivais se encontrarem. Daí surgiu gradativamente a paz xinguana, que cessou os ataques e os massacres.
Eles escreveram: Não devemos esquecer que cada maloca abriga um povo tão digno de subsistir como qualquer um dos povos civilizados. Todos eles se debatem para não desaparecer, sustentando uma luta desigual com a morte. É um erro pensar que índio é um indiferente ou um fatalista. Como todas as criaturas, é um ser que vibra, que pensa no futuro e que chora saudoso o passado pujante de sua nação.
E, um dia, à roda de uma fogueira, os Villas Boas tiveram uma inspiração. Porque não abrigar todas essas tribos dispersas, beligerantes e ameaçadas num único território protegido? E propuseram então a Rondon a criação de uma única reserva que as abrigasse: o Parque Indígena do Xingu. Foi um longo processo: de 20 milhões a menos de 3 milhões de hectares, quase dez anos depois de proposto, o Parque indígena tornou-se enfim uma realidade.
O Xingu era uma ampla e cobiçada bacia fluvial, que fatalmente seria ocupada pelo progresso. O destino das tribos locais seria o mesmo dos tempos de Rondon: com o avanço dos fazendeiros, garimpeiros e extrativistas, facilitado pelas estradas e comunicações, os índios seriam desalojados e exterminados. Rondon imediatamente apoiou o Parque – pela proteção dos nativos e pela preservação da natureza.
O Alto Xingu abrigava dez tribos que falavam todos os quatro idiomas conhecidos no Brasil. Além das residentes, foram atraídas durante um quarto de século outras etnias que existiam à volta: os valentes kaiabi, os temíveis txicões, os distantes tupayunas e os quase extintos panará. Elas vieram a se juntar entre outras aos kalapalo, kuikuro, waurá, juruna e suyá. Mas a mais notável iniciativa foi o reagrupamento e a recriação da nação yawalapiti – seu cacique tornou-se depois o mais influente da região.
Pela primeira vez no Brasil, um território demarcado foi exclusivamente atribuído a tribos indígenas. E criado suficientemente grande para que lá elas pudessem prosperar, sem ameaçar o meio ambiente. Elas puderam preservar sua cultura e exercer o autogoverno. E proteger-se para sempre do branco invasor. O Parque do Xingu serviu de exemplo (mas não de modelo) para as posteriores demarcações das Terras Indígenas.
Os irmãos Villas Boas morreram na ordem inversa de seus nascimentos. O caçula Leonardo morreu cedo, por problema cardíaco. Cláudio, o irmão do meio, faleceu em seguida, talvez devido às centenas de ataques de malária sofridos. Orlando aposentou-se aos 70 anos, foi demitido pela FUNAI em 2000 e morreu dois anos depois. O maior kuarup (cerimônia fúnebre, central à cultura indígena) de que se tem notícia foi realizado em sua homenagem no Xingu no ano seguinte.
Os irmãos Villas Boas também sofreram com a falta de reconhecimento. Leonardo teve um comportamento polêmico ao se unir à esposa de um xamã kamayurá – quando descoberta, ela sofreu estupro coletivo da tribo. Cláudio era filósofo e comunista, o que não lhe facilitou a aceitação. Orlando era dedicado, brilhante e relacionado. Apesar de ser o último discípulo ainda vivo de Rondon, acabou demitido da FUNAI através de um mero fax. A alegação foi o corte de despesas, mas ele ganhava uma ninharia. Orlando comentou que eu e o índio somos uma realidade incômoda.
Os caciques xinguanos, por sua vez, comunicaram também por fax à FUNAI, na honestidade de sua língua simples: Chegou ao nosso conhecimento a demissão de Orlando Villas Boas. Queremos falar para você que o Orlando já trabalhou muitos anos com nosso povo. Foi ele quem fez contato com nós índios que moramos aqui no Xingu, ele ensinou muita coisa do branco para nós índios. Por que você demitiu ele? O que ele fez para você? Será que você não gosta dele? Orlando protegeu os índios do Xingu por muito tempo. O governo tem que conhecer o trabalho dele, haja visto que ele já está muito velho para vocês mexerem com ele.
Um país sem história como o Brasil não consegue celebrar sequer a memória de seus heróis.