As habitações humanas permanentes mais altas do planeta estão todas abaixo de 5.000 metros. Em algumas raras situações encontramos habitações temporárias, abrigos para pastagens de verão, acima desta marca. Os escaladores de montanhas de 8.000 metros passam algumas noites acima dos campos bases e em seguida retornam a eles para recuperarem-se, para só então aventurarem-se novamente aos campos altos. Por que isso?
Nosso organismo precisa de um nível mínimo de oxigênio no sangue para poder funcionar adequadamente, principalmente por longos períodos. Por gerações e gerações os organismos de habitantes de zonas montanhosas como as populações andinas e himalaias foram gradualmente adaptando-se de maneira a poder sobreviver a grandes altitudes, mas mesmo eles não vivem geralmente acima de 4.500 metros.
A esta altitude temos uma concentração de oxigênio correspondente à apenas 60% da do nível do mar. Boa parte de nós se fôssemos levados de helicóptero diretamente do nível do mar à 4.500 metros no mínimo passaríamos muito mal com dores de cabeça extremas e mesmo correríamos o risco de desenvolver uma das gravíssimas doenças de altitude como edema cerebral ou pulmonar.
A população dos Andes e dos Himalaias desenvolveu mecanismos diferentes de adaptação ao ar rarefeito. Os andinos se adaptaram modificando-se morfologicamente, ou seja, aumentando seu volume toráxico e com isso conseguindo um maior aporte de oxigênio a cada respiração e a população himalaia modificou-se fisiologicamente com maior eficiência na captação do oxigênio e na sua utilização a nível celular.
Nós, habitantes de altitudes mais moderadas, sem essas milenares adaptações, temos que respeitar as grandes altitudes e subir vagarosa e cautelosamente para evitar graves consequências. E quais são então os problemas que podemos enfrentar caso subamos rápido demais?
Existem três doenças relacionadas a altitude, a AMS (Altitude Mountain Sickness) em inglês ou soroche na América Latina, o HAPE (High Altitude Pulmonar Edema), edema pulmonar de altitude e o HACE (High Altitude Cerebral Edema), edema cerebral de altitude. Aqui vou usar a terminologia em inglês por ser mais difundida. Essa três doenças são divididas em entidades separadas para fins didáticos, mas na realidade são manifestações diferentes de um mesmo problema e com frequência não existe uma linha divisória muito clara entre uma e outra. Vamos tratá-las como entidades separadas para melhor compreensão.
O AMS acomete ao redor de 30% das pessoas não aclimatadas que sobem acima de 3.000 metros de altitude sobre o nível do mar. Mesmo abaixo desta altitude ele já pode se manifestar sendo porém mais raro.
Seus sintomas lembram os de uma forte gripe. Podem ser apenas uma sensação de mal estar generalizado ou progredir para os sintomas clássicos de forte dor de cabeça latejante, em geral de um lado só da cabeça, náusea e vômitos, falta de energia e apetite e pronunciado cansaço aos esforços. A pessoa tende a querer isolar-se e as vezes, por isso, não relata aos seus companheiros o que está passando, agravando o perigo.
De um modo geral, com repouso, consumo adequado de líquidos, analgésicos para a dor de cabeça e um dia a mais na mesma altitude esses sintomas desaparecem e a pessoa pode continuar a subir sem maiores riscos.
Em algumas raras situações, ao redor de 2 a 3 por cento dos casos de AMS, esse quadro pode agravar-se e progredir para HAPE ou HACE ou ambos. No caso de HACE, nos casos clássicos (isso pode variar muito), as dores de cabeça se agravam, os vômitos pioram e aparece o sintoma que nos diz com certeza que estamos frente a um caso de HACE, a perda de equilíbrio. Deste ponto em diante o quadro piora rapidamente evoluindo com confusão mental, coma e morte que pode acontecer em menos de 12 horas após o começo do quadro.
O que está acontecendo é que por falta de oxigênio no sangue nosso cérebro começa a inchar. Como nosso crânio é uma estrutura óssea rígida, partes do cérebro começam a ser comprimidas, daí a dor. Com o progressão do quadro o cerebelo, orgão que é responsável pelo equilíbrio, é comprimido e aparece a ataxia, a falta de equílibrio.
Como a pessoa com HAPE perde a capacidade de raciocinar claramente pode ser um pouco difícil convencê-la de que ela está apresentando um quadro grave e que medidas rápidas e efetivas devem ser tomada para reverter o quadro. É necessário tomar as medidas necessárias mesmo contra a opinião do paciente.
No caso da HAPE uma situação semelhante ocorre, mas desta vez nos pulmões. Com o agravamento do quadro, a pessoa começa a apresentar inicialmente tosse seca, dor pré external (no centro do peito) e cansaço aos mínimos esforços. A tosse então se torna produtiva, ou seja, com secreção, e aparece a ortopnéia (piora da falta de ar ao se deitar) que é para o HAPE o que a falta de equilíbrio é para o HACE, ou seja, o sinal de que realmente se trata de edema pulmonar e que medidas extremas e rápidas devem ser tomadas para reverter o quadro.
O que está acontecendo é que pelo falta de oxigênio a nível celular pulmonar os alvéolos (estrutura pulmonar responsável pela troca de gases) começam a ser inundados pela dilatação dos poros dos vasos pulmonares e sua capacidade de troca de gases diminui. Quando o paciente está de pé ou sentado esses líquidos se acumulam na base dos pulmões e ele consegue respirar mais ou menos bem. Porém, quando ele se deita, esses líquidos se espalham por todo o pulmão e a falta de ar se agrava sensivelmente e pode até aparecer cianose (tom azulado nos lábios e ponta dos dedos).
À partir deste ponto, o quadro evolui rapidamente para insuficiência respiratória e morte por sufocamento. Um sinal extremo é o aparecimento de tosse com secreção cor de rosa, sinal de que sangue está vazando para os alvéolos.
Como disse anteriormente, os dois quadros podem e com alguma frequência acontecem de forma simultânea, embora nesses casos normalmente haja predominância de sintomas de um ou do outro. Isso é logico, afinal o que afeta uma parte do corpo afeta as outras e a causa das alterações do HAPE e do HACE são basicamente as mesmas.
Bom, até agora foram as más noticias, mas isso tudo pode ser facilmente evitado se tomadas as devidas precauções e remediado caso as doenças se manifestem. A mais efetiva forma de prevenção do Mal de Altitude em suas várias manifestações é subir devagar dando ao corpo tempo para ele se adaptar. Essa adaptação acontece de maneira surpreendentemente rápida. As vezes, um dia a mais na mesma altitude é tudo o que é necessário para resolver um caso de AMS ou de evitar o aparecimento de HACE e HAPE.
Como regra geral, a partir de 3.000 metros, não se deve dormir a mais do que 400 metros acima da altitude que dormimos na noite anterior e a cada 1.000 metros deve-se dormir mais uma noite na mesma altitude. Simples, não? Mas, apesar de ser tão simples essa regra é comumente quebrada por falta de tempo, desinformação sobre Mal de Altitude ou simplesmente por jogos de ego onde em um grupo um quer mostar que é mais “forte” do que os outros. As estatísticas mostram que jovens em boa forma física são grandes candidatos a ficarem doentes porque cumprem a jornada normal de um dia em poucas horas e decidem ir mais alto.
Outras medidas que ajudam a evitar o Mal de Altitude são hidratação abundante, pelo menos quatro litros de líquidos por dia. Como essa necessidade varia muito de pessoa para pessoa e de situação a situação, a melhor maneira de saber se estamos bem hidratados é olhar a cor da urina. Ela deve ser muito clara, quase como água e em boa quantidade.
Além disso, deve-se evitar a exaustão. Sabemos que cansaço extremo leva a Mal de Altitude. Se você está muito cansado, mude seus planos e faça um dia mais curto. Também, qualquer doença predispõe ao aparecimento de complicações relacionadas a altitude. Se você ficar doente em um trekking ou escalada, seja mais conservador em relação ao ganho de altitude. Finalmente, crianças abaixo de 13 anos são mais suceptíveis a terem complicações. Com elas, escolha uma trilha com altitude mais moderada.
Se, apesar de você ter seguido todas essas precauções, ainda apresentar uma das complicações mais sérias, o tratamento é um só: DESCER. Se HAPE e HACE evoluem para quadros potencialmente fatais em poucas horas, por outro lado eles se revertem completamente com a descida de apenas algumas centenas de metros. A regra clássica é levar a pessoa até a última altitude onde ela se sentia bem, mas tenho observado que na prática uma descida de apenas 400 metros já é normalmente suficiente para reverter o quadro.
,Importante: uma vez feito o diagnóstico é fundamental levar o paciente para uma altitude menor, não importando a hora do dia ou da noite, se está chovendo, fazendo frio ou nevando. Claro que se os riscos desta evacuação de emergência são muito grandes e pode colocar outras pessoas em situação de risco a opção é esperar até que as condições sejam melhores. Mas, lembrem-se- HAPE e HACE evoluem com muita rapidez.
Apesar de que existem medicações que ajudam o tratamento, com exceção do Diamox que pode ser dado em dose dupla, ou seja, 250 mg a cada 12 horas, as outras drogas só devem ser usadas por pessoas com treinamento médico. De qualquer forma DESCER é mais efetivo e rápido do que qualquer droga.
Um equipamento muito útil para o tratamento do Mal de Altitude é o Gamow Bag, um cilindro de borracha de barco com um ziper, uma bomba de ar manual e uma válvula de escape de ar uma vez que a pressão desejada seja atingida. O paciente é colocado dentro da Gamow Bag coberto por um sleeping bag e o ziper é fechado. Se bombeia constantemente até o ar começar a sair pela válvula de segurança e a partir daí a bomba é acionada a cada cinco segundos. Neste momento a pressão dentro da câmara corresponde a 2.000 metros abaixo da altitude onde o paciente se encontra. Isso, de um modo geral, reverte os sintomas quase imediatamente. O paciente deve ser deixado dentro da câmara por pelo menos cinco horas.
O problema é que, quando o paciente é retirado da Gamow Bag com muita frequência volta a apresentar Mal de Altitude. Mesmo assim a Gamow Bag deve ser considerada em todas as escaladas e trekkings de altitude, pois ela permite um planejamento de evacuação muito mais calmo e com o paciente em melhores condições. Os lados negativos são o custo de ao redor de US$ 1000 e o peso de sete quilos.
Para encerrar, queria colocar alguns conceitos errados que normalmente ouço:
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- Eu aclimato bem ou, na última vez que fui para as montanhas eu fui rápido e não tive nehum problema de maneira que não tenho que seguir as regras de aclimatação. Errado! Não é por que na última vez nada aconteceu que desta vez você está imune às complicaçoes. Você teve sorte, não facilite!
- O contrário disso. Passei mal quando subi a 4.000 metros e portanto não posso ir às montanhas. Errado. Cada experiência em altitude é diferente da outra. Possivelmente você na outra vez subiu muito rápido e não respeitou as regras de aclimatação.Faça corretamente desta vez que tudo sairá bem. Caso você tenha subido devagar e assim mesmo teve problemas, lembre-se que as regras foram desenhadas seguindo o que acontece com a maioria das pessoas. Neste caso suba ainda mais devagar. As montanhas são lugares inspiradores e lindos. Pare mais, tire mais fotografias, fique um dia a mais naquele vilarejo tão especial.Não há pressa!
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- Eu sou jovem e em boa forma física então posso subir rápido. Errado. Como disse acima, você está em um grupo de risco se pensa assim. Mal de Altitude não está relacionado à forma física ou idade.
- Tenho AMS e não vou tomar analgésicos, pois isso vai mascarar o quadro. Errado. Não há sentido em sofrer com dor de cabeça quando um simpes paracetamol pode melhorar bastante este sintoma tão desagradável. E analgésicos não curam o AMS, apenas aliviam um de seus sintomas. Não há risco de mascarar o quadro. Se a doença tiver de progredir, infelizmente não será um analgésico que irá evitar.
Eu costuma dizer que altitude é como mergulho. Tanto a altitude como as profundezas marinhas não são lugares que podemos sobreviver, mas seguindo as regras básicas as duas experiências podem ser extremamente gratificantes e seguras. É só respeitá-las. Montanhas são lugares mágicos, não deixe que perigos facilmente evitáveis estraguem sua experiência. Boas caminhadas!
Além de colunista do AltaMontanha.com, Manoel Morgado é médico e guia de montanha com mais dezoito anos de experiência guiando grupos de brasileiros em viagens de trekking e escalada em vários paises do mundo.
Se quiser saber mais sobre as expdiçoes organizadas e guiadas por Manoel Morgado visite o site www.manoelmorgado.com.br
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